Thomas E. Kurtz nasceu no Estado do Illinois, nos Estados Unidos da América (EUA), a 22 de fevereiro de 1928. Morreu a 23 de novembro de 2024, aos 96 anos de idade. O The New York Times e o Financial Times dedicaram-lhe longos artigos após a sua morte, onde destacam o seu papel na democratização da computação. Mas quem foi Thomas Kurtz? E qual o papel que teve na ciência e tecnologia? E na sociedade? E na educação? E, ainda, quantas pessoas inspirou este homem?
Comecemos pelo início. Thomas Kurtz formou-se em matemática no Knox College, no Estado em que nasceu, em 1950. Ainda na mesma década tira um mestrado e conclui um doutoramento em estatística pela Universidade de Princeton. É durante a sua formação que desenvolve interesse pela área da computação, que começa a emergir, nesta época, como uma disciplina científica. De Princeton vai para Dartmouth, onde passa praticamente toda a sua carreira e onde contribui, de forma significativa, para integrar a computação no currículo académico do Departamento de Matemática.
Durante quase 10 anos – entre 1966 e 1975 – exerce funções como diretor do Kiewit Computation Center e a sua liderança destaca-se pelos avanços que conseguiu na utilização de computadores para a educação.
Qual a revolução que Thomas Kurtz espoletou? E de que forma é que está relacionada com a democratização do acesso ao computador pessoal?
Quase todos aqueles que trabalham em ciência e tecnologia já esbarraram, em algum momento das suas vidas, com o termo “BASIC”. O que muitos não sabem é que esta linguagem de programação, que foi desenvolvida para ser acessível a todas as pessoas, mesmo as que não tivessem formação técnica, para que pudessem aprender e usar computadores, foi desenvolvida por dois homens: Thomas Kurtz e John Kemeny.
“O nome de Thomas Kurtz é incontornável. Para além de pioneiro na implementação de sistemas de time-sharing e cocriador da linguagem BASIC, foi na minha opinião, a figura central na democratização da programação. Essa democratização foi conseguida ao idealizar uma linguagem simples que fez com que fosse possível a qualquer pessoa, mesmo sem conhecimentos técnicos, interagir com computadores e explorar a programação”, quem o diz é o investigador do INESC TEC Ricardo Queirós.
Estávamos no ano de 1964 – cinco anos antes de o homem conseguir chegar à Lua, dois anos depois de ser lançado o Telstar, o primeiro satélite de comunicações ativo, que permitiu transmissões televisivas entre continentes – quando Thomas Kurtz e John Kemeny lançam, no Dartmouth College, o BASIC (Beginner’s All-Purpose Symbolic Instruction Code) com um objetivo muito bem definido: democratizar o uso de computadores a todos os estudantes.
O que é que existia antes do BASIC e qual a novidade introduzida pela dupla Kurtz e Kemeny? Antes de existir esta linguagem, os computadores operavam em modo de “processamento em lote”, ou seja, um único utilizador ocupava todo o espaço de processamento. A novidade introduzida pelo BASIC está relacionada com o conceito de “time-sharing”, uma vez que passou a ser possível a múltiplos utilizadores acederem simultaneamente ao mesmo computador. Esta inovação é, aliás, precursora de sistemas modernos que hoje conhecemos, como a computação em nuvem.
Ricardo Queirós, investigador INESC TEC e docente no IPP-ESMAD
Como é que um investigador português, que venceu, em 2024, um prémio internacional de matemática, e Thomas Kurtz se relacionam? E como é que Kurtz influenciou outro investigador português que já tem doze livros publicados na área da programação?
Esta estória começa nos anos 80, duas décadas depois da invenção do BASIC. Álvaro Figueira – na altura ainda estudante do ensino básico e depois secundário – apaixona-se pela área da programação.
“Comecei a programar sem ter um computador”, conta Álvaro, “primeiro com uma variação do BASIC (o “Sinclair BASIC”), usada pelo ZX Spectrum”. “Como tinha muita curiosidade sobre o que era o ZX Spectrum e o que era “programação”, pedi o manual a um colega, estávamos na altura no 8º ano (anos 80), e eu numa escola de Artes. Posso dizer que fiquei logo encantado com o mundo de possibilidades, aquilo parecia um conjunto de legos, mas com peças infinitas! No ano seguinte comprei o Timex 2048, que era completamente compatível com a versão de BASIC usada no Spectrum”, continua. “Mais tarde no 10º ano (numa área tecnológica) comecei a programar em GW-Basic, e depois em BASICA, que eram versões muito parecidas do mesmo, com ligeiros melhoramentos e inclusão de funcionalidades em termos de som, gráficos e partindo de pressupostos um pouco mais elaborados do Hardware e memória instalada (ROM)”.
Quem também recebeu um ZX Spectrum quando era adolescente foi Ricardo Queirós, que para além de investigador no INESC TEC e docente no Instituto Politécnico do Porto (P. Porto), tem já vários livros – doze! – publicados sobre programação! “Lembro-me perfeitamente do momento em que a minha mãe me ofereceu o ZX Spectrum nos anos 80. Foi um marco. Aos 14 anos, comecei a explorar as potencialidades daquele pequeno “teclado” e comecei a criar os meus primeiros programas. Inicialmente, eram simples comandos para desenhar formas geométricas no ecrã, mas rapidamente percebi a lógica e a beleza do pensamento algorítmico. Esse contacto inicial mudou completamente a minha trajetória. Até então, estava inclinado a seguir Economia, mas a liberdade criativa e as possibilidades oferecidas pela programação convenceram-me de que o meu futuro era na Informática” – e o INESC TEC agradece este presente oferecido a Ricardo Queirós, que o levou a mudar de rumo. “A visão de Kurtz na democratização da programação impactou profundamente o meu percurso, desde os primeiros passos no mundo da tecnologia até o meu trabalho atual”, acrescenta ainda.
De facto, nem o Sinclair BASIC nem o ZX Spectrum foram desenvolvidos por Thomas Kurtz, mas sim pela Sinclair Research, porém, foram variantes e seguiram a filosofia original do BASIC e ambos ajudaram a popularizar o uso pessoal dos computadores numa altura em que estes equipamentos não só eram complexos, como caros e, por isso, de difícil acesso a muitas pessoas. A influência do BASIC nesta democratização da tecnologia a nível mundial é, por isso, inegável, porque sem o BASIC original de Kurtz é bem provável que o Sinclair BASIC nunca tivesse existido, pelo menos, como veio a desenvolver-se, novamente com um objetivo claro de democratizar a área da computação, tal como Kurtz e Kemeny tinham sonhado.
Já na licenciatura, e em plena década de 90 do século XX, Álvaro Figueira não tem dúvidas: “o BASIC influenciou imenso a minha escolha de área de licenciatura e foi muito importante para que eu ganhasse gosto pela programação. Foi, efetivamente, a minha iniciação na informática”, conta o investigador do INESC TEC que acabou por licenciar-se em Matemática Aplicada, no ramo de Ciências dos Computadores, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) e que hoje, entre vários outros cargos, é diretor do curso de mestrado em Ciência de Dados na mesma instituição.
Também Ricardo Queirós afirma que a influência de Kurtz o guiou, mesmo que de forma indireta. “A sua visão de tornar a programação acessível inspirou-me a trabalhar em iniciativas que desmistificam a tecnologia e que promovem o gosto pela programação. E foi assim que deixei o mundo empresarial (onde trabalhava como programador) e abracei o mundo académico, onde iniciei o mestrado na FCUP. Tinha um propósito único: ganhar bagagem científica (e técnica) para investigar novas formas para tornar a aprendizagem da programação mais inclusiva e eficaz”, conta o cientista.
Álvaro Figueira, investigador INESC TEC e docente na UP-FCUP.
O impacto do trabalho de Kurtz no INESC TEC
Mas não foi só o seu percurso académico que foi influenciado por Kurtz, Ricardo Queirós conta como, em 2009, quando passa a fazer parte da equipa de investigadores do INESC TEC, mantinha os ideais do matemático bem presentes. O primeiro projeto de investigação que Ricardo trabalhou no INESC TEC era de âmbito europeu e chamava-se Edjudge e consistia numa plataforma de avaliação automática de exercícios de programação – “a ideia era simplificar o trabalho dos professores e oferecer aos estudantes um feedback automatizado e de qualidade, alinhado com o ideal de Kurtz de que a tecnologia deveria servir para capacitar todos, independentemente do seu nível de conhecimento”.
Mais tarde, em 2012, como resultado do seu trabalho de Doutoramento na FCUP, Ricardo Queirós evolui a abordagem utilizada no projeto Edjudge para o projeto Ensemble, “que integrou sistemas colaborativos e adaptativos na avaliação de código”. Com este trabalho, o investigador vence a primeira edição do Prémio de Inovação Pedagógica em Ensino a Distância (PIPED).
O trabalho de Kurtz aplicado aos dias de hoje
Por esta altura do artigo, já todos percebemos que a democratização do acesso ao computador pessoal e à programação não teriam sido iguais se não fosse o trabalho de Kurtz. Mas será que à luz dos dias de hoje é suficiente termos sistemas que automatizam o processo de ensino-aprendizagem da programação de computadores? Ricardo Queirós é da opinião que não. “Já com bastante trabalho na área iniciei a minha carreira docente e apliquei tudo aquilo que tinha aprendido e criado”, revela o cientista, mas foi precisamente na componente prática que percebeu que os “estudantes continuavam pouco envolvidos nos processos”.
E como fez Ricardo Queirós para conseguir envolver mais os estudantes? A partir de 2015, começou a explorar a área da gamificação como estratégia para aumentar o interesse dos estudantes pela programação. “Desde então, integrei uma série de projetos europeus – tais como, FGPE – Framework for Gamified Programming Education, FGPE+ Learning tools interoperability for gamified programming education, JuezLTI, FGPE++ – Gamified Programming Learning at Scale – que combinam a avaliação automática com a gamificação”, explica. “Todos estes projetos deram origem a ferramentas open source que combinam feedback automatizado com mecânicas e elementos de jogo, como pontos, rankings, badges, tornando a aprendizagem da programação mais envolvente, acessível e divertida. Estes projetos têm sido apoiados por dezenas de publicações científicas e livros que validam as suas abordagens e os resultados obtidos”, conta Ricardo Queirós.
A busca do investigador no que à inclusão tecnológica diz respeito tem sido grande e nisso garante que Kurtz foi a inspiração – “no fundo, todas estas iniciativas e práticas inovadoras, refletem o impacto da visão de Kurtz no meu trabalho”.
“Para mim, Thomas Kurtz foi mais do que um criador de uma linguagem. Foi um visionário que acreditava num mundo onde a tecnologia seria para todos. Essa crença moldou não apenas a minha escolha de carreira, mas também o foco do meu trabalho enquanto docente e investigador. Através dos projetos que desenvolvo, tento criar ferramentas que envolvam alunos e professores, desmistificando a complexidade da programação e promovendo o acesso à tecnologia. Tal como Kurtz, acredito que só através da inclusão e da simplificação podemos criar um futuro em que a tecnologia realmente esteja ao alcance de todos”, conclui Ricardo Queirós.
Radical ou não para a época, Kurtz revolucionou a área da programação e inspirou milhares de estudantes, docentes, investigadores ao longo de décadas. Álvaro Figueira e Ricardo Queirós são apenas dois exemplos do legado deixado por este homem, que é agora reconhecido na morte, mas que não deixou de ser homenageado em vida.
Prémios e homenagens a Thomas Kurtz
A instituição que o recebeu, a Dartmouth College, não poupou Kurtz no reconhecimento pela obra feita e pelo legado deixado. Para além de o ter nomeado Professor Emérito pelas décadas de trabalho dedicado à instituição, a Dartmouth College lançou, ao longo dos anos, várias iniciativas e programas de tecnologia, em especial no que diz respeito à computação acessível, relacionados com a visão e os ideais de Kurtz.
Também o IEEE o reconheceu com o Computer Pioneer Award, em 1991, pelas contribuições inovadoras no desenvolvimento do BASIC e do Dartmouth Time-Sharing, a American National Standards Institute (ANSI) considerou o trabalho de Kurtz na padronização do BASIC como um dos principais responsáveis por conseguir tornar a linguagem amplamente utilizável e consistente. Porém, esta gratidão foi extensível à indústria, com líderes tecnológicos como Bill Gates a reconhecerem que parte do sucesso que tiveram se deve ao BASIC de Kurtz e Kemeny.
Em 2014, 50 anos depois da criação do BASIC, a Dartmouth College produziu um documentário intitulado “BASIC at 50”. A produção conta a história e o impacto do BASIC e destaca as contribuições de Thomas Kurtz e de John Kemeney, incluindo entrevistas a Kurtz que mostram como foi desenvolvida esta linguagem de programação e a influência que tem na computação moderna.
O legado de Kurtz é incontornável quer na ciência e tecnologia, na indústria ou na educação, como na democratização do acesso aos computadores, algo percebido pelas novas gerações como óbvio, mas que à luz da década de 60 do século XX foi, de facto, uma revolução.