“O acaso favorece somente as mentes bem preparadas” – Louis Pasteur

Não cesso de me interrogar porque é que tantos aforismos e lugares-comuns persistem como utilíssimos instrumentos de análise, mesmo num contexto volátil e complexo nunca antes visto. “Pensar o passado, para compreender o presente e idealizar o futuro” é uma reflexão atribuída ao grego Heródoto, que Cícero considerou o pai da história, a meu ver inescapável neste “mês de Camões”.

Foi com este sentir que, no âmbito das celebrações dos seus 40 anos e ao lançar-se na construção do INESC TEC Ocean, o INESC TEC tomou em mãos o desafio de realizar um evento sobre “Camões, o Mar, a Tecnologia e a Ciência Portuguesas”. E o propósito não poderia ter sido mais bem conseguido. O que aprendemos com os nossos colegas investigadores em história, cartografia e construção naval dos séculos XV e XVI sobre os descobrimentos portugueses, não só questionou o que julgávamos saber sobre o assunto como foi muito mais além.

Camões, aventureiro e poeta maior, glorificou em verso os feitos dos navegadores lusos e, logo no início do Canto 1 dos Lusíadas, deixou bem patente a sua excecionalidade:

… Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana, …

Aprendemos que foram o conhecimento científico e o planeamento rigoroso o suporte do gigantesco empreendimento e não o mero acaso, a sorte, explicação sobranceira dada por alguns ingleses para o sucesso de um país que consideravam modesto.  Um sucesso que foi construído sobre as artes de navegação dos italianos e nórdicos que, durante séculos, viajaram no Mediterrâneo, no Báltico e no Mar do Norte. Como Newton disse, muito mais tarde, a propósito das suas próprias descobertas científicas, os navegadores portugueses construíram “sobre os ombros de gigantes”.

O conhecimento era adquirido de forma sistemática. Tudo o que tinha que ver com cada viagem – navegação, metereologia, flora, fauna e singularidades dos povos de terras distantes – era criteriosamente registado e depois usado para melhorar as expedições seguintes. Toda a informação era entregue ao cartógrafo-mor do reino, para atualizar as cartas marítimas e usar esse conhecimento para melhorar o treino dos futuros pilotos. A ciência e o conhecimento não ficavam aprisionados na corte: a matemática, a física e a astronomia permitiram inovar nas técnicas de construção de caravelas rápidas e de manobra flexível, na navegação em mar aberto em grandes oceanos e na eficácia dos canhões, que os portugueses trouxeram do convés para a linha de água dos navios de guerra. O 1.º cartógrafo-mor do reino foi Pedro Nunes, matemático reconhecido entre os maiores da Europa do seu tempo.

A liderança portuguesa nas artes de marear era sublinhada em escritos da época de espanhóis, holandeses e ingleses e o feito único de Fernão de Magalhães, numa viagem em mar aberto que atravessou o maior oceano do globo, só foi possível com todo o seu conhecimento luso das artes de marear. Nessa altura, os reinos de Portugal e Espanha tinham já tido o desplante de acordar entre si a divisão a meio do globo, no que respeita às terras a descobrir e às correspondentes rotas comerciais.

Depois do apogeu de um império que passou por África, Índia, Brasil, até ao extremo-oriente, o povo que esteve quase dois séculos à frente do seu tempo nas artes de navegar enfrentou o declínio comercial, económico e político, passou ao lado das duas revoluções industriais dos séculos XVIII a XX, não conseguiu estabilidade na 1.ª república e fugiu para a frente com a ditadura de Salazar e as guerras coloniais.

O papel estratégico do mar desapareceu com a queda do império, a não ser talvez nas artes da pesca tradicional e pouco mais. O papel da ciência desapareceu quase por completo e, na segunda metade do século XX, Portugal era um país dependente do comércio com as colónias e da agricultura tradicional.

Foi a adesão de Portugal à Comunidade Europeia em 1985, mais de cinco séculos depois do infante D. Henrique ter fundado a Escola de Sagres, que trouxe um novo impulso para o desenvolvimento capaz de oferecer à ciência uma nova oportunidade. Durante estes quarenta anos, que o INESC TEC agora celebra, muitos investigadores portugueses agarraram com determinação essa oportunidade e a ciência portuguesa ganhou credibilidade e reconhecimento internacional, antes mesmo da sua economia e das suas exportações de produtos e serviços os terem alcançado.

O mar português, durante as últimas décadas na boca de políticos e jornalistas, repetidamente apontado como um desígnio nacional, nunca conseguiu ser, de facto, prioridade. Outras preocupações mais prementes sempre se meteram de permeio e os grandes projetos para o mar foram sendo adiados.

O mar tem hoje no mundo um papel fundamental e ninguém duvida do seu valor estratégico. E isto é ainda mais verdade para o Portugal atlântico, fortemente ancorado ao chamado sul global através de uma das línguas mais faladas no mundo. Os oceanos são o regulador climático que capta 90% do excesso de calor provocado pelas atividades humanas, absorve 25% do CO2 emitido, abriga 80% da biodiversidade do globo e produz 50% do oxigénio. Para Portugal, o mar é fonte de energia offshore renovável, proteína da pesca e da aquacultura, acesso privilegiado às rotas logísticas europeias e mundiais e talvez, no futuro, acesso a recursos biológicos e minerais do mar profundo na sua enorme zona económica exclusiva.

A par da unanimidade do valor estratégico dos oceanos, existe um amplo consenso sobre o delicado equilíbrio dos ecossistemas marinhos e sobre o facto de que nada pode ser feito no mar sem o apoio da ciência. Os desafios do mar serão desafios da ciência e, para os enfrentar, o país precisa, tal como há 550 anos, de liderança com visão ousada, organização e planeamento cuidadosos, o melhor do conhecimento e do talento, instituições fortes e inovadoras, e alinhamento do financiamento público e privado. E nada menos do que isto é o que se exige para, através da ciência, sermos capazes de ganhar o futuro enfrentando com sucesso muitos dos grandes desafios do nosso tempo.

 

Por José Manuel Mendonça, diretor INESC TEC e anterior presidente do Instituto

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