Esqueçam o DeLorean: o regresso ao futuro faz-se de veículo elétrico

Em 1985, a mente visionária (e um pouco louca, diriam alguns) de Doc Brown, no filme Regresso ao Futuro, decidiu que iria transformar um DeLorean numa máquina do tempo. Para isso, usou plutónio e aterrou em 1955. Mas como se alimenta um carro com plutónio nos anos 50? Robert Zemeckis resolveu o problema com criatividade cinematográfica: um relâmpago capaz de descarregar 1.21 gigawatts diretamente para o flux capacitor, dando energia ao carro para o fazer andar. No fundo, foi a primeira vez que vimos um carro a mover-se graças à eletricidade.

Regressemos agora a 2025, não para o centro de Hill Valley, mas para um outro laboratório: o x-energy do INESC TEC. Aqui, não precisamos de raios cinematográficos…só de um carregador que funcione e o conhecimento para resolver os problemas de um futuro onde a mobilidade elétrica será, inevitavelmente, a personagem principal.

A União Europeia definiu metas ambiciosas, exigindo que os fabricantes reduzam progressivamente as emissões médias de CO₂ dos automóveis novos, e que as vendas de veículos a combustão cessem até 2035. Portugal, embora tenha registado um crescimento rápido dos veículos elétricos e das infraestruturas de carregamento, ainda está abaixo da média europeia. Segundo dados da European Alternative Fuels Observatory, no segundo trimestre de 2025 existiam cerca de 443.528 veículos ligeiros movidos por combustíveis alternativos (incluindo elétricos e híbridos plug-in) num parque total de aproximadamente 7,34 milhões de automóveis. Portanto, a mobilidade elétrica está a transformar a forma como nos movemos, como consumimos energia e até como pensamos o próprio sistema elétrico.

 

Quando os carregadores são capazes de pensar

Os investigadores do INESC TEC, à semelhança de Doc Brown, estão a trabalhar em soluções que só farão sentido daqui a alguns anos ou a (re)pensar aquilo que já existe de uma outra perspetiva. Exemplo disso, são os carregadores de veículos elétricos. As estatísticas confirmam que Portugal tem uma das infraestruturas de suporte à mobilidade elétrica mais desenvolvidas a nível internacional, mas, para o investigador Pedro Pascoal, há um enorme potencial a ser explorado. “Nós queremos dotar estes carregadores de inteligência, equipá-los com software que decide quanto, quando e como carregar, para proteger a rede elétrica e aproveitar melhor a energia. Estamos a criar tecnologia capaz de entender os hábitos do utilizador, a produção renovável prevista, as tarifas do momento ou as necessidades de cada veículo e, com base nisso, tomar decisões. Os carregadores atuais não o conseguem fazer; não sabem qual a melhor altura para carregar e se o carregamento deve ser mais lento ou mais rápido”, explica.

Vamos a exemplos? Imaginando um cenário em que os painéis fotovoltaicos alimentam a rede, significa que num dia de sol, em que a geração de energia é maior, o carregador acelera o processo de carregamento. Isto não só poupa dinheiro ao utilizador, como também protege a própria infraestrutura elétrica que, como sublinha Pedro Pascoal, não está dimensionada para este novo mundo de carros elétricos ligados à rede e pode entrar em colapso, devido à elevada demanda energética. “É impossível reforçar toda a rede de um dia para o outro, por isso, a inteligência no carregamento é essencial”, alerta o investigador.

Hoje, a energia vem de carregadores inteligentes que sabem quando, como e quanto carregar!

A tecnologia atual tem, ainda, outras limitações: para carregar um carro elétrico, é preciso recorrer a QR codes, cartões RFID (Radio Frequency Identification) ou aplicações que nem sempre funcionam à primeira. O futuro que o INESC TEC está a construir é Plug & Charge, ou seja, a autenticação é automática e sem passos adicionais.  A tecnologia existe e está a ser testada com fabricantes internacionais, mas há obstáculos burocráticos a ultrapassar, segundo o investigador José Silva. “Esta funcionalidade parece simples, mas depende de certificados digitais que permitem que o carro e o carregador “se reconheçam” automaticamente. Para isso, é necessário criar toda uma infraestrutura de comunicação segura e interoperabilidade entre marcas, garantindo que os fabricantes cumpram os mesmos protocolos. Existem já metas regulatórias da Alternative Fuels Infrastructure Regulation  (AFIR) que obrigam os fabricantes a seguirem normas industriais nos produtos novos até 2027”, explica. Isto significa que a AFIR promove a uniformização do setor e, com o tempo, todos os fabricantes acabarão por alinhar, tal como aconteceu com carregadores USB ou roaming de telecomunicações.

Se pensarmos bem, a viagem no tempo de Doc e McFly teria sido muito mais fácil se o flux capacitor fosse tão eficiente como os carregadores do INESC TEC.

 

Próxima paragem: carregamento bidirecional

Os carregadores inteligentes e o Plug & Charge são excelentes exemplos da evolução da tecnologia; no entanto, a grande revolução da mobilidade elétrica é a bidirecionalidade do carregamento, ou seja, a possibilidade de a energia circular não só da rede para o carro, mas também do carro para a casa ou para a rede. O carro torna-se, assim, numa “bateria com rodas”. “Com esta funcionalidade, o utilizador pode carregar o carro quando a eletricidade é mais barata, por exemplo, durante a madrugada ou em horas de forte produção solar, e depois usar essa mesma energia para alimentar a casa nos períodos em que as tarifas estão mais altas”, explica José Silva.  A lógica é simples: o carro deixa de ser apenas um consumidor de energia e passa a ser também um fornecedor, ajudando a equilibrar a rede, reduzir custos e integrar mais renováveis no sistema.  É preciso, no entanto, que tanto o carro como o carregador estejam preparados para esta função. Hoje, apenas 3% dos carros no mercado permitem a bidirecionalidade do carregamento, mas José garante que, para o ano, esta percentagem será, certamente, maior: “Pelo que verificámos no Salão Automóvel Hibrído e Elétrico, todas as marcas terão pelo menos um modelo em 2026”.

Pedro Pascoal acrescenta que com o Charging Management System (CMS), que atua como o cérebro que gere vários carregadores ao mesmo tempo dentro de um edifício ou parque, a própria bidirecionalidade pode ser elevada a um novo nível. “Enquanto a bidirecionalidade decide para onde a energia pode fluir, o CMS decide como essa energia é distribuída, garantindo que nenhum carregador usa mais potência do que deve, que a rede de energia local não entra em sobrecarga e que cada carro recebe a energia de que realmente precisa”, acrescenta.  Tal como o almanaque desportivo de Biff Tannen que fazia previsões desportivas certeiras, o CMS também usa dados reais para gerar previsões fiáveis na hora de carregar o carro.

Em conjunto, complementam-se: a bidirecionalidade torna o carro uma peça ativa do sistema elétrico e o CMS assegura que, mesmo com dezenas de carros a carregar, tudo funciona de forma equilibrada e eficiente.

 

“This is heavy”: uma infraestrutura invisível que pode mudar tudo

Há uma infraestrutura complexa e invisível por detrás da tecnologia que chega até nós, utilizadores. É caso para parafrasear Marty McFly: “This is heavy!” (que em português poderia querer dizer algo como “Uau, isto é mesmo impressionante!”). Atualmente, a corrente alternada (AC na versão anglo-saxónica, referente a alternating current) é o tipo de eletricidade que “circula” na nossa rede, formatada para grandes distâncias de transporte de energia. Mas as baterias dos veículos elétricos só aceitam corrente contínua (DC na versão anglo-saxónica, referente a direct current). Isso significa que, sempre que um carro se liga a um carregador (como os que existem na maior parte dos postos de carregamento público), é necessário converter essa energia antes de entrar na bateria.

Tal como o almanaque de Biff, a tecnologia desenvolvida pelo INESC TEC consegue “prever” o futuro quando o tema é eficiência energética.

O investigador José Silva explica que a velocidade do carregamento fica, assim, limitada à potência do conversor interno. Por isso, mesmo que o posto AC consiga fornecer muita energia, o carro só recebe aquilo que consegue converter. “É por isso que o INESC TEC já está a testar carregadores DC capazes de operar numa nova lógica. Como já enviam energia em DC diretamente para a bateria, o carro pode carregar muito mais depressa e atingir potências muito superiores”, acrescenta o investigador.

Imaginem agora que a vossa casa ou o vosso escritório operava numa microrrede DC, onde deixavam de ser necessárias conversões. Por exemplo, a energia gerada por painéis fotovoltaicos podia alimentar diretamente baterias ou carregadores de veículos elétricos. “Isto permite reduzir perdas de conversão, melhorar o controlo energético, diminuir custos operacionais e tornar a infraestrutura mais estável e resiliente”, acrescenta Pedro Pascoal.

O INESC TEC está a investigar e desenvolver este tipo de microrredes porque elas permitem criar ecossistemas locais mais eficientes, onde vários elementos se articulam. “A nossa investigação envolve algoritmos de controlo para coordenar fluxos de energia em DC, mecanismos de estabilidade para redes DC, integração de carregamento bidirecional e modelos de mercado que permitam trocar energia dentro da própria microrrede. Além destas funcionalidades, como as microrredes estão ligadas à rede convencional (AC), permitem uma troca de energia entre AC-DC, transformando-as em microrredes DC híbridas”, adianta José Silva.

A mobilidade elétrica é mesmo mais sustentável

José Silva acredita que Portugal pode bem ser um laboratório vivo de inovação na mobilidade elétrica.  “Temos empresas fortes nos carregadores, condições de teste, e uma investigação muito avançada”.

E o futuro? Ambos os investigadores perspetivam um cenário em que a eletrificação da mobilidade se tornará dominante, num ecossistema onde frotas empresariais, transportes públicos e veículos particulares serão elétricos, e onde o carregamento será mais simples, rápido e perfeitamente integrado com a rede. Mas alertam que esta transição não será isenta de desafios, seja no plano burocrático, tecnológico ou ambiental.

É precisamente neste último ponto que o debate público continua intenso. A produção de baterias de iões de lítio implica extração de materiais críticos como lítio, níquel e cobalto, um processo que tem impactos ambientais e sociais significativos nas regiões produtoras. Contudo, os investigadores lembram que a análise deve ser feita ao longo de todo o ciclo de vida do veículo, e não apenas na fase de produção.

“A produção de baterias tem impactos, mas a operação de um veículo elétrico é incomparavelmente mais limpa. Mesmo quando a energia usada para carregar não é totalmente renovável, o veículo elétrico, em uso, não tem emissões diretas. Além disso, à medida que a produção elétrica integra uma maior proporção de fontes renováveis, a energia usada para carregar estes veículos torna-se progressivamente mais limpa — ao contrário dos motores de combustão, cujas emissões tendem a aumentar com a sua degradação ao longo do tempo”, defende Pedro Pascoal.

José acrescenta: “Um veículo elétrico, do início ao fim de vida, polui muito menos do que um carro a combustão, sobretudo se incorporarmos a funcionalidade da bidirecionalidade, dado que a gestão energética é muito mais eficiente”.

Esta posição está alinhada com avaliações independentes feitas por entidades internacionais. De acordo com um estudo do International Council on Clean Transportation (ICCT), os carros elétricos vendidos na União Europeia em 2025 têm emissões de gases com efeito de estufa 73% inferiores às dos veículos a gasolina ao longo do seu ciclo de vida.

No conjunto, os investigadores defendem que o impacto ambiental da mobilidade elétrica deve ser analisado numa perspetiva sistémica, e a investigação do INESC TEC pode ajudar a garantir que a transição é não apenas tecnológica, mas verdadeiramente sustentável.

 

Ainda precisamos de estradas, mas não precisamos de cabos

Carregar veículos sem cabos? A tecnologia wireless chegou à mobilidade elétrica!

Roads? Where we’re going, we don’t need roads”. Esta frase é dita por Doc Brown no final do icónico filme Regresso ao Futuro, ao volante de um DeLorean do futuro que voa. E a frase bem que se podia aplicar a 2025, com o carregamento sem fios para veículos elétricos.  “Estamos a desenvolver um protótipo que permita carregar o carro sem cabos, sem ficha. No chão, temos um tapete de carregamento e no carro, uma bobina compatível que permita a transferência de energia por indução eletromagnética. É exatamente o mesmo princípio dos carregadores wireless dos telemóveis”, adianta Pedro Pascoal.

Este tipo de carregamento, conhecido como Wireless Power Transfer (WPT), pode bem tornar-se numa das áreas mais promissoras da mobilidade elétrica. Já existem países a testar estradas que carregam carros em movimento. Em França, foi instalada uma seção de estrada de cerca de 1,5 km perto de Paris (na autoestrada A10) para testar a tecnologia de indução em veículos elétricos em movimento. Na Suécia há várias demonstrações que estão em curso, envolvendo a estrada E20 entre Hallsberg e Örebro.

O INESC TEC está atualmente focado em protótipos estáticos, ideais para parques de estacionamento, mas sem perder o foco nestas soluções dinâmicas que permitirão carregar um veículo elétrico simplesmente ao circular.

Entre conversores bidirecionais, algoritmos inteligentes, microrredes DC e novos protocolos de interoperabilidade, o INESC TEC está a preparar o futuro e garantir que a mobilidade elétrica é mais eficiente, mais simples e muito mais integrada com a rede elétrica e com as energias renováveis. Porque, como conclui José Silva, “isto não é só sobre carregar carros. É sobre mudar o sistema elétrico e a forma como interagimos com ele”.

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