“Consegue fazer em segundos o que antes se faria em horas ou dias”. É uma premissa recorrente sempre que o assunto é supercomputação e o poder das máquinas que a suportam. Organizadas em armários perfeitamente alinhados, com luzes intermitentes mas disruptivas pelo ruído que emitem, encerram em si um infinito de oportunidades e cenários, alimentados por dados históricos recolhidos e fornecidos por cientistas. Na correria do quotidiano, é difícil associar as previsões meteorológicas que tão comodamente carregamos no bolso — e que rapidamente nos fizeram esquecer a longa e escura página do teletexto — a este contexto.
No entanto, é disso mesmo que se trata. Todas as previsões que nos ajudam a decidir o meio de transporte para o trabalho no dia seguinte, a roupa que vamos vestir ou se devemos deixar a janela de casa aberta ou não, têm origem em sistemas de equações diferenciais resolvidas em supercomputadores, e que visam, sobretudo, a mecânica dos fluídos — a parte da física que estuda o efeito de forças em fluidos, que são essenciais para compreender e antecipar o comportamento da atmosfera. Tal como lembra o investigador do INESC TEC Ricardo Bessa, o modelo global Europeu do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas a Médio Prazo assistiu a melhorias contínuas, enquanto modelo de previsão numérica de tempo (PNT), com contributos significativos para a previsão da produção de energia elétrica de base renovável como a eólica e o solar.
O advento de uma revolução
A imprevisibilidade é o mais constante dos fatores num processo que não tão raras vezes dita o salvamento de vidas humanas. Num contexto de cenários meteorológicos extremos potenciados pelas alterações climáticas, a necessidade de afinar o modus operandi é cada vez mais evidente.
No final de julho, o The New York Times lançava as pistas sobre uma revolução em curso no mundo das previsões meteorológicas. O ponto de partida? De um lado, a previsão que serviu de base aos alertas meteorológicos motivados pelo furacão Beryl com foco para o México, a partir de observações feitas de aviões, boias e outros veículos espaciais e que foram posteriormente tratadas num supercomputador. Do outro, um segundo cenário que antecipava a aproximação da tempestade, mas que teria no Texas o principal motivo de preocupação.
A 8 de julho — quatro dias depois — o estado do sul dos Estados Unidos da América foi devastado pelo fenómeno que acabaria por causar 36 mortes e deixar milhões sem eletricidade. Na origem da segunda previsão não esteve um supercomputador mais potente ou com recursos mais recentes. Os investigadores utilizaram, por sua vez, um computador muito mais pequeno, mas equipado com o GraphCast, um software de inteligência artificial (IA) desenvolvido pela DeepMind, detida pela Google. Para a previsão certeira, precisou apenas de todos os conhecimentos que lhe foram transmitidos sobre o funcionamento da atmosfera.
Um dos dados mais curiosos do processo: precisou apenas de minutos para fazer o que antes — diga-se, um supercomputador — demoraria praticamente uma hora a concluir. Soa familiar, certo? A associação da IA ao uso de recursos computacionais imensos — e, consequentemente, a elevados custos energéticos — é frequente, sendo esta relação muitas vezes evocada como um dos fatores mais negativos do uso da ferramenta, mas também dos esforços encetados para tornar a computação de alto desempenho mais sustentável.
A computação avançada ao serviço da meteorologia
As Unidades de Processamento Central (CPUs, na sigla em inglês) dos supercomputadores representavam o ponto nevrálgico do processo. Com a introdução de aprendizagem automática e sobretudo, da sua aplicação às previsões meteorológicas, o foco passou a estar nas Unidades de Processamento Gráfico (GPUs). A eficiência dos modelos de inteligência artificial — treinados por aprendizagem automática — depende, em grande nível, das GPUs, desenhadas tendo em vista o processamento paralelo, uma exigência dos algoritmos de aprendizagem automática.
A rapidez com que as GPUs conseguem dar por terminadas estas tarefas, face ao tempo que precisavam as CPUs (apesar de mais eficientes, do ponto de vista energético), faz destas a ferramenta perfeita para previsões que requerem ajustes constantes. O senão, como não poderia deixar de ser, também existe. Tal como aponta Alícia Oliveira, investigadora do INESC TEC, “há um aumento significativo do consumo de energia associado às GPUs”, uma realidade com tendência a piorar face à maior complexidade dos modelos de IA e ao exponencial crescimento de dados a serem gerados e processados nestas máquinas.
Recentemente, o tópico da utilização de IA nas previsões meteorológicas está novamente nas bocas do mundo graças a mais um lançamento da DeepMind, explicado em detalhe num artigo publicado na revista Nature com duas novidades revolucionárias.
Há muito que os cientistas lutavam por expandir o horizonte temporal das previsões, sem que tal significasse a perda da precisão dos cenários meteorológicos. A GenCast e outros modelo de IA têm mostrado sinais de melhorias no horizonte temporal das previsões, mantendo também os níveis de confiabilidade. Rémi Lam, o principal autor do artigo publicado na Nature, afirma que “décadas de progresso foram conseguidas em apenas um ano”.
O Centro Europeu de Previsões Meteorológicas a Médio Prazo é tido como uma das entidades mais credíveis do mundo graças aos seus modelos certeiros. Não é, por isso, de estranhar que as notícias de uma revolução no tópico tenham tido eco no seu funcionamento — sobretudo quando as previsões ali criadas serviram como termo de comparação para aferir o sucesso da IA. O organismo diz estar a incluir, de forma complementar, todas as ferramentas que resultam desta revolução no seu modelo baseado em física, o Integrated Forecasting System (IFS). O AIFS, por sua vez, consiste no modelo IA do ECMWF, o qual conta com muitas das componentes da abordagem GenCast.
A instituição, parceira do INESC TEC no projeto HANAMI (HPC AlliaNce for Applications and supercoMputing Innovation: the Europe – Japan collaboration), reconhece que há “questões em aberto e discussões sobre o equilíbrio ideal entre a física e os sistemas de previsão de aprendizagem automática, e uma vasta comunidade científica, incluindo o ECMWF, está a explorar ativamente esta questão”.
Num episódio recente do podcast da instituição, Florian Pappenberger, diretor-adjunto e responsável pelo departamento de previsões, reconheceu que o súbito advento da IA surgiu como uma tempestade impossível de prever e com impacto em toda a cadeia de valor. “Está a começar a igualar ou a ultrapassar as nossas abordagens tradicionais. Novos métodos levam a novos resultados, que muitas vezes surpreendem e contrastam com o que era feito (e como era feito).”
Em outubro, quando o calendário distava menos de um mês para as eleições norte-americanas, o improvável mundo das previsões meteorológicas, sem que nada o fizesse prever, tomou de assalto as manchetes dos jornais. Em causa estavam as declarações de Marjorie Taylor Greene, congressista do estado da Geórgia e aliada de Donald Trump, que sugeriam o envolvimento do governo federal no controlo da meteorologia. “Eles conseguem controlar o tempo”, acusou, visando trabalhadores da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA, na sigla em inglês). A resposta veio diretamente da Casa Branca, pela voz do Presidente Joe Biden.
“Nas últimas semanas, tem havido uma promoção imprudente, irresponsável e incessante de desinformaçãoe de mentiras descaradas que estão a perturbar as pessoas”.
Numa era que muitos já apelidam ser a da “democratização das previsões”, os meteorologistas não parecem estar dispostos a abdicar do seu papel na hora de transmitir às populações os prognósticos, assegurando a transparência da mensagem, mas também a pertinência de discursos mais alarmistas. O fator humano foi sublinhado por Virgine Schwarz, diretora-geral do Météo-France, no mesmo podcast. “Os nossos papéis, enquanto meteorologistas, saem reforçados. Sabemos como avaliar a informação, como processá-la e como trabalhar com ela”, explicou. Em última instância, é a credibilidade de uma classe a dar força ao alerta quando o perigo se aproxima.
A importância da fiabilidade em contexto de crise
A memória recente das cheias de Valência, assim como a discussão em torno dos avisos aos cidadãos, reavivou a discussão em torno da necessidade de previsões fiáveis, sob pena de assistirmos à desvalorização destas notificações por parte da população. No contexto português, são sobretudo os incêndios florestais que motivam preocupação, pelo caráter imprevisível do fenómeno, e dos fatores a considerar para a sua previsão, mas também do caráter mais extremo que os fogos têm assumido. A incorporação de uma ferramenta de IA “pode transformar significativamente” a forma como todo o processo de previsão e gestão dos incêndios florestais se desenrola.
Quem o diz é Hugo Miguel Silva, investigador do INESC TEC na área da robótica e sistemas autónomos. Atualmente, coordena o OverWatch, um projeto europeu que visa o desenvolvimento de um sistema holográfico integrado para apoio a operacionais na gestão dos meios de combate a incêndios e inundações, com recurso a inteligência artificial. Ao integrar “diferentes fontes de dados, como imagens de satélite, sensores “in-situ” e medições meteorológicas”, esta nova ferramenta, aponta o investigador, conseguirá “criar novos “modelos dinâmicos que identificam áreas de alto risco de ocorrência de incêndio”.
Esta “abordagem preditiva”, possível através da análise de grandes volumes de dados em tempo real, como condições meteorológicas, humidade do solo, cobertura vegetal e histórico de ocorrências, permite a criação de previsões “altamente precisas e detalhadas”, o que terá um impacto inequívoco na alocação eficiente de recursos. “Governos, bombeiros e outras autoridades podem utilizar as previsões do sistema para planear evacuações, criar estratégias de contenção e monitorizar áreas vulneráveis em tempo real”, em linha com a proposta apresentada pelo OverWatch.
O contínuo aperfeiçoar do sistema, através da incorporação de novos dados, poderá ser a chave para, num contexto de alterações climáticas marcado por recordes fora de época e fenómenos atípicos, garantir a fiabilidade das previsões.
A meteorologia enquanto impulsionadora do progresso climático
Mas não só a fenómenos extremos se resume o impacto social e económico da meteorologia. Um dia com um boletim meteorológico aparentemente limpo, no que a avisos diz respeito, pode representar um marco no caminho de um país rumo à transição energética. No caso de Portugal, não foi um, mas seis dias que permitiram ao país abastecer-se unicamente com energia renovável, entre 31 de outubro e 6 de novembro de 2023. Neste período, foram produzidos 1102 GWh.
“Numa economia e sociedade cada vez mais influenciada pelo clima”, nota Ricardo Bessa, os dois resultados notáveis do artigo publicado na revista Nature — os resultados mais precisos face aos modelos anteriores e o maior horizonte temporal das previsões — “oferecem impactos tangíveis em diferentes casos de uso relacionados com a transição energética, resiliência de infraestruturas críticas, aviação, setor financeiro, entre outros”.
O investigador do INESC TEC mostra-se cauteloso, “num olhar romântico sobre a IA, é tentador afirmar que modelos de difusão, como os usados pela IA generativa para criar fotos e vídeos sintéticos, conseguem aprender as leis fundamentais da física apenas com base nos dados. No entanto, em vez de tomarmos esta conclusão como certa, a mensagem principal é que, neste caso, temos dois mundos “extremos” – os modelos baseados na física e os modelos de IA. O futuro poderá residir no melhor destes dois mundos: uma abordagem híbrida que combina dados e física, desenvolvendo modelos de aprendizagem informados pela física”.
O valor dos dois sistemas é reconhecido pelo ECMWF, que vê na IA, no seu todo, um complemento a uma abordagem mais robusta, combinando-se e reforçando-se. No final, são as populações quem ganham, beneficiando de previsões mais certeiras para as tomadas de decisões mundanas, para garantir a segurança durante fenómenos adversos e para uma participação mais ativa rumo à transição energética.