Está na altura de a Real Academia Sueca das Ciências criar mais uma categoria de Nobel? A atribuição dos prémios da Física e da Química parece indicar que sim

Haverá uma mudança de paradigma no que à atribuição de prémios Nobel diz respeito? O ano de 2024 ficará na história como um marco de uma mudança no rumo da ciência. Quem o afirma é especialista em Inteligência Artificial (IA) há muitos anos e um dos cientistas mais citados do mundo. João Gama, investigador do INESC TEC, é ousado nas palavras: “quem ganhou os prémios Nobel da Física e da Química, em 2024, foi a IA”.

Mas como é característico do meio científico, são diversas as primeiras leituras sobre estes desenvolvimentos. Ricardo Bessa, investigador do INESC TEC e também ele um dos cientistas mais citados do mundo, admite que, “à primeira vista, pode parecer inusitado um Prémio Nobel em Física ou Química ser atribuído a personalidades pelo trabalho desenvolvido na área da IA. No entanto, se existisse um Nobel específico para a IA, certamente teríamos cientistas reconhecidos de áreas como as neurociências, a filosofia (sim, tenho um projeto com filósofos sobre IA), ou até a física, onde no futuro poderão surgir redes neuronais puramente “físicas” (como publicado recentemente na revista Nature).” Já o físico Nuno Silva, também ele investigador do INESC TEC, considera que “apesar de achar natural que se questione a relevância da atribuição do Nobel da Física em relação aos avanços que representam nesta área enquanto ciência fundamental, é clara a sua relevância na perspetiva mais interdisciplinar e abrangente do domínio”.  No que ao prémio Nobel da Química, em particular, diz respeito, uma das opiniões recolhidas foi a de Hugo Penedones, um engenheiro informático – antigo estudante da Universidade do Porto -, que esteve envolvido na criação do algoritmo que está na origem do galardão e que já há três anos tinha previsto o que no dia 9 de outubro de 2024 se tornou uma realidade.

Que a IA está na agenda do dia já todos percebemos. Publicam-se livros e artigos de opinião, e multiplicam-se os comentadores – estranhamente, num tema em que, na realidade, se reconhece haver grande escassez de especialistas. Foi precisamente junto destes que fomos procurar entender de que forma John Hopfield, Geoffrey Hinton, David Baker, Demis Hassabis e John Jumper – os laureados dos dois Nobel deste ano – fizeram avançar a ciência com desenvolvimentos reconhecidos como fundamentais e com um impacto que se estima de muito relevo para a sociedade. Ajudar a perceber e informar com rigor sobre temas atuais a partir das nossas áreas científicas de especialização é o propósito desta rubrica de estreia do INESC TEC, de nome INESC TECWatch. Em temas em que sejamos especialistas, cá estaremos para informar com opiniões objetivas e fundamentadas na ciência, algo que os nossos tempos exigem cada vez mais, mas que sentimos que a discussão pública envolve cada vez menos.

Vamos aos dados sobre o Nobel da Física?

8 de outubro de 2024. A Real Academia Sueca das Ciências informa o mundo sobre quem são os vencedores do Prémio Nobel da Física. Dois nomes a reter – John Hopfield (norte-americano) e Geoffrey Hinton (canadiano). O primeiro, um físico teórico da Universidade de Princeton, o segundo um psicólogo e cientista na área da computação da Universidade de Toronto. Hopfield desenvolveu a memória associativa, a que – de acordo com o comunicado emitido pelo Comité Nobel da Física – “consegue armazenar e reconstruir imagens e outros padrões através de dados”. Hinton partiu do passo dado por Hopfield e criou as bases para aquilo que os cientistas comumente referem como machine learning – ou, em português, aprendizagem automática. Os dois receberam o prémio por “descobertas e invenções fundamentais que permitem a aprendizagem automática com redes neuronais artificiais” palavras também do Comité Nobel.

De acordo com João Gama, Hinton é uma figura pioneira na comunidade de aprendizagem profunda. Juntamente com Yoshua Bengio e Yann LeCun, em 2018, recebeu o prémio Turing (atribuído em memória de Allan Turing), que é, de acordo com o investigador do INESC TEC, “muitas vezes referido como o Prémio Nobel da Computação” O reconhecimento foi feito pelo seu trabalho em aprendizagem profunda. “Em colaboração com os seus alunos tiveram contribuições muito relevantes no campo da visão computacional com profundas implicações no processamento da linguagem natural”, explica João Gama.

Já Hopfield, antes de dedicar o seu trabalho às redes neuronais, era um físico teórico que estudava o comportamento de sistemas físicos complexos, como, por exemplo, matéria condensada. Em 1980 apresenta “o modelo de Hopfield” onde utiliza conceitos da física estatística para explicar como as redes neuronais podem armazenar e recuperar memórias. O que Hopfield propôs foi que a atividade neuronal fosse entendida como um sistema de muitos componentes – os neurónios – que interagem entre eles e evoluem para um estado de equilíbrio, uma abordagem comum na área da física.

Compreender as pontes entre a física e a inteligência artificial

Regressemos ao termo machine learning. Um exemplo prático de uma ferramenta que utiliza machine learning é o popular ChatGPT. Mas de que forma é que machine learning e física se relacionam? Porquê um Nobel da Física para duas pessoas que trabalham em IA? Principalmente se tivermos em conta que um dos laureados – Geoffrey Hinton – se demitiu da Google em 2023 depois de ter alertado para os riscos da inteligência artificial.

A relação entre IA e a física diz respeito à modelação de sistemas complexos e ao entendimento sobre a forma como o cérebro humano processa informação. É que, como já pudemos perceber, quer Hopfield quer Hinton construíram modelos de aprendizagem que têm por base princípios físicos. O trabalho de Hinton sobre redes neuronais profundas tem aplicação em áreas como, por exemplo, a física de materiais, onde os computadores prestam auxílio na descoberta de novos materiais com propriedades específicas. Já o trabalho de Hopfield explora como o cérebro – um sistema biológico – pode ser modelado usando princípios da física. Ou seja, tanto Hopfield como Hinton fizeram contribuições para a ciência que envolvem sistemas biológicos (cérebro) e sistemas físicos complexos (neurónios).

Para além disso, Nuno Silva recorda ainda que “Hopfield foi pioneiro na construção matemática de modelos inspirados no funcionamento de neurónios e na observação de fenómenos emergentes no comportamento coletivo de sistemas de muitos neurónios, com destaque para a capacidade de reconstrução de memórias a partir de pedaços de informação parciais ou com ruído”.

A investigação dos dois laureados tem contribuições fundamentais para a ciência, ao fazer com que seja possível entender melhor como redes de neurónios processam informações e ao lançar as bases para a IA moderna. A relação da IA com a física está na utilização dos conceitos físicos para entender a dinâmica das redes neuronais e a sua aplicação na resolução de problemas científicos complexos.

Como já havia sido referido, Nuno Silva considera normal que a generalidade das pessoas questione a relevância da IA num prémio Nobel atribuído à Física. Contudo, é da opinião que o impacto do trabalho feito pelos dois prémios Nobel é grande no que diz respeito ao domínio da Física e abre reflexão para um caminho que tem de ser feito de modo a existir uma perspetiva mais abrangente e interdisciplinar desta área científica.

Ricardo Bessa considera que estas distinções reconhecem, sobretudo, o papel da IA, em particular, a sua rápida capacidade de inferência e extração de conhecimento a partir de dados, para acelerar novas descobertas noutras áreas da ciência, neste caso, na física. “Além disso, promovem a fusão entre modelos físicos/químicos e aprendizagem automática, como é o caso da physics-informed machine learning”, destaca o investigador. É que esta semana – como já aqui fizemos notar – houve mais uma área premiada, em que também a IA revelou ser essencial, a da química.

Nobel da Química: os factos

9 de outubro de 2024 – um dia depois de serem conhecidos os galardoados com o prémio Nobel da Física – saem os resultados relativos ao prémio Nobel da Química. Os nomes de três cientistas são divulgados pela Real Academia Sueca das Ciências: David Baker, Demis Hassabis e John Jumper.

Comecemos por David Baker – norte-americano, investigador da Universidade de Washington – que, segundo a Academia Sueca, foi reconhecido por “um feito quase impossível”, “a conceção computacional de proteínas”. A justificação para o reconhecimento de Demis Hassabis – inglês, colaborador da Google DeepMind – e John Jumper – norte-americano, também colaborador da Google DeepMind – é outra: o prémio foi atribuído pela previsão da estrutura das proteínas – “as proteínas, os aminoácidos estão ligados entre si em longas cadeias que se dobram para formar uma estrutura tridimensional, que é decisiva para a função da proteína”, refere o comunicado emitido pela Academia Sueca.

As palavras do presidente do Comité Nobel da Química, Heiner Linke, foram as seguintes: “Uma das descobertas reconhecidas este ano diz respeito à construção de proteínas extraordinárias. A outra tem que ver com a realização de um sonho com 50 anos: prever as estruturas das proteínas a partir das suas sequências de aminoácidos. Ambas as descobertas abrem vastas possibilidades”. Outro dos destaques dados pelo Comité está relacionado com o grande potencial que estas descobertas podem ter, desde o fabrico de novos nano-materiais ao desenvolvimento mais rápido de medicamentos e vacinas específicos, não esquecendo a possibilidade de tornar a indústria química num setor mais ecológico do que é atualmente.

Estávamos em 2003 quando Baker conseguiu conceber uma nova proteína que era diferente de qualquer outra. Como é que o cientista conseguiu este feito? Para compreender é preciso explicar que as proteínas são, geralmente, compostas por 20 aminoácidos diferentes, que podem ser descritos como os blocos de construção da vida. David Baker conseguiu utilizar estes blocos para conceber, há 21 anos, esta nova proteína. Graças a essa descoberta, o grupo de investigação com quem trabalha conseguiu conceber mais proteínas, que podem ser utilizadas em produtos farmacêuticos, vacinas, nanomateriais ou até em sensores minúsculos.

Qual a razão para que Hassabis e Jumper tenham sido agora laureados com o Nobel se a previsão de estrutura de proteínas a partir de sequências de aminoácidos já era feita pelos investigadores desde 1970? É que há quatro anos, os dois cientistas apresentaram um modelo de IA chamado AlphaFold2.

Vamos perceber a ligação entre o Nobel da Química e IA?

Voltámos a chamar a esta conversa João Gama para que o cientista do INESC TEC possa explicar em que consiste o AlphaFold.

“O AlphaFold é uma ferramenta desenvolvida pela DeepMind, uma subsidiária da Alphabet (empresa-mãe da Google). Esta ferramenta utiliza IA para prever a estrutura tridimensional de proteínas a partir das suas sequências de aminoácidos. Essa capacidade é crucial porque a forma de uma proteína determina a sua função biológica. Entender essa forma ajuda em diversas áreas, como o desenvolvimento de novos medicamentos e o tratamento de doenças”, explica o investigador.

Estávamos em 2020 – ano de início da pandemia de Covid-19 – quando esta ferramenta “superou outros métodos tradicionais de previsão de estruturas proteicas no Critical Assessment of protein Structure Prediction (CASP13), um desafio bienal na área”, explica João Gama.

“O AlphaFold conseguiu prever mais de 200 milhões de estruturas proteicas – quase todas as proteínas catalogadas conhecidas pela ciência! A tecnologia por detrás do AlphaFold é uma arquitetura de rede neuronal chamada transformer, que é eficaz a lidar com dados sequenciais e a capturar dependências de longo alcance entre os aminoácidos”, conclui o investigador do INESC TEC.

Um dado curioso: há um português envolvido na criação deste algoritmo. Chama-se Hugo Penedones e é antigo estudante da Universidade do Porto, uma das instituições associadas do INESC TEC. Hugo Penedones trabalhou com os dois galardoados na DeepMind – entre 2015 e 2019 – e juntos (com outros autores) publicaram na revista Nature o artigo “Improved protein structure prediction using potentials from deep learning”. Nos primeiros dois anos esteve na sede, em Londres, e depois, nos outros dois, no escritório da Google em Zurique. Contou-nos que foi no período em que esteve em Londres que se envolveu no arranque do projeto AlphaFold.

“Tudo começou em fevereiro/março de 2016 quando foi organizado um Hackathon interno, onde tínhamos liberdade de, durante 3 dias, fazer qualquer projeto que achássemos interessante. Juntamente com os meus colegas Rich Evans (que teve a ideia) e Marek Barwiński, decidimos brincar com o problema de Protein Folding, escrevendo uns pequenos algoritmos de deep reinforcement learning e otimização que interagiam com o jogo FoldIt (desenvolvido pelo grupo do David Baker). O que fizemos no Hackathon acabou por ser premiado internamente como o melhor projeto, e gerou suficiente entusiasmo por parte da liderança da DeepMind (inclusive o CEO, Demis Hassabis – laureado com o Nobel) para começarmos a trabalhar neste problema a tempo inteiro”, conta Hugo Penedones.

Foi assim que, entre março de 2016 e setembro de 2017, o alumnus da Universidade do Porto esteve envolvido no desenvolvimento do AlphaFold1 que, como explicou João Gama, venceu a competição bi-anual CASP13, em 2018, e deu origem a alguns artigos, incluindo o da Nature.

“Depois desse primeiro sucesso, eu já não estive mais envolvido, mas a equipa cresceu e continuou a melhorar o sistema, dando origem ao AlphaFold 2 que ganhou o CASP14 em 2020 com resultados ainda mais impressionantes, e deu origem a outro artigo na Nature, da qual já não sou co-autor, pois não contribui nessa fase do projeto. É, sobretudo, esse artigo que ganhou ainda mais notoriedade e terá justificado o prémio Nobel”, explica Hugo Penedones.

A opinião do engenheiro informático, que atualmente trabalha na Inductiva, sobre o Nobel da Química é inequívoca e, aliás, há três anos tinha já feito uma afirmação pública a uma conhecida revista portuguesa em que o previa. “O que foi talvez surpreendente foi ter acontecido tão cedo, apenas quatro anos depois do CASP13. Tipicamente, os prémios Nobel esperam por mais validação. Mas acho que foi “fair enough“, pois a contribuição do AlphaFold não foi de tentar diretamente curar alguma doença, ou algum outro resultado, foi simplesmente desenvolver um método computacional que conseguisse prever com precisão a estrutura de proteínas a partir simplesmente da sua sequência de aminoácidos”.

Resumindo e concluindo

Começámos este artigo por expor a visão do investigador João Gama, para quem “estes prémios Nobel são um marco para a ciência e uma mudança de paradigma, porque passámos de um conceito de ciência baseada em modelos (model-based), para uma ciência baseada em dados (data-driven)”. Da atribuição destes prémios há, para o investigador do INESC TEC, implicações claras sobre as áreas onde Portugal e a Europa devem investir.

Vimos também que outros investigadores que trabalham no domínio de IA salientam uma faceta diferente. É o caso de Ricardo Bessa, que considera, sobretudo, que “uma lição a retirar destas distinções é que a ciência (e a inovação) de qualidade são, cada vez mais, multidisciplinares e com foco nos fundamentos (e menos na aplicação específica)”.

Já da parte da física, Nuno Silva – que também enfatizou a multidisciplinaridade – não nega o impacto que os trabalhos dos laureados têm nesta área de conhecimento. “De facto, o sucesso das abordagens deve-se, sobretudo, à aplicação de modelos e técnicas da Física Estatística, mostrando como é possível partir de modelos físicos e primeiros princípios para estabelecer bases sólidas e lançar novas áreas de conhecimento”.

De Hugo Penedones veio a certeza em relação à atribuição do Nobel na área da química, com surpresa, no entanto, por ter chegado tão cedo, naquele que é – na sua opinião – um reconhecimento justo do trabalho desenvolvido.

Parece ser, por isso, possível concluir que a discussão entre cientistas sobre este tema ainda será longa e que se houve algo que estes prémios Nobel espoletaram foi ainda maior vigor nos debates atuais sobre a inteligência artificial.

Entretanto, e enquanto escrevíamos este artigo, os outros prémios Nobel foram sendo atribuídos: o da Fisiologia ou Medicina a Victor Ambros e Gary Ruvkun, o da Literatura a Han Kang, o da Paz à organização Nihon Hidankyo, e o das Ciências Económicas a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson. Não deixaremos também de procurar saber mais sobre eles, certamente nestes casos a partir do comentário fundamentado e esclarecedor dos nossos colegas de áreas do conhecimento mais próximas.

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