Há 25 anos, Rute começou um desenho que não quer acabar

O INESC TEC apareceu por acaso, mas foi ficando. Rute Ferreira conhece-o como poucos. Chegou para fazer páginas web há mais de duas décadas e agora integra a equipa de secretariado. Num “sítio muito fixe”, sem dias iguais, reencontrou-se com o desenho – soma “milhentos” –, arranjou formas de “desbloquear” a criatividade, que tem de sobra, ganhou coragem e encontrou um espaço seguro.

Perto da viragem do século, numa sala de um edifício no Largo de Mompilher, na baixa do Porto, uma estagiária olha para o relógio – que já avança para as 20h00 – e pergunta, a medo, se já pode ir embora. Respondem-lhe com outra pergunta: “Tu ainda aqui estás?” Ninguém deu por Rute Ferreira no primeiro dia no INESC.

Agora já não é assim: não há dia em que não se dê por ela: não há dia em que, de folha na mão e passo rápido, não cruze os corredores do edifício. Expansiva, de resposta rápida – que desarma qualquer um –, conhece quem está atrás de todas as portas. Chegou há 25 anos com uma missão: fazer páginas web. Acabou por correu três sedes do Instituto, acumular tarefas, ajudar a fazer relatórios de contas, integrar a equipa inicial do BIP – o boletim informativo do INESC TEC –, e a encontrar-se de novo com o desenho. Agora, é parte da equipa de secretariado.

O medo de fazer perguntas desapareceu há muito. Até porque do que Rute gosta mesmo é “lidar com pessoas” – e é o que tem feito nos últimos 25 anos no INESC TEC, um “sítio muito fixe” que nunca foi terreno minado para ser quem é. Na secretária – onde não passa muito tempo –, com um Freddy Mercury de punho em riste estampado na t-shirt, recorda como é que “isto do INESC TEC” aconteceu: “Fiz um curso de 12 meses e os últimos três eram de estágio. Nunca tinha ouvido falar do Instituto na minha vida. Quando vi que metia engenharias, voltei para trás e disse: ‘Não quero ficar lá, aquilo tem ar de ser muito difícil, muito complicado’.” Acabou por ficar. Começava, em 1999, o início de uma ligação que só tem espelho nas páginas desenhadas dos cadernos Moleskine que guarda onde ainda tem espaço.

Um boletim que nasceu a rir

Rute gosta da falta de rotina. Em Mompilher, na Rua do Pinheiro, agora colado à Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, não há dias iguais no Instituto – “há sempre coisas novas, se começares a escavar encontras minhocas, de certeza”, pontua. E depois foi o acaso a acontecer e a fortalecer a ligação. Primeiro caso: o reencontro com o desenho. Numa altura em que “nem papel de carta havia”, o BIP dá os primeiros passos. Estávamos em 2002.

“Basicamente, nos primórdios do BIP, o professor Vladimiro Miranda tinha umas ideias, nós passávamos ali um par de horas a rir e a dizer disparates e depois íamos construindo a edição. Na altura era coisa pequena. Tínhamos a “Asneira Livre” para coisas mais parvinhas e as galerias do Insólito; o professor Vladimiro teve depois a brilhante ideia de fazer o Biptoon, um cartoon. E a única pessoa que tinha jeito era eu, fiquei eu incumbida de o fazer. Foi assim que o desenho começou por cá”, relata.

Mas foi só um reencontro. O desenho aparece cedo e serve quase uma introdução à tenacidade e combatividade de Rute: “Descobri cedo que gostava de desenhar, só que no 5.º ano a minha professora disse-me que o que fazia não prestava; cheguei a casa e, como o meu pai desenhava bem, pratiquei para provar que estava errada. Percebi que gostava e comecei a entrar em competição com o meu pai.”

Rute (e um caderno) no (antigo) país dos sovietes

Seguiram-se filas de cadernos Moleskine que são quase diários dos anos que passaram – e Rute tem a certeza que já são milhentos em casa e centenas os desenhos que vagueiam pelo INESC TEC. E não se ficou por aí. Dos esboços traçou caminho para “tudo o que é trabalhos manuais”: brincos, colares, madeira, t-shirts, quadros.  É no INESC TEC que o click acontece: “Eu gostava muito dos desenhos do Mordillo então imprimi montes de livros e comecei a rabiscar até chegarmos aos biptoons, e aí começou a ser mais a sério.”

Os desenhos começam a sair dos cadernos e a colonizar as mesas e gavetas dos colegas: “Toda a gente achou piada e a querer comprar. Chegou mesmo a uma pessoa que tinha um blogue bastante conhecido, que divulgou. A partir daí, começou a circular no INESC e comecei a receber encomendas de fora. Houve uma altura em que não conseguia dar conta do recado, era quase um trabalho.”

E isso não era bom: “Quando te sentes obrigada a fazer o que quer que seja, mesmo que gostes muito, deixa de dar prazer.” O desenho funciona também como escape criativo para Rute. Não é que o trabalho aborreça, atenção, e ao longo de 25 anos nunca faltaram desafios, mas, por vezes, precisa de “desbloquear”. Em 2010, quando sentiu esse pulsar com mais intensidade decide entrar para a faculdade.

“Precisava de mais estímulos”, resume. Tinha começado o trabalho de secretariado e procurava agitar as ideias. Acaba por entrar num curso de Assessoria e Tradução, no ISCAP. Tracejava, sem saber, a estrutura de uma experiência transformadora. É aqui que entra o segundo acaso: a precisar de escolher uma língua, indecisa entre alemão e russo, abraça o cirílico. Com duas semanas, tem o primeiro teste – não na universidade, mas no trabalho: “Eu tinha duas semanas de aulas e vieram cá uns russos ao INESC TEC e o professor João Abel Peças Lopes disse para ir ‘infiltrada’. Eu fui e realmente ouvi muito russo, eis o que eu percebi: “até logo”, “olá”, “água”. Meses mais tarde estava em Moscovo graças à fundação da mãe da professora de russo. Recebeu luz verde do INESC TEC para passar um mês na Rússia.

Foi tudo muito rápido. Vê o nome em cirílico numa placa no aeroporto, “enfiam-na” numa carrinha, teme ir parar a um “galpão”. Os moscovitas não lhe devolvem grandes simpatias. No entanto: “Foi a melhor experiência da minha vida.”

“O primeiro dia foi horrível, achei que era tudo demasiado mau, lembro-me de ter acordado a pensar que era um pesadelo. Uma vez aventurei-me sozinha por Moscovo, a única coisa que eu tinha era um caderno Moleskine. Pensei: ‘Falas russo, vais ter de te orientar’. Nunca cheguei a ter medo, cresci muito. Foi o dia em que me senti mais corajosa e forte na minha vida. Nesse dia, tive a sensação de que podia voar se desse um saltinho.”

Bilhetes, mapas, desenhos, dicionário: Moscovo pode caber num caderno.

 

Esticar a corda

Trouxe o caderno cheio e um blogue onde narrava o dia a dia a Leste. Mas o curso não deu só viagens, deu também ferramentas que facilitaram o dia a dia (em reuniões, eventos, logística, e tudo o que envolve “contactar com pessoas”). E é aqui que Rute frisa e recalca: as pessoas. Defende-se de imediato: “Não tenho muita paciência, mas gosto mesmo de lidar com pessoas.” Passaram centenas por ela, muitas são amigas. “É a melhor coisa que o INESC TEC me deu: fiz muitos amigos aqui, vim trabalhar para aqui com 21 anos feitos, a minha vida foi aqui. Destes anos todos só sinto falta das pessoas que já não estão cá.”

Comove-se ao recordar os anos passados no Centro de Sistemas de Energia e a relação com o Professor Manuel Matos, de quem “gosta com paixão”; a comoção estende-se a Júlia Martins e Fátima Teixeira, “pessoas sem par”, que se tornaram família – “de manhã, a primeira coisa que faço é ligar o computador e ir dar-lhes um abracinho”. Nos últimos anos, desenvolveu um repertório “muito engraçado” com o Professor João Paulo Cunha, que a deixa “esticar um bocadinho a corda”.

“O Professor deixou-me ser eu própria. Sempre tive aquela ideia de que, para ser secretária, tens de ser um certo tipo de pessoa, vestires-te e atuares de certa forma. Ele aproveita este meu lado mais peculiar para fazer as coisas e deixa-me ser eu mesma e fazer as coisas à minha maneira”, explica.

Paragem obrigatória todos os dias: Rute não falha a visita à Contabilidade para o “abracinho”diário

“Vão ter de me aturar até ao fim

Tantas voltas depois, e volvidos quase 24 anos, volta a cruzar-se com o seu propósito inicial no INESC TEC: regressa ao Serviço de Comunicação (SCOM), casa do BIP, e o “lugar mais artístico da instituição”. “Sinto que é um regresso que tinha de acontecer, é onde preciso de estar. Agora, para acompanhar o cinzento do secretariado, tenho a cor do SCOM.”

No meio de tanto trabalho despachado e há mais de 15 anos como secretária só sente que ainda pode mostrar a “capacidade de liderança e de gestão de pessoas” e fazer algo diferente. “Às vezes até acho que não tenho perfil de secretária, vim para trabalhar em design, em páginas web, e, de repente, estou a trabalhar em secretariado. Mas acho que se pegassem em mim e pusessem a fazer outra coisa qualquer eu acho que me adaptaria e faria também.”

Ainda terá tempo. Há uns anos, uma iniciativa coletiva pedia à comunidade INESC TEC uma carta para o futuro – que deverá ser aberta nos próximos anos. Perguntava-se: “Onde é que achas que vais estar daqui a 10 anos?”. Rute, frontal e sem rodeios, respondeu sucintamente: “Acho que já não vou cá estar”.

“Agora vão ter de me aturar até ao fim. Eu nunca trabalhei noutro sítio diferente, entrei aqui com 20 anos, as coisas foram correndo muito bem, fui ficando”. Ainda cá está.

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