No mapa tecnológico ainda há fronteiras que separam a computação quântica e a inteligência artificial?

A comparação não tardou e a pergunta corre o mundo: está o rápido desenvolvimento da inteligência artificial a deixar para trás a computação quântica? Numa altura em que permanece incerto o uso efetivo de máquinas quânticas para a resolução de problemas reais – com vozes a preverem pelo menos mais duas décadas para que tal aconteça – e em que a inteligência artificial avança rapidamente com impacto em diferentes setores de atividade – com vozes a defenderem que pode mesmo vir a resolver questões que as máquinas quânticas resolveriam – as fronteiras que as separam parecem cada vez mais ténues. Estamos diante de uma competição ou de uma oportunidade de colaboração com ganhos para ambas?

7 de janeiro de 2025. Las Vegas, Estados Unidos da América. Jensen Huang, fundador e CEO da NVIDIA faz uma apresentação sobre os avanços da inteligência artificial no evento CES – um dos maiores eventos de tecnologia do mundo, que juntou mais de 141 mil participantes, este ano. Diante de uma plateia de milhares de pessoas, atira o uso efetivo de máquinas quânticas para um horizonte de duas décadas.

Esta previsão de Jensen Huang não tarda a fazer-se sentir na área da computação quântica, com perdas para empresas como a Rigetti Computing, a D-Wave Quantum, a Quantum Computing ou a IonQ. Estimam-se quebras na ordem dos 40%, com perdas de milhões em valor de mercado. Um golpe duro num setor que tinha, há pouco mais de dois meses, beneficiado com o anúncio da Google sobre o chip willow, que parecia encurtar o caminho até ao uso generalizado de máquinas quânticas.

Certo é que a Google não tarda a responder e, para a mesa, lança um novo horizonte: cinco anos. Em entrevista à Reuters, Hartmut Neven, responsável pela área de Quantum da Google, diz estar otimista sobre o surgimento de aplicações reais dos computadores quânticos, dentro de cinco anos – aplicações como a construção de baterias superiores para carros elétricos, desenvolvimento de novos fármacos ou energias alternativas.

Da discussão sobre o tempo que falta até vermos um problema útil ser resolvido por uma máquina quântica, surge a comparação com a inteligência artificial, cujos avanços são evidentes. Estará a IA a ultrapassar a computação quântica? Será possível sequer que a possa ultrapassar ou mesmo substituir? Ou, por outra, o avanço de uma beneficia o avanço da outra? Usar máquinas quânticas para gerar dados para treinar LLMs (Large Language Models) poderá ser um caminho de colaboração? Será que a ainda não utilização efetiva de máquinas quânticas para resolução de problemas reais pode ser uma porta para que a IA o possa vir a fazer? As questões sucedem-se.

Alguns meses antes das declarações de Jensen Huang, Demis Hassabis, Prémio Nobel da Química e CEO da Google DeepMind, explica por que motivo acredita que os computadores clássicos são capazes de muito mais do que aquilo que inicialmente se imaginou, dizendo que os sistemas clássicos, se usados de forma correta, podem vir a ser capazes de modelar sistemas muito mais complexos – de forma contraintuitiva talvez até sistemas quânticos. Não o diz sem reconhecer que é uma ideia controversa, mas reforça que é preciso considerar, seriamente, a possibilidade de os sistemas clássicos poderem modelar sistemas quânticos.

Afinal, estará a inteligência artificial a ganhar terreno? Um artigo de opinião publicado no Financial Times e assinado pelo editor Richard Waters, lança a reflexão sobre a possibilidade de o rápido desenvolvimento da IA estar a deixar para trás a computação quântica e termina com uma dúvida sobre a forma como as duas se poderão articular. Nesta edição do INESC TECWatch, convidamos três investigadores do INESC TEC – Susana Vitória Marques, Alexandra Ramôa e Luís Paulo Santos – a analisar a evolução das duas áreas, as fronteiras que ainda as separam e aquilo que o futuro pode reservar. Competição ou colaboração? É o que vamos analisar de seguida.

Nesta edição do INESC TECWatch, convidamos três investigadores do INESC TEC – Susana Vitória Marques, Alexandra Ramôa e Luís Paulo Santos – a analisar a evolução das duas áreas

É muito mais o que as une do que aquilo que as separa?

Alexandra Ramôa, investigadora do INESC TEC e estudante de doutoramento na Universidade do Minho, acredita que a inteligência artificial e a computação quântica não têm muito em comum, além de serem tecnologias promissoras – “e, tal como qualquer outra tecnologia promissora, é bem provável que coexistam de forma benéfica, ao invés de competir entre si”. A opinião é partilhada por Susana Vitória Marques, que considera que as tecnologias não precisam de estar em campos opostos. Para a investigadora, que é também estudante de doutoramento na Universidade do Minho, “a computação quântica pode servir para melhorar a IA, ao invés de substituí-la, disponibilizando ganhos computacionais ou técnicas de geração de dados que, quando combinadas com os algoritmos avançados da IA, produzem resultados verdadeiramente transformadores. Por enquanto, a IA permanece com o rótulo de tecnologia que vai transformar o mundo. Ao contrário da computação quântica, não requer paciência: os resultados são imediatos”, refere.

Mas, nem sempre foi assim – os resultados nem sempre foram imediatos. Conforme explica Luís Paulo Santos, investigador do INESC TEC e docente na Universidade do Minho, a evolução do machine learning decorre há décadas – desde os anos 50 do século XX, mais concretamente -, tendo originado a expressão “Inverno da IA” (IA Winter). “A “Primavera da IA” (IA Spring) chegou, trazendo consigo desenvolvimentos impactantes, com base no crescimento exponencial do poder de computação tradicional, amplamente acessível”, refere. Ainda assim, de acordo com o investigador, apesar do tremendo impacto já demonstrado pelo deep learning, ainda pairam no horizonte algumas dúvidas: serão estes resultados escaláveis? Ou será que as capacidades mais avançadas irão exigir recursos e/ou dados de crescimento exponencial? Estará a Inteligência Artificial Geral (AGI) ao alcance da atual abordagem da IA? Ou iremos continuar nos domínios das máquinas de reconhecimento de padrões?

Alexandra Ramôa é investigadora do INESC TEC e estudante de doutoramento na Universidade do Minho

Alexandra Ramôa recorda que os modelos de linguagem natural já existem desde os anos 50, mas só capturaram a atenção geral devido a avanços recentes e ao aumento da acessibilidade – tornaram-se mais comuns e fáceis de utilizar. “Os princípios fundamentais da IA existem há décadas, sendo a recente “explosão” impulsionada por melhorias quantitativas: maior poder computacional, acesso a grandes conjuntos de dados, avanços nos algoritmos, entre outros. Embora a IA seja, indiscutivelmente, um tema interessante, o mais recente hype deve-se ao interesse do público geral – o que nem sempre constitui um critério sólido (ou consistente) em termos de mérito”, aponta.

Ainda assim, parece ser inegável o papel que esta tecnologia assume, atualmente, o nosso dia-a-dia, conforme relembra Susana Vitória Marques: “ao contrário de determinadas soluções, que permanecem confinadas aos laboratórios de investigação durante anos, a IA já está intrinsecamente ligada ao nosso quotidiano”. E, a investigadora recorda que não é apenas através de chatbots ou assistentes virtuais – a IA está presente em muitas áreas de atividade, apresentando importantes contributos para, por exemplo, o desenvolvimento de veículos autónomos, a transformação dos cuidados de saúde através da medicina personalizada, a deteção de fraudes bancárias em tempo real, assumindo ainda um papel transformador na automação industrial. “Na sua essência, a IA está a cumprir um desejo humano universal: tornar o trabalho mais fácil, mais eficiente e, sempre que possível, dispensável. A IA contribui para aumentar a produtividade e transformar a forma como vivemos e trabalhamos, em todos os setores. Especular sobre o futuro da IA é um desafio, mas uma coisa é certa: ela está em constante evolução”, explica a investigadora.

Diante da evolução da IA, estará mesmo a Computação Quântica a ficar para trás?

“As tecnologias verdadeiramente transformadoras trazem desafios concretos e oportunidades únicas – e explorar as últimas requer alguma paciência relativamente aos primeiros. A computação quântica é um exemplo claro, havendo quem afirme que ainda se encontra na sombra da atual “explosão” da IA. Tal como foi referido no artigo do The Financial Times, «torna-se difícil analisar os benefícios mais distantes e não comprovados das máquinas quânticas, numa era em que a corrida à IA domina as manchetes». O motivo para esta distância que nos separa das máquinas quânticas passa pela sua natureza verdadeiramente inovadora; e é precisamente nessa natureza que reside todo o seu potencial” – quem o diz é Alexandra Ramôa.

Para a investigadora, mais do que comparar a computação quântica à recente evolução da IA, os computadores quânticos podem ser comparados ao advento dos computadores digitais, quando ainda reinavam dúvidas sobre o seu verdadeiro potencial. “Ao longo da história, os avanços revolucionários foram frequentemente recebidos com ceticismo”, recorda, reforçando que desenvolver tecnologias diferentes de tudo aquilo que já foi feito anteriormente leva bastante tempo – mais ainda do que evoluir as soluções tecnológicas já existentes.

Luís Paulo Santos é investigador do INESC TEC e docente na Universidade do Minho

E, certo é que não se pode negar que a computação quântica tenha também conhecido um caminho de evolução ao longo dos últimos anos, ainda que a sua aplicação a problemas reais permaneça incerta. “A computação quântica também registou um progresso notável; no entanto, ainda está longe de demonstrar resultados práticos, que a separem, de forma clara, dos resultados que seriam alcançados com recurso a soluções computacionais tradicionais. Ainda não é possível determinar tais vantagens quânticas. E, mesmo que seja, é impossível concluir se são verdadeiramente práticas ou economicamente vantajosas. Esta questão é mais facilmente compreendida se a colocarmos ao nível da capacidade em alcançar a AGI”, afirma Luís Paulo Santos.

Segundo o investigador, o domínio do machine learning será uma das áreas que mais irá beneficiar da computação quântica – se ou quando esta se tornar prática – mas, deixa algumas questões: conseguirá o deep learning quântico aprender modelos mais eficazes ou eficientes do que os atuais modelos tradicionais? Serão esses modelos mais compactos? Conseguirão eles alcançar níveis de AGI? Será possível treiná-los de forma mais eficiente, ou em circunstâncias específicas, onde seria impossível treinar modelos tradicionais?

“A questão não é perceber se a IA é capaz de abordar problemas que serão resolvidos mais eficazmente com recurso à computação quântica. A questão é: irá a computação quântica tornar-se verdadeiramente prática, de forma a atingir o seu verdadeiro potencial? E de que forma poderá contribuir para abordar muitos dos atuais problemas a nível mundial, como o desenvolvimento dos denominados sistemas inteligentes?” – deixa em aberto Luís Paulo Santos.

Alexandra Ramôa também lança uma pergunta: “Mas o que podemos nós alcançar com a computação quântica, e não com a IA?”. Em resposta à própria questão, a investigadora explica que a computação quântica, em oposição à IA, não é um subproduto da computação clássica, mas sim um afastamento desse paradigma. As máquinas quânticas operam segundo um regime inteiramente novo da física, podendo explorar fenómenos inovadores para desbloquear ganhos computacionais que facilitam determinadas tarefas.

Susana Vitória Marques é investigadora do INESC TEC e estudante de doutoramento na Universidade do Minho

Ainda assim, Susana Vitória Marques lembra que a IA já é capaz de resolver determinados problemas que, à partida, exigiam capacidades computacionais mais avançadas – e não mostra sinais de abrandamento. “Embora alguns acreditem que a computação quântica irá levar a uma nova era de poder computacional, esta suposição baseia-se na ideia de que a IA permanecerá estática”, frisa, acrescentado que se está apenas a começar a compreender o verdadeiro potencial da inteligência artificial. “As atuais soluções – modelos de linguagem capazes de ter conversas quase humanas, sistemas autónomos que tomam decisões em frações de segundo, e ferramentas baseadas em IA para otimização industrial – são apenas a ponta do icebergue”, admite.

Na opinião da investigadora, a tecnologia não está apenas em constante evolução, está a acelerar e a redefinir os limites de tudo aquilo que as máquinas conseguem alcançar. “Apesar de a IA de hoje ser já bastante fascinante, o futuro desta tecnologia promete avanços que podem exceder as nossas expetativas mais ousadas”, conclui.

Voltando à questão inicial, as fronteiras parecem estar – por agora – definidas, com cada tecnologia a avançar ao seu ritmo e com muitas questões ainda sem resposta quanto àquilo que o futuro poderá trazer para cada uma delas, sabendo que o seu impacto e potencial são inegáveis – assim como a ideia de que a colaboração, mais do que a competição, poderá significar ganhos para as duas tecnologias.

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