José Manuel Mendonça é o primeiro convidado da nova rubrica do BIP. Chama-se “On a Personal Note” e quer capturar uma imagem focada de quem faz parte da comunidade INESC TEC. De dois em dois meses, um convidado.
Porto, 1977. José Manuel Mendonça, um jovem engenheiro, abre as páginas do Expresso. O que lê não é animador: a inflação galopante e um escudo a perder músculo eram os inquilinos habituais daquelas páginas. A nova de um país livre dava lugar às contas difíceis de uma democracia a dar os primeiros passos. Diz-se que o FMI vai aterrar na Portela. É um país acelerado, mas instável. O recém-licenciado chega invariavelmente aos classificados. Lá, uma frase que se repete: “Procura-se engenheiro com cinco anos de experiência”. “Não havia oportunidades. Era de arrepiar”, recorda. É o mote. Surge uma oportunidade na Suíça e “abre-se o mundo”. Segue-se a Dinamarca e, mais tarde, Inglaterra. Mas, no fim – e no início –, sempre o Porto – e o INESC (agora, INESC TEC).
José Manuel Mendonça esteve sempre em movimento. A inquietação, a curiosidade e o “espírito construtor” que se começaram a desenhar na escola primária, em Esmoriz, e no Liceu Alexandre Herculano, no Porto, verteram para um percurso que quis sempre ser antídoto para o que lia nas folhas de jornal da altura.
É, por isso, difícil dizer que o INESC aparece como acidente de percurso. Estava a terminar o doutoramento, em Londres, iam os anos 80 a meio. Falam-lhe de uma organização ligada à universidade “com gente ousada, que queria fazer diferente e mudar o país”. Era o primeiro contacto com a instituição que viria a ser sua casa, durante 10 anos numa primeira fase e depois durante cerca de 20. “Na altura, o lema do INESC era ‘Vencer o Adamastor’. Dava alma à vontade de vencer a incapacidade, a autolimitação, de ultrapassar a ausência de uma ambição maior que se sentia na universidade”. Nesta altura, já tinha interiorizado o “Ser Forte para Ser Útil” das artes marciais vietnamitas, que praticava no Porto há bem mais de uma década.
Modo: em autoaperfeiçoamento
“Havia que fazer mais”, recorda. Fez – e continuará a fazer. Abril marca a passagem de testemunho na liderança do Conselho de Administração (CA) do INESC TEC, cargo que ocupa desde 2005 – como Presidente –, mas o Professor Emérito da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) não antecipa um futuro “de pantufas e sofá”: “Vou continuar ligado; vamos passar o testemunho, mas isso não quer dizer que não possa contribuir para o INESC TEC, para a ciência, para o país. Não me vejo mais em cargos executivos ou de gestão. Quero continuar a dar o meu contributo na ciência e na inovação, para as políticas públicas e através de projetos estratégicos de dimensão e impacto. Resisto mal aos desafios, se tiverem um propósito ambicioso, bom e útil”.
Pede-se a um homem habituado a olhar em frente para revisitar o passado e dá ideia de que só não houve tempo para mais. Professor Emérito da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, Presidente do Conselho Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, passagens pela administração da Fundação Ilídio Pinho e da Agência de Inovação – “fui imerso numa realidade em que tinha de aprender e entender de múltiplas áreas”, pontua.
“Sempre tive a necessidade de me sentir útil, de fazer coisas relevantes e de me melhorar a mim próprio. O meu percurso durante boa parte da vida foi um percurso de melhoria, de autoaperfeiçoamento, de foco e disciplina – até houve uma altura em que escrevia artigos sobre as bases éticas e filosóficas das artes marciais, sobre budismo zen. A ideia de autoaperfeiçoamento foi uma coisa que sempre me seduziu”, salienta.
O dojo e uma perspetiva diferente
É uma busca que começa cedo. Filho de engenheiro com “cultura e mundo”, cresce no seio de uma família de classe média. Lembra-se de o pai balizar as vivências e o contexto em que cresceu: “Não somos ricos, não somos pobres, somos remediados”. A avó, professora primária, não o dispensou de um ensino exigente, quase espartano – “costumo brincar a dizer que na segunda classe já sabia gramática e aritmética da quarta”, sublinha.
Os pais investiram na educação, que também se fez com edições Europa América em prateleiras recônditas: tem contacto com Camus, Sartre, Somerset Maugham ou Hemingway antes dos 17 anos – entretanto, na TV a preto e branco, não perde as lições de ética nas aventuras protagonizadas por David Carradine como monge de Shaolin na série de antologia “Kung Fu”. Guarda deste período uma experiência “transformadora”, quando, no verão de 1968, ganha “mundo” pela primeira vez. Passa cinco semanas na casa de um amigo do pai em Paris e sente uma cidade a ressacar de Liberdade. Mostra-lhe também “um mundo de diferença inacreditável”. “Foi um impacto brutal”, relembra.
É pouco depois de regressar de Paris que consolida as ideias de autoaperfeiçoamento, foco e disciplina. Corria 1970 e o dojo da Academia Soshinkai dá-lhe acesso a Mestre Tran Huu Ha e à prática das artes marciais orientais. “Para praticar era preciso ter uma licença especial, emitida pela Comissão Diretiva das Artes Marciais, um organismo do Departamento da Defesa Nacional” e consegui-la “era complicado”. A entrada na Academia fazia-se por recomendação de quem já lá estava, que “garantia” que o novo praticante tinha estatura moral e não iria “causar problemas”. José Manuel Mendonça entrou e, mais de cinco décadas depois, continua a descobrir o “tapete” e a divulgá-lo – é Mestre de Việt Võ Đạo e Presidente da Assembleia Geral da Federação de Artes Marciais Vietnamitas.
Começa este percurso antes mesmo de um outro que o acompanhará durante décadas: a Universidade. O curso de Engenharia Eletrotécnica na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, entre 1972 e 1977, surge na sequência de um percurso académico sem sobressaltos. Porém, no país em forte mudança “Havia um estado de tensão política na universidade e quem reprovasse dois anos seguidos ia para a tropa e depois para a guerra no Ultramar. A universidade era muito elitista, o número de pessoas que a ela tinham acesso era diminuto e muitos desistiam”, recorda.
Não era dos alunos que tinham sempre as melhores notas. A “culpa”? Havia colegas melhores – muitos até são amigos e investigadores do INESC TEC – e, para além disso, tinha algumas “distrações”, justifica. Não só a das artes marciais, mas também a da música. Integra uma banda de garagem que serviu de passaporte para “mais mundo”: “Lembro-me de sermos banda de suporte, numa festa de finalistas do Colégio da Nossa Senhora da Paz, da banda de rock que o Rui Reininho teve antes dos GNR, acho que era a Anar Band”.
A DHL não pode esperar
No fim do curso e de leituras de classificados com pouco proveito, a Suíça. É o embalo para uma carreira de inquietação constante. Em Zurique, no fim do estágio na Brown, Boveri & Cie, recebe a oferta de uma bolsa de doutoramento na ETHZ. Recusa.
“Na altura já estava a sonhar com a energia eólica e fazer um doutoramento em máquinas elétricas parecia-me uma coisa do passado, sem muita imaginação, cinzenta”. Próximo destino: Dinamarca. Vê uma imagem de futuro: corria 1978 e 25% da energia elétrica produzida pelo país já era de origem eólica. Regressa a Portugal, para integrar o projeto da Central Térmica de Sines, da EDP, e começar a carreira docente na FEUP, “mas nunca esquece” as renováveis e a energia eólica, área na qual na qual se veio a doutorar em Londres, no Imperial College, na década de 1980. Germina já a ideia de viver a universidade para além de si própria, na sua ligação com a sociedade e com impacto na economia e o INESC aparece como uma “resposta”.
“Fui ao encontro da dinâmica de uma instituição em melhoria contínua, sempre a evoluir, a aperfeiçoar-se para ser útil ao país. O INESC TEC evoluiu do ADN da instituição mãe, o INESC; conservou o ADN, mas evoluiu, tornou-se maior para ter mais impacto e inevitavelmente mais complexo. A razão pela qual durante tanto tempo me senti ligado é que a instituição tem muitos valores que eu próprio cultivo, sempre me senti aqui muito bem”, explica.
Recorda a abnegação coletiva de um grupo de pessoas nos anos 80 e 90 que queria pisar novo terreno sem medo. Um exemplo dessa herança: os projetos europeus de investigação. Desde o início do Primeiro Programa Quadro de Investigação na Europa, na década de 80, o INESC é parceiro em projetos de telecomunicações, sistemas de informação ou fibras óticas, até que surge “uma grande oportunidade” na área industrial que ”não se podia perder”. Segue-se uma história de impressoras avariadas e de um contrarrelógio entre a Rua José Falcão [casa do INESC Porto] e o Aeroporto – sintomática do espírito da altura.
“As candidaturas, que seguiam por DHL, eram entregues no aeroporto, enormes dossiers impressos. A complexidade da preparação e integração de informação dos vários parceiros europeus e a nossa falta de experiência atrasou a preparação e deixou tudo para a última hora, e umas impressoras desconfiguradas ameaçavam todo o trabalho. Fomos levar tudo de carro à DHL e acabei por cometer não sei quantas infrações de trânsito entre o INESC e o Aeroporto, porque não podíamos falhar a submissão da candidatura deste primeiro projeto europeu na área industrial. Não falhámos”, recorda. “Acabámos, mais tarde, por receber a coordenação técnica do projeto, que foi o primeiro de muitas dezenas na área da indústria”.
Sempre o Porto
Fixa-se definitivamente na Invicta. Quase instintivo, um reflexo de memória, o Porto como local de chegada. A família, os amigos, o Futebol Clube do Porto, de Pedroto, Rodolfo e Oliveira, a levantar o título em 1978 – e já lá vão “mais de cinquenta anos de sócio” – e, claro, as artes marciais. No fundo, o INESC TEC como âncora: “Percebi cedo que queria contribuir para mais e que o podia fazer a partir daqui”.
E fez. Viu o Porto crescer e dotar-se de um “dinamismo empreendedor”, a ganhar peso na ciência, tecnologia e inovação, em áreas como a saúde, o mar e as engenharias, com a FEUP, o INESC TEC e o INEGI no pelotão da frente. “Lembro-me que nós, no INESC TEC, estivemos a ajudar a InvestPorto, há dez anos, a trazer para cá a Euronext, a Natixis, a Fraunhofer, a Vestas, mostrando que aqui há potencial, há capacidade, há bons alunos, há qualidade na engenharia”.
E também há qualidade nas pessoas. Destaca aquelas com que se cruza diariamente nos corredores do Instituto. Define-se como um “construtor”: “Em todo o meu percurso, acho que ajudei a construir organizações e a desenvolver pessoas. Atualmente, a mais-valia das organizações, das empresas – e no INESC TEC ainda mais – são as suas pessoas. Nada disto teria sido possível sem trabalho em equipa na linha do tempo. Aprendi, como investigador e como gestor, que recebemos sempre um testemunho, um legado, que iremos, mais tarde, entregar. O que recebemos, em 2005, do Pedro Guedes de Oliveira e da sua equipa, entregamos agora, em 2024, ao João Claro e à sua equipa”.
“Penso que ajudei a construir uma instituição com pessoas capazes, competentes, audazes, sonhadoras, que querem ser úteis e que são também pessoas boas, com ética, caráter, e isso é muito importante. Fazem uma instituição única, na qual eu não fui mais do que um dos muitos construtores; gostei de construir e ajudar a fazer com que a universidade e a investigação possam dar um maior e melhor contributo para o país. Mas aqui dentro não sou só eu, há muitos outros.”
Vamos conhecer melhor os que por cá andam nos próximos meses.
Na mesa de cabeceira de José Manuel Mendonça: