Projeto SAIL: O INESC TEC a bordo do navio Sagres

O navio-escola NPR Sagres está a ser utilizado como plataforma de observação científica, no âmbito do projeto SAIL – “Space-Atmosphere-Ocean Interactions in the marine boundary Layer“. No dia 5 de janeiro de 2020, a Sagres partiu de Lisboa e iniciou aquela que seria uma viagem à volta do mundo, de 371 dias. No entanto, recebeu ordens para antecipar o seu regresso a Portugal, por força da pandemia de covid-19, estando previsto o seu regresso para meados de maio. As medições que estão a ser realizadas a bordo do navio vão prosseguir até ao regresso à capital e continuarão, caso a viagem seja retomada mais tarde.

O BIP INESC TEC Magazine entrevistou alguns dos investigadores do INESC TEC, que estiveram a bordo do navio, com o objetivo de compreender os mecanismos que levam às alterações climáticas.

 

SUSANA BARBOSA, investigadora do Centro de Robótica e Sistemas Autónomos (CRAS) e do Centro de Sistemas de Informação e de Computação Gráfica (CSIG)

Local de trabalho de Susana Barbosa no tombadilho do navio. (DR: Susana Barbosa)

No navio, existe um conjunto de medições que estão a ser feitas de forma autónoma, nomeadamente através de antenas e sensores montados nos mastros. Quais foram os trabalhos científicos que foram feitos e serão feitos ao longo da viagem?

Ao longo da viagem há uma vigilância constante do sistema de monitorização a bordo da Sagres de modo a identificar o mais cedo possível qualquer anomalia que exista nos sensores e limitar a eventual perda de dados. Mas não basta recolher dados, avaliar a qualidade dos mesmos é fundamental, e por isso têm vindo a ser desenvolvidos procedimentos de análise exploratória de todos os dados recolhidos durante a viagem. A implementação contínua desses métodos de controlo de qualidade e de gestão de dados permite preparar todos os dados recolhidos durante a viagem para depósito no repositório de dados de investigação do INESC TEC.

Como foi a relação/ o convívio com o Comandante e a restante guarnição que segue a bordo da Sagres?

Desde o início, o senhor Comandante teve um papel fundamental no sucesso do SAIL, não só por todo o apoio que deu mesmo antes da viagem em si, durante a instalação do sistema de monitorização na Sagres, mas também pela sua colaboração ativa no projeto, desde a recolha de amostras biológicas de peixe ao conhecimento que consegue transmitir da sua experiência de navegação e meteorologia, que é uma grande mais valia para o projeto. O relacionamento com a guarnição foi extraordinário, mais do que convidados senti-me verdadeiramente “membro honorário” da guarnição da Sagres! Fomos acolhidos com enorme simpatia por toda a guarnição sem exceção, desde a câmara dos oficiais aos praças. Foi um privilégio viver o dia a dia da navegação na Sagres, e também  alguns dos momentos mais marcantes, como os jantares de apresentação de oficiais à câmara, a festa do rei dos mares (com o próprio Neptuno a bordo durante a travessia do Equador!) ou a celebração do aniversário da Sagres a 8 de Fevereiro, já com os primeiros vislumbres da costa do Brasil no horizonte.

Vista do navio Sagres para o Rio de Janeiro. (DR: Guilherme Amaral Silva)

CARLOS ALMEIDA, investigador do Centro de Robótica e Sistemas Autónomos (CRAS)

Antes da partida, houve o trabalho de equipar o navio-escola Sagres com as tecnologias desenvolvidas e necessárias ao projeto. Quais foram os principais desafios deste trabalho?

Antes da partida do navio-escola Sagres foi uma corrida contra o tempo para que tudo estivesse pronto e a funcionar em pleno, afinal é uma missão de um ano a registar dados continuamente. Depois da fase de seleção e aquisição dos sensores, dos sistemas computacionais, bem como todo o hardware necessário para a instalação, foi feito um pré-projeto de instalação e começamos a preparar tudo em laboratório, mesmo antes de recebermos os equipamentos.

Os maiores desafios foram, por um lado, a adaptação dos sensores para a fixação em espaços confinados e em altura (25 metros) no mastro da Mezena da Sagres, bem como “maritimizar” alguns destes sensores para o ambiente marítimo para operar por longos períodos. Por outro lado, desenvolver aplicações informáticas, capazes de registar dados de forma contínua e muito fiáveis, o Nuno Dias e o António Ferreira fizeram aqui um excelente trabalho.

Tow-fish (DR)

Um grande desafio, e que me deu um gosto especial desenvolver, foi um sistema baseado numa plataforma robótica, capaz de registar dados debaixo de água. Este dispositivo que chamamos de tow-fish foi desenvolvido de raiz no CRAS e testado pela primeira vez na Sagres, na tirada entre Tenerife e Cabo Verde, a segunda da missão. O tow-fish tem a bordo um sistema computacional que regista os dados de 12 sensores diferentes e todos os dias copia esses dados para o sistema de gestão de ficheiros instalado no navio. Existe uma comunicação permanente por fibra-ótica com o tow-fish o que nos permite ver os dados em tempo real. No momento desta entrevista, o tow-fish está na água no meio do atlântico a caminho de Cape Town a registar dados há 15 dias, de forma contínua, sendo rebocado pela Sagres a uma distância de 120 metros.

Mastro da Mezena, onde estão instalados os sensores do INESC TEC. (DR: Susana Barbosa)

 

Registos mostram que o Carlos subiu aos mastros do navio, por exemplo, para limpar e assegurar a manutenção dos sensores do projeto. Esta viagem fez sobressair a sua “veia de marinheiro”? Despertou novos gostos?

Sempre tive uma ligação muito forte com o mar e adoro navegar. O navio-escola Sagres, pela sua beleza, dimensão e expressão, impõe o espírito de marinheiro até a quem nunca teve ligação com o mar. Durante a instalação de todos os equipamentos, subi várias vezes ao mastro da Mezena. Na primeira vez, a sensação é de respeito pela altura e o espanto pela vista lá de cima, depois habituamo-nos à altura e já nem o balanço do navio incomoda. Na tirada entre Rio de Janeiro e Montevideu tive o privilégio de subir ao mastro Grande a navegar (sim, este é o nome do mastro mais alto do navio e são 40 metros). A sensação é indescritível, não há foto nem vídeo que possam mostrar o que sentimos… é liberdade, é imensidão de mar, é paz…. é incrível. Espero ter a oportunidade de subir ao único mastro que ainda não subi, o mastro Traquete.

NUNO DIAS, investigador do Centro de Robótica e Sistemas Autónomos (CRAS)

Enquanto “pioneiros” (primeiros investigadores a embarcar) nesta aventura, que “dicas” deixaram às equipas do INESC TEC que vos foram sucedendo?

Ao sermos os primeiros, tivemos logo uma dificuldade adicional porque passámos toda a viagem, Lisboa a Tenerife, sem contacto com ninguém, quer da nossa família, quer do INESC TEC para reportar como estava a correr a missão. Não havia internet nem telefone. A partir de Tenerife, o INESC TEC disponibilizou um telefone de satélite para os investigadores, que permite comunicarmos a qualquer altura (além disso o pessoal técnico do navio já conseguiu instalar a internet, ainda que limitada, a bordo). As recomendações que demos ao pessoal seguinte foi essencialmente sobre a forma como funciona um navio militar.

Local de trabalho de Nuno Dias. (DR: Nuno Dias)

Por exemplo, existem escadas que só podem ser usadas pelo Comandante (as escadas de bombordo); tínhamos de estar a horas para o almoço e jantar já que nenhum oficial, incluindo o Comandante e o imediato, se sentava enquanto as visitas (nós) estivessem presentes; o acesso às zonas dos oficiais só podiam ser feitas após pedir autorização; existiam duas cadeiras na messe dos oficiais que só podiam ser usadas pelo Comandante e imediato. Claro que só aprendemos isto (ninguém nos explicou!) porque nos primeiros dias quebrámos todas as regras e éramos alertados pelos oficiais!

Depois deixámos dicas de como se gere a parte computacional do sistema e o tipo de problemas que podem acontecer e como os resolver. Por agora, está praticamente tudo automatizado e a intervenção é quase nula! Só o tow-fish precisa de intervenção – é preciso colocá-lo/tirá-lo da água às ordens do Comandante!

Local de trabalho de Nuno Dias. (DR: Nuno Dias)

Qual a contribuição do seu trabalho para o projeto?

A minha contribuição consistiu na implementação dos diferentes softwares, que fazem o registo dos dados dos sensores, a respetiva sincronização com o instante temporal em que as medidas são adquiridas e o backup dos dados para um sistema de armazenamento dedicado. Paralelamente a isto, desenvolvi uma ferramenta de monitorização do estado global de todo o sistema. Esta ferramenta é usada a bordo por nós e pelos oficiais, e também por nós de forma remota (todos os dias acedo ao navio remotamente e verifico se está tudo a funcionar como devia, recolho alguns dados importantes e distribuo pelas pessoas interessadas os gráficos das últimas 24 horas de viagem.

ANTÓNIO FERREIRA, investigador do Centro de Robótica e Sistemas Autónomos (CRAS)

Enquanto “pioneiros” (primeiros investigadores a embarcar) nesta aventura, que “dicas” deixaram às equipas do INESC TEC que vos foram sucedendo?

Aos colegas que nos sucederam deixámos algumas indicações relacionadas com o sistema do SAIL instalado a bordo, bem como algumas dicas sobre o protocolo a seguir no navio. Como a partida de Lisboa foi um bocado caótica, não nos fizeram nenhuma introdução às regras que devíamos seguir. Fomo-las descobrindo à medida que fazíamos asneira. Uma das situações mais caricatas aconteceu na câmara de oficiais, onde são servidas as refeições. Para além da mesa de refeições existe também um pequeno espaço de convívio, com algumas cadeiras e uma mesa de centro, onde habitualmente se aguarda a hora da refeição.

Cerimónia Naval. (DR: Guilherme Amaral Silva)

Acontece que num dos dias, quando o Comandante Maurício Camilo entra na sala, encontrou-me sentado inadvertidamente no seu lugar. Quando ele me diz que aquele lugar estava reservado para ele, levantei-me imediatamente e troquei de cadeira. Passei para a cadeira do Imediato. Só percebi o erro no instante em que Imediato entra e reclama o seu lugar.

Vista a partir do castelo do navio. (DR: Guilherme Amaral Silva)

Outra regra que quebrámos foi o acesso à ponte pela escada de bombordo, que mais uma vez está reservada para uso exclusivo do Comandante. Outras falhas incluem o acesso à ponte sem pedir licença ao Oficial ou acesso à proa sem pedir licença ao vigia, que se encontra 24 horas a monitorizar o oceano em frente do navio.

Qual a contribuição do seu trabalho para o projeto?

No projeto SAIL, sou responsável pelo sistema de localização, que envolve múltiplas antenas GPS e sensores inerciais. O seu propósito consiste na determinação, com grande precisão, da posição global do navio, bem como a sua orientação no espaço 3D. Esta informação é crucial para uma correta georreferenciação dos dados obtidos pelos restantes sensores. O sistema GPS fornece ainda referências de tempo para efeitos de sincronização de relógios, quer de computadores como de sensores. Foi estabelecida uma rede de sincronização, que garante uma base de tempo comum a todos os sistemas, para que os dados dos diversos sensores sejam coerentemente etiquetados do ponto de vista temporal.

GUILHERME AMARAL SILVA, investigador do Centro de Robótica e Sistemas Autónomos (CRAS)

Marinheiros numa faina de mastros. (DR: Guilherme Amaral Silva)

Havia uma rotina diária de bordo, como acontece para os membros da Marinha?

Sim! Excluindo o momento da formatura, seguíamos a rotina diária da guarnição. A alvorada era às 7h da manhã. Todos os dias, o cabo Santos interpretava com um clarim, uma música (era sempre a mesma) que era reproduzida no sistema áudio do navio. Posteriormente era o momento do pequeno almoço. Às 11h15 era servido o almoço. Nós, civis, podíamos escolher se íamos à primeira mesa ou à segunda mesa (mesa principal). Enquanto convidados do Comandante, foram raras as vezes que optámos pela primeira. O jantar era servido às 19h. Tirando os momentos das refeições, não havia rotina. Cada dia era um dia. Tudo dependia das condições do mar e de que forma o vento se apresentava. Sempre que necessário havia “fainas de mastros”, momento em que se abriam/recolhiam as velas ou se alterava a posição/rotação das vergas.

Quando não se está a trabalhar, como se passa o tempo no navio? Foi possível ter momentos de lazer a bordo?

A tirada foi extensa e com excelentes condições de mar! Não houve problemas de maior, possibilitando elevada estabilidade no nosso sistema e, consequentemente, a existência de alguns momentos de lazer. Nessas alturas, apesar do leque de oferta de atividades não ser vasto, passava-se o tempo praticando desporto, assistindo filmes, jogando numa consola de jogos com outros oficiais, conversando com a guarnição ou, simplesmente, admirando a beleza do mar aberto.

Vista do navio Sagres. (DR: Guilherme Amaral Silva)

O projeto SAIL tem a coordenação técnica de Eduardo Silva (CRAS) e a coordenação científica de Susana Barbosa. Além dos seus coordenadores e investigadores entrevistados, o projeto envolve ainda a participação de Luís Lima, investigador do CRAS.

O projeto SAIL conta com as parcerias da Marinha/MDN (CINAV), do AIR Centre (Atlantic International Research Centre), do CIIMAR (Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental) e da Universidade do Minho. A Universidade de Reading, a Universidade Federal do Paraná e o INESC P&D Brasil são também colaboradoras do projeto.

 

Os investigadores mencionados nesta notícia têm vínculo ao INESC TEC e ao P.Porto/ISEP.

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