NCIS Asprela: combater fraudes através da tecnologia

O que é que Sherlock Holmes, Erin Brockovich e Lisbeth Salander têm em comum com os investigadores do INESC TEC?  Se na ficção, estas personagens usam o raciocínio dedutivo e a atenção aos detalhes para resolver crimes complexo, no mundo real é a tecnologia que começa a assumir esse papel. No INESC TEC, sensores, algoritmos de rastreabilidade ou inteligência artificial são, hoje, as ferramentas usadas para analisar as cadeias alimentares, encontrar padrões suspeitos ou detetar infrações ambientais escondidas. E motivos para agir não faltam. O relatório anual de 2023 do Alert and Cooperation Network (ACN) registou 758 notificações de suspeitas de fraude alimentar, um aumento de 26% em comparação com o ano anterior. Já a criminalidade ambiental é hoje considerada um dos crimes mais lucrativos a nível global, com a Europol a estimar que represente entre 110 e 281 mil milhões de euros por ano.

Da pólo da Asprela, na cidade do Porto, para o mundo, seguimos, neste artigo, a investigação do INESC TEC nestas duas áreas.

 

 

Sabem realmente o que estão a consumir?

Vivemos numa era em que os alimentos, até chegarem à nossa mesa, percorrem quilómetros, e é nesse trajeto que a fraude pode acontecer: rotulagens falsas, origens adulteradas, ingredientes trocados, ou produtos que não são o que prometem ser. Em 2013, as notícias trouxeram a público que vários supermercados no Reino Unido estavam a vender carne de cavalo como se fosse carne de vaca em produtos como hambúrgueres. Em 2016, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) apreendeu sete toneladas de uvas e cinco mil litros de mosto de um veículo de mercadorias “por tentativa de introdução de uvas em zona demarcada, sem qualquer documentação da proveniência de origem“. Mais recentemente, têm sido levadas a cabo ações de fiscalização para garantir a autenticidade dos vinhos.  Em dezembro de 2024, a ASAE desmantelou um esquema fraudulento nos distritos de Aveiro e Bragança, onde mais de 16.500 litros de óleo alimentar foram rotulados indevidamente como azeite.
Quando se fala em detetar uma fraude alimentar, pensamos, de imediato, em análises laboratoriais, inspeções policiais e de autoridades de seguranças. Mas, e se houvesse tecnologia que nos permitisse rastrear os processos produtivos e descobrir a fraude ainda antes de acontecer? Nas aventuras de Sir Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes contava com Dr. Watson para o ajudar a desvendar os mais intrincados mistérios. No INESC TEC, temos o nosso próprio WATSON: o parceiro tecnológico dos investigadores no combate à fraude alimentar. Este projeto europeu combina tecnologias de ponta como blockchain, inteligência artificial, sensores e sistemas de geolocalização que podem ser usados em vários pontos da cadeia de valor de um produto. Cada país está a testar um piloto, atuando sobre a cadeia de valor de um produto específico: o vinho em Portugal, o mel em Espanha, o azeite na Grécia, a carne na Alemanha, os lacticínios na Finlândia e o peixe na Noruega.

Pedro Carvalho, um dos investigadores do INESC TEC envolvido neste projeto, explica que atualmente é impossível cobrir toda a cadeia de valor de um produto, quer pela sua especificidade, quer pelos próprios mecanismos de combate à fraude que já estão implementados, mas também pela necessidade de introduzir a digitalização de forma progressiva. Por isso, o WATSON quer usar a tecnologia para melhorar a segurança das cadeias de valor e, consequentemente, aumentar a confiança do consumidor, um passo de cada vez.

 

Diz-me onde vais, dir-te-ei se há fraude

Sherlock Holmes ficaria orgulhoso do trabalho de investigação do (projeto) Watson

“Nós não queremos sobrepor-nos às metodologias atuais das autoridades de segurança alimentar para combate à fraude. No contexto do use case português, por exemplo, o nosso foco está na rastreabilidade do produto da vinha até à produção de vinho. Temos um conjunto de sensores na vinha, que permite monitorizar todo o crescimento da uva do ponto de vista das condições ambientais a que esteve sujeita, e medir valores como temperatura, humidade, acidez. Monitorizamos, igualmente, a vindima, ou seja, acompanhamos o percurso da uva, desde a colheita até à adega”, explica o investigador.

Esta sensorização do percurso da uva vai dar informações que tornam possível detetar potenciais situações de fraude, como por exemplo, a mistura de uva com outras fontes. O camião de transporte fez um desvio na rota? Parou por demasiado tempo? Houve um pico na temperatura do produto transportado? Então, passamos para análise das incoerências. “Quando são identificados certos padrões nestes dados há um early warning system que alerta as autoridades. No futuro podemos ter esta tecnologia também aplicada, por exemplo, a transporte de longo curso, desde o produtor até ao retalhista”, adianta Pedro Carvalho.

 

 

A tecnologia ao serviço da segurança e da inclusão

​Na última década, tem-se observado uma crescente consciencialização dos consumidores europeus em relação à origem dos produtos que consomem e às práticas ambientais associadas à sua produção e transporte. Esta tendência reflete-se na valorização de informações que garantam a autenticidade e a sustentabilidade dos alimentos, como a rastreabilidade da origem, métodos de produção e preocupações ambientais.​ De acordo com o Eurobarómetro de 2022, 91% dos europeus consideram importante que a Política Agrícola Comum (PAC) assegure a gestão sustentável dos recursos naturais. “A tecnologia que desenvolvemos pode ajudar a responder a muitas das questões dos consumidores, aumentando a sua confiança no produto. Em conjunto com outros dados armazenados numa plataforma de blockchain [1] será possível combinar vários tipos de informação. Um dos parceiros está, aliás, a trabalhar num passaporte digital de produto com base nos dados dessa plataforma”. Mas o investigador vai mais longe: “segundo estudos da European Blind Union, estima-se que haja mais de 30 milhões de pessoas com deficiência visual no continente, incluindo cegueira total ou parcial. Podemos, por exemplo, usar as informações obtidas na rastreabilidade do produto, em conjunto com aplicações de processamento dos rótulos para disponibilizar informação a pessoas cegas, contribuindo para a sua integração na sociedade. ​É uma forma diferente de contribuir para a segurança alimentar”.

Em última análise, o WATSON quer disponibilizar tecnologias acessíveis e fiáveis, que possam ser facilmente adotadas em diferentes cadeias de valor. “Será um processo gradual, já que não vamos conseguir controlar completamente uma cadeia de valor do início ao fim”. Pelo menos… para já!

 


Erin Brockovich dos tempos modernos

Para o EMERITUS a missão é clara: usar a tecnologia para combater os crimes ambientais que ameaçam os nossos ecossistemas e a saúde pública. Um projeto que reúne investigadores, autoridades e especialistas de várias áreas para criar ferramentas digitais avançadas que ajudem a identificar, prever e prevenir infrações ambientais, como despejos ilegais, poluição de solos e águas, ou atividades industriais fora da lei.

O piloto português decorre no estuário do Sado, uma zona sensível e rica em biodiversidade, mas também vulnerável a pressões ambientais. João Gama, investigador do INESC TEC, usa algoritmos para resolver crimes…sem sair da frente do computador. Como?  “Nós desenvolvemos ferramentas que analisem imagens de satélite para detetar, por exemplo, aterros ilegais. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo recebe as queixas que está a ser criado um aterro ilegal numa determinada zona e envia-nos essa localização. Nós extraímos imagens de satélite desse local – por exemplo, através do Google Earth – e utilizamos algoritmos, que foram treinados especificamente para detetar lixeiras, que analisam as imagens e confirmam ou não a presença de resíduos. Se a confirmação for positiva, o passo seguinte é informar as autoridades competentes”.

Imagens de satélite, drones, sensores e IA são, atualmente, algumas das armas para combater as fraudes ambientais

João Gama adianta que, para além desta tecnologia, há outras que estão a ser testadas noutros pilotos. Em Málaga, são usadas câmaras específicas com análise de vídeo e sensores térmicos para identificar descargas ilegais poluentes no rio Guadalhorce. Em Turim, o foco está na monitorização de áreas urbanas com risco ambiental, com base em dados de satélite, drones e sensores virtuais. Na Roménia, utilizam tecnologias de monitorização para detetar e prevenir o transporte ilegal de resíduos através das fronteiras.​ Na Moldávia, o foco está na identificação de locais de deposição ilegal de resíduos em áreas extensas, através de imagens de satélite e drones. “Temos uma combinação poderosa de tecnologias – sensores, imagens de satélite, modelos de inteligência artificial – que permitem detetar sinais precoces de contaminação, mapear padrões de risco e apoiar as autoridades na tomada de decisões rápidas e fundamentadas. No fundo, é como ter um sistema de “inteligência ambiental” ao dispor das entidades”, acrescenta o investigador.

O projeto EMERITUS está a desenvolver uma plataforma modular e aberta, que integra estas ferramentas que podem ser adaptadas a diferentes contextos geográficos e legais. Isso significa que, “para além dos pilotos, as soluções criadas estão a ser pensadas para ter aplicabilidade mais ampla”.

Se Erin Brockovich pudesse contar com esta ajuda nos anos 90, não teria passado meses a recolher testemunhos porta a porta. Bastava-lhe aceder à plataforma, cruzar dados ambientais, imagens de satélite e sensores em tempo real e o crime ambiental em Hinkley teria sido rapidamente exposto.

 

Algoritmos que contam a verdade

João Gama destaca outros projetos, a nível europeu, que estão a trabalhar as questões ambientais como é o caso do PERIVALLON que fornece uma visão abrangente do crime ambiental organizado, desenvolvendo ferramentas eficazes para detetar e prevenir essas atividades.

“Muitos dos projetos que estão a ser desenvolvidos estão alinhados com os princípios da União Europeia no combate ao crime ambiental, com base em ciência e tecnologia. Mas a verdade é que poderíamos fazer muito mais. Há imagens de alta resolução da superfície da Terra que poderiam ser partilhadas com os investigadores que têm as ferramentas para ler estas imagens. Poderíamos aplicar a tecnologia do EMERITUS à deteção dos plásticos no mar ou monitorização do envio ilegal de resíduos perigosos da Europa para países africanos, por exemplo”.

Esta abordagem integrada, que transforma dados dispersos em ações concretas para proteger o nosso património natural, está também na base do projeto EnSafe (Enhancing Environmental Protection: Anomaly Detection in Waste Transportation using Network Science). Liderado pelo INESC TEC, o projeto recorre à ciência de redes, inteligência artificial e análise de dados em larga escala para detetar comportamentos anómalos e suspeitos nas cadeias de transporte de resíduos, uma das áreas mais vulneráveis à fraude, à corrupção e à criminalidade ambiental. “Nós temos acesso aos registos das transações e criamos uma rede. Nessa rede conseguimos identificar os nós mais críticos, ou seja, aqueles onde o risco de irregularidade é mais elevado. Por exemplo, há empresas que vendem mais resíduos do que recebem, e outras que não recebem e só vendem”, conclui João Gama. O EnSafe ataca o problema “nas sombras”, tal como faria Lisbeth Salander, a protagonista da saga Millenium. Ambos navegam em redes complexas, encontram padrões escondidos nos dados e expõe comportamentos suspeitos que, a olho nu, passariam despercebidos.

No INESC TEC, todos os investigadores têm um pouco de Lisbeth Salander: escrutinam dados invisíveis em busca de soluções

 

Detetar fraudes está, aliás, no ADN do INESC TEC. Muito recentemente, colocamos os nossos algoritmos à disposição de uma empresa, para perceber quando há elementos em documentos que são falsificados. “Por exemplo, um documento relativo a um seguro, em que se muda uma data quando o seguro já está caducado. Isso é uma falsificação e os nossos algoritmos têm a capacidade de um detetar rapidamente e com grande fiabilidade. Muito mais do que uma pessoa que tenha de ver documento a documento, cruzar dados e por aí fora”, explica o investigador.

 

Podemos não ser o NCSI que vemos nos filmes e séries norte-americanos, mas, aqui na Asprela, também se ajuda no combate ao crime – colocamos a tecnologia ao serviço das autoridades e das populações para evitar fraudes e para garantir a proteção, por exemplo, das cadeias alimentares e do ambiente. Por isso, porque não sermos também um pouco NCSI Asprela?

 

[1] Blockchains são registos digitais imutáveis e partilhados que armazenam dados de forma segura, transparente e descentralizada.
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