Bem-vindos à “Liga dos Campeões” das telecomunicações

Desde os primórdios da civilização que a comunicação tem desempenhado um papel essencial na forma como interagimos.  Dos sinais de fumo usados pelos povos antigos até aos modernos sistemas de telecomunicações, testemunhamos uma evolução tecnológica sem par. Substituíram-se os pombos correio (que, durante séculos, foram a forma mais rápida e segura de transmitir mensagens em diferentes contextos históricos) pelos telégrafos, que revolucionaram a comunicação à distância através da utilização do código Morse. Em 1876, Alexander Graham Bell torna possível a comunicação por voz à distância, com a invenção do telefone. Seguem-se a rádio e a televisão que permitiram a disseminação de informações e entretenimento em massa, e, nos anos 90, populariza-se a Internet. Os dispositivos móveis transformam-se, no espaço de 20 anos, em smartphones e, 40 anos volvidos, já ninguém se lembra de como tudo começou. Superamo-nos, diariamente, nesta missão de quebrar as barreiras físicas e temporais que nos separam. Deste lado, as palavras fluem através do teclado de um computador para chegar até aí com um simples clique.

A miniaturização de dispositivos, o desenvolvimento de novos materiais e a melhoria das redes de telecomunicações têm permitido a criação de sistemas de comunicações cada vez mais rápidos, confiáveis e acessíveis. As telecomunicações desempenham um papel crucial no crescimento económico, possibilitando transações financeiras online, promovendo a colaboração entre empresas e facilitando a expansão dos negócios. Além disso, têm impulsionado o progresso tecnológico em diversos setores, como é o caso da inteligência artificial ou realidade virtual (VR).

Em que ponto estamos? Para onde caminhamos? Quais os desafios atrelados à evolução tecnológica na área das telecomunicações? Venha descobrir, com a ajuda dos nossos investigadores! .–. .-. . .–. .- .-. .- -.. — ..–..

 

De geração em geração: a evolução das telecomunicações

Já em 1986 o INESC TEC trabalhava num projeto – SIFO: Serviços Integrados sobre Fibra Ótica – cujo objetivo era, como o próprio nome indica, disponibilizar serviços integrados de comunicações sobre fibra ótica – transportar dados, fazer chamadas de voz e videoconferências, entre outros – em casa das pessoas. Quem o conta é Manuel Ricardo, Diretor Associado do INESC TEC. “Na altura, havia telefones analógicos ligados à rede, e era preciso marcar os números com os discos. Não havia transferência de dados, não havia Internet, não havia telemóvel. A televisão vinha pelas antenas colocadas no telhado das casas. Lembro-me de falar com pessoas que não estavam ligadas à tecnologia e ninguém percebia o que eu estava a fazer. O INESC TEC estava a trabalhar na linha da frente e, sob esse ponto de vista, foi absolutamente precursor”.

Estando na vanguarda, o INESC TEC foi tendo sempre um papel na evolução tecnológica das telecomunicações. Hoje, a investigação centra-se na área do 6G, ainda que a maior parte de nós só agora tenha começado a ouvir falar do 5G, que ainda não está totalmente implementado. Porque é que isto acontece? Dado que há muitos intervenientes no ramo das telecomunicações (fabricantes, operadores, grupos de investigação) é necessário que este esteja normalizado e regulamentado. Isto vai sendo feito de forma regular e, de 10 em 10 anos, aparece uma nova geração. Tivemos o 3G em 2000, o 4G em 2010, o 5G em 2020 e perspetiva-se que, em 2030, entremos na 6.ª geração das telecomunicações. Dentro de um ou dois anos, a comunidade internacional vai definir objetivos e requisitos desta rede, para que se trabalhe na sua normalização, regulação e fabricação. Neste momento, há apenas visões e ideias.

 

Telecomunicação com superpoderes: do sensing às superfícies reconfiguráveis

Consegue imaginar redes de telecomunicações que, para além de comunicar, vão ser capazes de funcionar como se fossem radares? É este o pressuposto da sensorização. “As antenas que estão em cima dos edifícios, para além de comunicar com os telemóveis, vão ser capazes de perceber e interpretar o ambiente, para além do observável, com precisão de centímetros ou milímetros. Vamos ter sistemas que conseguem ver o que os rodeia”, explica Manuel Ricardo.

O sensing permite “ver” além do observável, tal como a carta do Tarot “The Seer”.

 

Luís Pessoa, Investigador do INESC TEC, no Centro de Telecomunicações e Multimédia, tem também trabalhado nesta área, e considera que a sensorização terá um ponto de viragem com a introdução do 6G. “A comunidade científica percebeu que os equipamentos de comunicações sem fios têm grande potencial para serem simultaneamente utilizados para sensing, o que é ainda mais interessante à medida que as frequências de operação sobem, permitindo chegar-se a uma maior precisão”. As mudanças poderão ter impacto na vida do utilizador comum, mais ainda do ponto de vista dos negócios e da indústria. “O 5G já endereça algumas das necessidades das empresas ao ser capaz de, através das redes privadas, assegurar serviço com maior qualidade e fiabilidade, mas sem a componente do sensing. O sensing ou sensorização vai permitir uma perceção do ponto de vista digital, criando modelos do que está a acontecer e permitindo localizar com grande precisão pessoas e terminais. Por exemplo, nas fábricas do futuro, que é um dos cenários que nós estamos a estudar, prevê-se a integração de robôs cada vez mais autónomos e que vão colaborar entre eles. Será preciso, por isso, um modelo completamente digital de todo o ambiente para perceber, e até para antecipar, eventuais acidentes, ou para, do ponto de vista da eficiência, alterar tarefas”, refere.

Sobretudo em contexto empresarial, o 6G parece ter especial relevância. “O Wi-Fi é também uma tecnologia que está muito disseminada, mas é tipicamente mais usada para as redes home/office. Porquê? Por causa do alcance e pelo facto do espetro ser partilhado. No caso do Wi-Fi a potência não pode ser muito alta, e é necessário ter alguma densidade de access points para garantir uma boa cobertura, por exemplo, dentro de um edifício. É por isso que as empresas olham para o 5G ou 6G como o futuro, seja pela questão da cobertura como da fiabilidade”, explica Luís Pessoa.

Outra das grandes vantagens do 6G será a capacidade de comunicação, ao permitir débitos de transmissão cada vez maiores: passaremos de um Gigabit/s para um Terabit/s. Isto terá implicações noutras tecnologias, como é o caso da realidade virtual e da realidade aumentada. Manuel Ricardo exemplifica: “No futuro, o estádio de futebol pode entrar em nossa casa, em ambiente imersivo. Para que isto aconteça é preciso transmitir muita informação em simultâneo e com grande rapidez”.

Atualmente comunicamos nos 3 GHz[1], prevendo-se chegar aos 30 GHz com o 5G a funcionar em pleno. Com o 6G será possível trabalhar com frequências entre os 100 e os 300 GHz – o que poderá levantar diversos desafios, nomeadamente, ao nível da cobertura do sinal. É neste contexto que o INESC TEC está a trabalhar no desenvolvimento de superfícies reconfiguráveis, no caso antenas, no âmbito do projeto TERRAMETA, vocacionadas para estas frequências mais elevadas, de forma a dar resposta às questões de cobertura. “Em grandes cidades, quando existem muitos edifícios, os sinais têm dificuldade em ser recebidos em certas zonas. O mesmo acontece dentro de edifícios, onde existem muitos obstáculos que podem bloquear a propagação do sinal. Estas superfícies vão refletir de forma inteligente os sinais para onde estão os utilizadores. Funcionam quase como duplicadores de sinal, retransmitindo o sinal e fazendo seguimento do utilizador. Podemos vir a ter destas antenas em janelas, paredes e tetos de edifícios, nos vidros de automóveis ou em outdoors publicitários”, adianta Luís Pessoa.

 

Sistemas de comunicação mais inteligentes e sustentáveis

Estima-se que 20 mil satélites de baixa altitude sejam suficientes para cobrir a superfície da Terra, algo que poderá acontecer nos próximos anos com o aparecimento da rede de telecomunicações dita não-terrestre. Será uma rede complementar à que temos já instalada e que poderá aumentar a capacidade de comunicação, em situações específicas. Cenário 1: Um festival de música numa zona rural, incapaz de suportar a grande densidade de telemóveis por metro quadrado. Cenário 2: Um incidente numa área onde não há rede de comunicações, como um incêndio florestal. Em ambos os cenários, a solução podia passar pela utilização de células móveis. “Tivemos já vários projetos de investigação nesta área. Enviamos um drone que acompanha a movimentação dos bombeiros ou das equipas de emergência no terreno, dando-lhes cobertura, e permitindo que tenham sempre comunicações de voz e vídeo, mas também acesso a mapas”, explica Manuel Ricardo. O INESC TEC tem feito também investigação na área das comunicações subaquáticas, utilizando robôs com antenas, ligados a plataformas de baixa altitude sustentadas, por exemplo, em balões de hélio.

Por detrás das redes de telecomunicações há um sistema muito complexo, composto por centenas de funções que são executadas em pontos diferentes da rede e que têm de operar entre si. As redes 6G serão o cenário perfeito para que algumas destas funções possam ser substituídas por redes neuronais ou cérebros artificiais. A grande vantagem é que estas funções passarão a ser feitas de forma mais rápida e eficiente. Neste âmbito, o INESC TEC colabora, desde 2007, num simulador de redes de telecomunicações – Network Simulator 3 (ns-3) – escrito em linguagens de programação acessíveis a toda a gente e, portanto, qualquer grupo de investigação pode ter acesso a ele e contribuir para melhorá-lo. E o trabalho que tem sido feito é absolutamente pioneiro. “Por um lado, estamos a tentar perceber de que forma é que novas funções de inteligência artificial podem ser integradas em redes de telecomunicações e, por outro lado, usamos o próprio simulador para gerar dados sintéticos, inexistentes à data, e que são necessários para treinar as redes neuronais nos cenários futuristas que se anteveem. A ideia é que sejam capazes de implementar as funções tradicionalmente feitas com algoritmos”, acrescenta Manuel Ricardo.

Por detrás das redes de telecomunicações há um sistema muito complexo, composto por centenas de funções.

 

Ambiciosos na tecnologia, mas também em termos de sustentabilidade, os últimos projetos em que o INESC TEC se tem envolvido (SUPERIOT e TORIS) procuram, por exemplo, perceber que materiais amigos do ambiente podem ser usados no desenvolvimento de antenas. “Estamos a alinhar-nos com a tendência da sustentabilidade, a nível ambiental, mas também económico. Do ponto de vista ambiental, procuramos que o fabrico não tenha uma pegada significativa e que os materiais sejam recicláveis. Por outro lado, apostamos em tecnologias que possam ser fabricadas em larga escala a um baixo custo”, refere Luís Pessoa.

Manuel Ricardo vai mais longe, lembrando que, na comunidade das telecomunicações, existe a missão de reduzir o consumo energético. “Temos investigação em curso no sentido de fazer com que os pontos de acesso rádio e o equipamento que está por trás das antenas deixem de funcionar ou comecem a funcionar com menos energia quando não são necessários. Da mesma forma que desligamos normalmente as luzes passaremos a desligar as comunicações”.

O projeto CONVERGE, por exemplo, pretende desenvolver um conjunto de ferramentas inovadoras para apoiar infraestruturas de investigação, tendo como base vários destes conceitos. Combinando comunicações sem fios, visão computacional, sensorização e machine learning, o projeto, liderado pelo INESC TEC, alicerça-se no paradigma “ver-para-comunicar e comunicar-para-ver.

“Estão a ser construídos equipamentos científicos que vão ser colocados num conjunto de laboratórios na Europa e nos Estados Unidos da América e que poderão ser usados por investigadores no mundo inteiro, que lhes poderão aceder remotamente, para fazer experiências ou aceder a data sets[2]. Vamos ainda ter modelos computacionais (Digital Twin), inspirados nas técnicas de simulação de redes que temos aprendido com o ns-3, que vão replicar estes ambientes laboratoriais que estamos a criar. É algo verdadeiramente relevante e universal. Eu não diria que é a Primeira Divisão; eu acho que nos estamos a bater muito bem na Liga dos Campeões Europeus das telecomunicações”, adianta Manuel Ricardo.

 

Confiar nas telecomunicações: atendemos a chamada?

Com esta aposta tão ostensiva do sensing nas redes de 6.ª geração coloca-se a questão: Estaremos seguros?

António Pinto, investigador no Centro de Sistemas de Computação Avançada do INESC TEC tem dirigido o foco das suas investigações para as questões da segurança e privacidade e adianta que, dado o caracter de hiperconetividade do 6G, há muito trabalho a ser desenvolvido. “O 6G permite produzir serviços completamente disruptivos e inovadores. Mas também gera um problema significativo do ponto de vista da exposição das pessoas, porque, na prática, passamos a ser sensores de movimentação. E, mesmo que a tecnologia tenha um propósito que não seja o de controlo das massas e das pessoas, nada nos diz que os dados não possam vir a ser utilizados por players menos corretos, como hackers, financiados por grupos poderosos e até mesmo governos. É importante que os nossos receios não nos sirvam de barreira tecnológica, mas também é importante que a tecnologia nova que surja já venha dotada de mecanismos de proteção”, sugere o investigador.

A União Europeia tem dados sinais claros de preocupação com a questão da segurança, abrindo linhas de financiamento para investigação na área.  É aqui que entra o projeto PRIVATEER, no qual o INESC TEC participa, que estuda os chamados security enablers, ou seja, funcionalidades ou componentes que promovem a privacidade e a segurança e que possam ser utilizados nas futuras redes 6G. Foram identificados potenciais cenários, como as cidades inteligentes, mas ainda há uma grande incerteza. “Queremos descobrir quais são as tecnologias principais do 6G e construir mecanismos de promoção de cibersegurança e de privacidade, que qualquer operadora possa instalar. Por exemplo, com o 6G haverá uma monitorização intensiva em locais públicos, porém, ao contrário de um sistema de videovigilância que não identifica automaticamente as pessoas, a sensorização vai permitir recolher identificadores associados às pessoas, sem que elas se apercebam e sem que se possam proteger”, acrescenta.

O estudo sobre mobilidade “Unique in the crowd”, realizado no Massachusetts Institute of Technology, conseguiu identificar 95% das pessoas de um universo de 1,5 milhões de indivíduos, através de chamadas telefónicas ou SMS. Se tal foi possível através de antenas GSM, o que podemos esperar do 6G?

“Há aqui duas premissas. A pessoa sabe que está a ser monitorizada e pode adequar o seu comportamento, desligando o telemóvel, por exemplo. Ou a pessoa não sabe que está a ser monitorizada e aí temos de detetar esses comportamentos intrusivos. Um dos security enablers que o PRIVATEER está a trabalhar é o da deteção de malware e de comportamentos incorretos e a partilha de indicadores desses comportamentos. O outro prende-se com a inteligência artificial. Há um problema significativo na utilização da inteligência artificial, que funciona com base machine learning. Queremos, por isso, criar security enablers baseados em explainable AI”, conclui António Pinto, reforçando que, com o desenvolvimento e implementação destas novas tecnologias, o segredo passará por encontrar um equilíbrio para a sua utilização.

 

“Help me, Obi-Wan Kenobi. You’re My Only Hope!” Será assim o futuro?

 

Ainda não estamos na reta final no que ao desenvolvimento das telecomunicações diz respeito Numa altura em que a televisão, por exemplo, nos traz anúncios que prometem o advento do 5G, já com o 6G no horizonte, faz sentido recuar quase 50 anos, e relembrar que George Lucas usava, em 1977, no episódio IV da saga Star Wars os hologramas como meio de transmissão de mensagens. Caminharemos nesse sentido?

 

[1] Gigahertz (GHz) é a unidade de medida de frequência equivalente a mil milhões de hertz
[2] Resultados das experiências que são feitas, que depois ficam gravados em base de dados e poderão ser usados por outros investigadores, por exemplo, para treinar novos modelos de redes neuronais e ser usados para fazer novos modelos de inteligência artificial.
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