Um multimilionário quer levar-nos a Marte: o que é que um propulsor reutilizável pode fazer por isso? E a que custo?

Imaginemos este cenário – ou joguemos este jogo: atiramos um cigarro aceso com toda a nossa força contra o céu e, quando finalmente vemos que cede à lei da gravidade, tentamos impedir que caia, “apanhando-o” com uma pequena pinça. Um maço tem 20 cigarros e as probabilidades de acabarmos com todos no chão é bem grande. Vamos mudar de escala: em vez de um cigarro, lançamos uma estrutura que não caberia entre as duas balizas de um campo de futebol, e trocamos a pinça por um par de braços mecânicos com um comprimento de cerca de dois autocarros. E, já que é para complicar, o “tubo” cilíndrico inflamado desce depois de ter subido até à mesosfera.

 

O momento em que a SpaceX recupera o propulsor do Starship.

 

Foi isto que aconteceu a 13 de outubro. No extremo sul do Texas, com vista para o México, a SpaceX lançou pela quinta vez o Starship, o maior foguetão espacial já construído – mas, desta vez, foi mais longe. O New York Times usa o termo “feitiçaria técnica” para descrever como, pela primeira vez, um propulsor – conhecido como Super Heavy booster – a cair a pique e a uma velocidade supersónica, foi instruído a planar e voltar ao local preciso de onde tinha sido lançado. Abraçado pelos “pauzinhos” da estrutura gigante, o propulsor tinha apenas uns “arranhões” para mostrar e estava praticamente pronto para reutilização.

Mas, afinal, porque é que falamos de um propulsor e porque é que Ana Pires, a primeira cientista-astronauta portuguesa e investigadora do INESC TEC, diz que o que aconteceu há semanas “é uma redefinição e revolução da exploração espacial e da sua industrialização”? Com a possibilidade de reutilizar equipamentos ficaremos mais perto de ver de perto amanheceres marcianos? E, na corrida para os vermos, estaremos também a queimar dias no nosso planeta ? Estaremos a voltar a danificar uma camada de ozono que um estudo da ONU, de 2023, tinha dado conta que finalmente estava com uma “notável recuperação”? As respostas estão no terceiro ensaio do INESC TEC Watch. Preparados para descolar?

Um mês antes da quinta descolagem das 5000 toneladas do Starship, Elon Musk, fundador da SpaceX, estimava que seriam precisos somente mais quatro anos para a Starship chegar a Marte – o homem mais rico do mundo tinha já avançado, em 2016, um cenário idêntico. O plano a longo prazo – e falamos de um cenário praticamente impossível de se materializar na próxima década –  é ambicioso: criar uma espécie de ponte aérea a ligar dois planetas, com voos vaivém regulares capazes de transportar centenas de pessoas – afinal, estamos a falar de um negócio que quer também rentabilizar o investimento feito.

Se isso acontecer, o dia 13 de outubro de 2024 terá lugar de destaque na linha temporal que irá responder à pergunta: “Afinal, como chegamos a Marte?”. Rui Moura, investigador do INESC TEC, ajuda a contextualizar este marco potencialmente histórico e como a forma de atuar da empresa de Musk pode colocar a Terra mais perto do planeta vermelho: “esta nova abordagem de desenvolvimento que a SpaceX usa, tem provado que a prototipagem rápida, do tipo “quick and dirty”, com lançamentos de teste sucessivos e com objetivos estratégicos limitados parece resultar, de facto, num progresso mais rápido do que abordagem convencional em que qualquer pequena inovação quase que obriga a um subprojecto e estudo de viabilidade, que demora tempo e tem custos elevados.” Não é de estranhar, por isso, que vamos vendo cada vez mais reportagens a dar conta de novos lançamentos, com contagens decrescentes e entusiastas armados de binóculos e indicador em riste a seguir a nave para não a perder de vista.

Uma torre gigante que é farol para o devir

A manobra que assistimos no Texas é “essencial”, continua o investigador na área da geofísica, “na perspetiva da redução de custos para cada acesso ao espaço, seja para órbita baixa ou para algumas missões deep space”. Naquele dia, correu tudo bem: o propulsor, com 33 motores Raptor – já lá vamos –, colocou com sucesso o módulo principal, a nave espacial Starship, em órbita – que, depois, aterrou de forma controlada no Oceano Índico – e fez o caminho até à base. É o cigarro a ser apanhado pelos bracinhos da pinça que entra para os “livros de história da engenharia” – palavras de Ana Pires. Podia ter corrido mal? Podia – e muito.

“Não nos podemos esquecer do tamanho do veículo. Com tantas manobras novas e com tantos elementos novos, tinha momentos mais do que suficientes para causar uma falha catastrófica. Bastaria um erro de alguns metros na aproximação para destruir a enorme e complexa torre de lançamento e aterragem”, reforça Rui Moura.

Segundo Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa, a SpaceX conseguiu ultrapassar “um conjunto de dificuldades técnicas” que iam desde a “fiabilidade dos motores e capacidade de reinicialização fiável” e pela capacidade de ter “estruturas capazes de lidar com o stress mecânico do lançamento e do regresso” até à necessidade de “algoritmos de controlo capazes de desacelerar e de pousar os estágios de forma coordenada”.

Estes braços gigantes estacionados perto da base da SpaceX integram uma estrutura conhecida como “Mechazilla” e o grande objetivo passa por usá-la para apanhar naves espaciais quando estas regressarem de órbita e prepará-las rapidamente para fazer nova viagem: com a continuação dos testes, a SpaceX poderá, um dia, recuperar e reenviar rapidamente os propulsores e os módulos principais para futuras missões à Lua ou a Marte: este é, pelo menos, o sonho do magnata Elon Musk: “Queremos acordar de manhã e olhar para o futuro com esperança, queremos sentir-nos entusiasmados com o que vai acontecer”, indicava o multimilionário sul-africano dono da Tesla e do X (antigo Twitter).

Este sonho começou a ser desenhado, na prática, ainda os braços do “Mechazilla” não tinham sido erguidos. É que antes do Starship, os Falcon 9, – foguetões com metade do tamanho   que continuam a sair para órbita constantemente – concentravam todas as atenções. A SpaceX já consegue recuperar e reutilizar os boosters destas naves recorrentemente. Agora, aumentou a escala.  “Aterrar foguetões após o voo é uma proeza que a SpaceX dominou com o Falcon 9. Agora, mostra que consegue fazê-lo no sistema Starship, que consiste num enorme lançador, com mais de 120 metros de altura e nove metros de diâmetro, constituído por dois grandes estágios, o Super Heavy Booster e o Starship: o booster permite elevar todo o sistema até ao limite da atmosfera e o segundo permite transportar as várias modalidades de payload e tripulações, quer em regimes orbitais, lunares e, no futuro, até Marte”, contextualiza Rui Moura.

Um carimbo para a História?

E depois há a capacidade e eficiência dos motores. Os Raptor, “mais potentes e eficientes” do que os Merlin usados no Falcon 9, distanciam-se de todos os outros usados a pensar na exploração espacial pela capacidade de produzir energia a partir de metano líquido e criogénico. O Raptor pode mesmo ser o “passaporte” para uma nova era de exploração espacial e Musk quer ter, pelo menos, 1000 “carimbos” em cada um para tornar viável o modelo de negócio da SpaceX e sustentar o sonho que tem propalado uma e outra vez de criar uma cidade autossustentada no planeta vizinho.

E isso é um “grande desafio”. Num artigo da Wired que mergulha na ciência que se esconde atrás das ligas de aço que revestem os Raptor, a revista lembra que “os motores mais reutilizados na história da exploração espacial foram os motores principais usados no sistema do Space Shuttle”, o vaivém espacial que a NASA operou durante três décadas. Os três motores RS-25 que equipavam cada um dos cinco vaivéns espaciais (OV-Orbital vehichle), cada um lançado apenas “algumas dezenas de vezes”.

Mas a imagem do “abraço” do Mechazilla uma estrutura que fica a dever 20 metros à Torre Vasco da Gama, criou esperanças de que “uma nova era de exploração espacial” possa mesmo estar a caminho. Ana Pires não tem dúvidas: “depois de termos podido ver o famoso sistema Mechazilla em ação, é certo que irá entrar nos livros de História de engenharia. Este feito só mostra como a engenharia é incrível e como a humanidade poderá estar mais perto de chegar a Marte”.

Portugal também olha para cima?

Atenta às movimentações do outro lado do Atlântico, a Agência Espacial Portuguesa usa o mesmo termo “incrível”; e antecipa as ondas que a demonstração pode levantar: “As imagens reais parecem saídas da ficção científica. Um veículo reutilizável desta dimensão impactará fortemente o mercado dos lançadores a nível mundial, reforçando o domínio da SpaceX no acesso ao espaço e pressionando os seus competidores a inovar para permanecerem competitivos”, contextualiza Ricardo Conde.

E em Portugal, há espaço para “inovar”? Sim. A Agência Espacial Portuguesa está a fazer esse trabalho e a alavancar o papel do país nas interações Espaço-Terra-Clima-Oceano, semeando terreno para que Portugal ganhe espaço no contexto europeu e mundial. “Em Portugal, também temos a ambição de promover atividades disruptivas de lançamento e retorno do espaço, tanto através de iniciativas privadas como com o Space Rider ,da European Space Agency. Estas iniciativas não serão certamente concorrentes da SpaceX, mas respondem a necessidades que ainda existem no mercado, como micro lançadores ou veículos capazes de realizar experiências em microgravidade”, indica o presidente da instituição.

Ana Pires, comandante da missão Camões, que durante sete dias simulou, numa gruta da ilha Terceira, o ambiente encontrado na Lua, argumenta que, embora a Europa ainda não esteja “ao mesmo nível” dos Estados Unidos da América, há “ambição”: “é necessário investimento que nos permita ser competitivos, promover um desenvolvimento sem burocracias, mais rápido e sem medos de assumir riscos. Temos de mostrar a importância da exploração do espaço e dos seus recursos, bem como o nosso potencial, e talvez em breve também façamos história como a SpaceX fez. Só depende de nós e da Europa”.

 

Já que fica a caminho: um pé na Lua para saltar até Marte

Ainda é cedo para dizer se a SpaceX vai mesmo conseguir levar o homem a Marte. Se o destino for a Lua, podemos – aparentemente – pôr já um lembrete no calendário. Daqui a dois anos, em 2026, a terceira missão do programa espacial Artemis quer recalcar o passeio de Neil Armstrong e Buzz Aldrin na superfície lunar. Artemis é o nome da missão que representa a renovada manifestação de intenções da NASA em regressar aonde já tinha estado; só que, agora, não quer ir para depois voltar: o grande objetivo é criar bases na órbita lunar e no próprio satélite.

E pode a Lua ajudar a chegar a Marte? Ora, há missões do programa Artemis escaladas até 2029 e o plano é pegar nas descobertas das repetidas viagens para preparar o último ensaio: chegar a Marte. Para perceber o papel que pode ter a Lua, tiremos os olhos do céu e voltemos à terra, esqueçamos astronautas e imaginemos… ciclistas. Sim, há paralelismos: diz-se que só se ganha uma Volta a França com meses de estágio em altitude e os trepadores procuram, com antecedência, as montanhas com mais de 2000 metros para habituar o corpo e aumentar a capacidade de o organismo absorver oxigénio. A expetativa é que, depois, não “faltem pernas” nos momentos decisivos. Com as viagens à Lua, a NASA vai estudar exaustivamente os efeitos da gravidade limitada no corpo humano nestes voos tripulados para não deixar nada ao acaso nas longas viagens a Marte. E há muito a estudar: o trajeto Terra-Lua-Terra faz-se em seis dias (ou nove com três de estadia na superfície), o ponto vermelho que sonhamos tocar fica a cerca de 210 dias de distância. A Lua é o estágio da Artemis para que o leque de surpresas quando chegar o momento de enfrentar a montanha decisiva seja o mais reduzido possível.

Será que os multimilionários sonham com ovelhas marcianas?

Será numa nave Starship que a agência do governo norte-americano irá aterrar no Pólo Sul da superfície lunar. A NASA fez acordos com empresas comerciais e parte para a descolagem com a SpaceX e com a Blue Origin – Rui Moura sinaliza que, na antecâmera das missões Artemis, a empresa do multimilionário Jeff Bezos “prepara-se para ainda este ano fazer o primeiro lançamento do New Glenn, um lançador quase equivalente em tamanho ao Starship” e igualmente capaz de fazer aterragens propulsivas.

Mas Marte só será uma possibilidade se as exclamações de alegria que se ouviram quando o foguetão Space Launch System se pôs a caminho da Lua, em 2022, na primeira missão Artemis, se estenderem a todas as missões até 2029, e a NASA, a SpaceX, a Blue Origin e restantes empresas comerciais conseguirem mesmo desenvolver uma estação orbital na Lua.

Há dois anos, Musk já tinha dado conta das intenções e do “caderno de encargos” da SpaceX para futuras cidades marcianas: transportar humanos, animais e criar uma “fábrica de oxigénio” no planeta avermelhado. No fundo, abrir caminho para começar de novo num planeta B. Os multimilionários protagonistas desta nova corrida ao espaço acalentam esta ideia: no fundo, dizem, Marte vai ajudar a “preservar” a Terra e Musk afirma mesmo “transformar-nos numa espécie multiplanetária”. Seria tema para um novo INESC TEC Watch. Para já, focamo-nos no impacto real e sentido na Terra na sequência desta nova corrida espacial.

Eis um aviso perentório: “um aumento da atividade dos voos espaciais pode danificar a camada protetora de ozono no único planeta em que vivemos”. O alerta é da Agência dos EUA para a Atmosfera e os Oceanos (NOOA, na sigla em inglês). E mais: é esperado um aumento de dez vezes nos lançamentos alimentados por combustíveis de hidrocarbonetos, “o que é plausível nas próximas duas décadas com base nas tendências recentes de crescimento do tráfego espacial”. Resultado? Danos na camada de ozono e alterações nos padrões de circulação atmosférica.

A “excitação” do 3, 2, 1…

Podemos dividir o impacto ambiental em duas categorias: durante a construção e da obtenção dos combustíveis necessários e durante o lançamento. No momento da descolagem, a Starship liberta CO2 e vapor de água. “Na área dos lançadores continua ainda a ser uma das combinações de combustíveis mais ecológicas disponíveis”, frisa Ricardo Conde. Porém, “há ainda muitas incógnitas” e o verdadeiro impacto ambiental é desconhecido “uma vez que é necessário ter em conta diversos fatores”.

“Uma coisa é certa”, continua, a Starship terá “uma menor pegada de carbono por cada tonelada lançada, quando comparada com o Falcon 9 e o Falcon Heavy, as soluções atualmente comercializadas pela SpaceX”. É estimado que um lançamento do Falcon queime mais do que 110 toneladas de queroseno refinado, emitindo, em minutos, as mesmas toneladas de CO2 que uma pessoa que viva para lá dos 70 anos. De acordo com Rui Moura, uma vez que a SpaceX e a Blue Origin substituíram o queroseno pelo metano, a dimensão da pegada pode ser mais reduzida.

E depois há a poluição que acontece… no espaço. “A Starship permitirá colocar uma grande quantidade de objetos, a um custo reduzido, em órbita, agravando o congestionamento de órbitas e potenciando um maior número de colisões e por sua vez detritos espaciais”, reforça Ricardo Conde. A constelação de satélites Starlink, operados pela SpaceX, são um bom exemplo disso. Ao todo, estima-se que haja mais de 6500 satélites em órbita. Este número cresce todos os dias e muitos, desativados, já não têm qualquer utilidade.

Com toda esta atenção dedicada ao Espaço e à imensidão que ainda desconhecemos, será que daqui a 20 anos conseguiremos olhar para a viagem da nave USCSS Nostromo, no filme Alien (1979), que partiu do planeta Terra para uma viagem de um mês até Neptuno, como não sendo totalmente implausível? “[No futuro, com a Starship,] até podemos ir a Vénus. A nave é uma solução geral para ir a qualquer ponto do Sistema Solar. O êxito não está garantido, mas a excitação sem dúvida”, antecipa Musk. O sexto lançamento da Starship está marcado para novembro e há quase uma contagem decrescente para ouvir a derradeira contagem decrescente. Há, de facto, “excitação”. Sobre isto, Musk tem razão; veremos se tem sobre tudo o resto.

Créditos: Steve Jurvetson – Flickr, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=153992387
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