A União Europeia (UE) tem metas ambiciosas quando se fala das emissões de gases com efeito de estufa (GEE), com objetivo de atingir a neutralidade carbónica em 2050. Neste contexto, a indústria transformadora, incluindo o setor industrial de produção de alimentos e bebidas, é chamada a desempenhar um papel decisivo nesta redução. O INESC TEC é um dos parceiros técnicos no desenvolvimento do “Roteiro para a Descarbonização do Setor Agroalimentar”, uma iniciativa financiada pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), copromovida pela Portugal Foods, InovCluster e Câmara do Comércio e Indústria de Ponta Delgada (CCIPD), que prevê um conjunto de medidas em áreas como a descarbonização, a digitalização e a economia circular.
Vamos falar de números? O setor de transformação de alimentos e bebidas nacional representa uma parte significativa do consumo energético da indústria transformadora e, com base em dados recolhidos em 2020, 66% das emissões GEE do setor provêm de combustíveis fósseis, principalmente do uso de gás natural. Para além disso, 90% do consumo energético do setor está ligado a usos térmicos. Ou seja, medidas como mudanças na iluminação, instalação de painéis solares fotovoltaicos ou eletrificação de empilhadoras não são por si suficientes para garantir as reduções ambiciosas das emissões do setor. Que trajetórias podem, então, as empresas seguir até 2050?
Zenaida Mourão, investigadora do INESC TEC e responsável pela parte do roteiro sobre trajetórias futuras do consumo de energia e as emissões GEE, explica que foram analisados diferentes cenários, com o objetivo compreender quais as alterações tecnológicas e de processos que têm maior impacto a nível de emissões com os menores custos de transição. Começando por um cenário no qual, em 2050, as tecnologias e os modos de produção são os mesmos de 2020 (Baseline), verifica-se que esta trajetória levaria a uma redução de apenas 19% das emissões GEE. O segundo cenário (Business-as-usual) que reproduz uma continuidade das tendências atuais a nível da melhoria das tecnologias, reflete-se numa redução de 40% das emissões. A substituição do gás natural pelo biogás na produção de calor, em conjunto com medidas de melhoria de eficiência dos processos, já permite atingir metas mais ambiciosas: com uma substituição parcial é possível reduzir as emissões em 70% e com o uso de gases renováveis como principal alternativa a redução pode chegar aos 89%. O cenário da eletrificação, que aposta numa eletrificação mais ambiciosa da produção de calor, é o que permite uma maior redução nas emissões (cerca de 91%) e com os menores custos anuais totais.
Investir para poupar
“Concluímos que o modelo que pressupõe não fazer nenhuma alteração nas tecnologias e processos, é o que representa maior custo acumulado de transição para o setor. Embora os cenários mais ambiciosos exijam investimentos iniciais mais elevados, estes resultam em ganhos de eficiência e custos operacionais mais baixos a longo prazo. Por exemplo, nestes cenários, quando eletrificamos significativamente a produção de calor, temos um ganho de eficiência que compensa o facto de a eletricidade ser cinco vezes mais cara do que o gás natural, pois iremos consumir menos eletricidade do que gás. Se implementarmos a estratégia de “eficiência energética primeiro”, podemos ainda reduzir os custos totais da transição em cerca de 4%, mantendo os ganhos em emissões”, adianta Zenaida Mourão.
As trajetórias de descarbonização são apresentadas em três fases. Neste momento, devemos dar prioridade às medidas de melhoria de eficiência dos processo até 2030, altura em que o sistema electroprodutor nacional estará já em estado avançado de descarbonização; na década seguinte, até 2040, as trajetórias propõem substituir os combustíveis fósseis, introduzir o biogás e acelerar a taxa de eletrificação da produção de calor e integração de solar térmico; o objetivo até 2050, é a eletrificação avançada, incluindo na introdução de bombas de calor até 200ºC, e uma quase total substituição do gás natural remanescente por gases renováveis, nomeadamente o biogás. Em todas as trajetórias, a introdução de uma maior percentagem de eletricidade produzida localmente (solar fotovoltaico), permite diminuir os custos totais de transição.
“As empresas conseguem, assim, perceber que tipo de tecnologia ou medidas podem implementar para chegar às metas definidas pela UE, e transpostas a nível nacional no PNEC 2030 e RNC 2050, nos próximos 25 anos. O pior que podemos fazer é não fazer transição nenhuma. A implementação acelerada de medidas de eficiência e eletrificação dos processos térmicos – através da introdução caldeiras elétricas, bombas de calor e fornos elétricos – associada à geração local de energia solar, integração de solar térmico e substituição dos gases fósseis por renováveis pode transformar a matriz energética do setor, ao mesmo tempo que aumenta a sua competitividade e resiliência. Não fazer nada vai custar mais às empresas, especialmente tendo em conta os custos que as empresas terão de pagar no futuro pelas emissões GEE”, explica a investigadora.
A análise de trajetórias de descarbonização foi feita a nível nacional, estando em estudo uma potencial adaptação para os Açores, dada a importância do setor nesta região. Estão também previstas ações de capacitação junto das empresas, com vista à divulgação do roteiro em todas as suas vertentes: descarbonização, digitalização e economia circular, de forma a contribuir para uma indústria mais limpa, eficiente e sustentável. Como próximos passos, será essencial fazer esta análise em conjunto com as empresas de diferentes áreas, para desenvolvimento de estratégias de longo prazo de implementação das medidas e das trajetórias adaptadas as características únicas de cada empresa.
O “Roteiro para a Descarbonização do Setor Agroalimentar” conta ainda com o apoio científico e técnico do INEGI, da Universidade Católica Portuguesa e do Colab4Food. Para além da análise e do roteiro das trajetórias futuras do consumo de energia e as emissões GEE, o INESC TEC colaborou com o seu know-how no roteiro para a digitalização do setor.