“Senhoras e senhores passageiros, o comboio suburbano com destino a Porto-Campanhã, irá dar entrada na linha número um.” É assim que começa a sua manhã ou apanha o autocarro? Não prescinde do automóvel ou prefere a bicicleta? Tem a sua rota bem planeada ou improvisa durante o percurso?
Independentemente da forma como escolhemos deslocar-nos, uma coisa é certa: a mobilidade já não é apenas chegar do ponto A ao ponto B. Hoje, juntamos à equação a acessibilidade, a sustentabilidade e as tecnologias avançadas – como sensores, inteligência artificial, análise de dados ou redes de comunicação. O objetivo? Cidades mais inteligentes, com repostas otimizadas para garantir a segurança e o conforto de todos. Aperte o cinto (ou o capacete), e junte-se a nós numa viagem, “where no cars go“, com destino a um futuro mais eficiente e sustentável e com rotas planeadas com recurso a aplicações e a dados obtidos em tempo real. Preparado?
Em 1998, o filme Sliding Doors apresentou-nos duas versões paralelas da vida de uma mulher, baseadas num simples acontecimento: se ela conseguia ou não apanhar um comboio. Em 2024, talvez o filme já não fizesse tanto sentido. Porquê? São 8 horas da manhã de um dia da semana: para chegar ao nosso destino temos de apanhar um comboio e um autocarro. Apanhar ou não o comboio neste momento pode definir toda a nossa rotina matinal, mas, com recurso à tecnologia, sabemos como é que essa decisão nos afetará.
O projeto opti-MOVES procurou, durante quatro anos, melhorar a eficiência operacional e a qualidade do serviço nos sistemas de transporte público através da utilização de ferramentas avançadas de análise de dados e algoritmos de otimização. E é mesmo possível criar soluções que melhorem a mobilidade urbana – de forma eficiente, inclusiva e sustentável – estudando as rotas e usando modelos de previsão de procura. Tânia Fontes, investigadora do INESC TEC responsável pelo projeto, desenhou, em conjunto com a sua equipa, uma framework capaz de recolher, tratar e processar dados, e com capacidade para ser usada numa série de aplicações. “No âmbito do projeto desenvolvemos alguns exemplos dessas aplicações que pudessem contribuir para a melhoria do sistema de transportes públicos, desde o desenvolvimento de planos de rota mais inclusivos até à extração de conhecimento através de dados muito abrangentes. Não estamos a falar apenas de dados relativos ao transporte em si, como os movimentos dos veículos e as suas rotas, mas variáveis que afetam a mobilidade, como a meteorologia, eventos desportivos, dias da semana e até greves, que podem influenciar o fluxo de utilizadores nos transportes públicos”, explica a investigadora. Há ainda padrões atípicos, mas relevantes em determinados contextos, que podem ser identificados e ajudar os operadores, nomeadamente a ajustar as suas rotas. “A meu ver, o que é interessante é criar sistemas inteligentes capazes de identificar estas situações atípicas e estudar cenários alternativos que permitam melhorar a eficiência e a experiência do utilizador”.
Como usar transportes públicos sem dramas
De regresso à nossa viagem: será que consigo calcular quanto tempo vou demorar a ir do ponto A ao ponto B, mesmo tendo de apanhar dois transportes públicos diferentes? Apenas com base nos horários dos transportes é possível fazer uma estimativa, mas a questão da sincronização entre operadoras continua a representar uma limitação. “Muitas vezes, uma paragem de autocarro é utilizada por vários operadores, mas catalogada com identificadores diferentes, o que cria problemas na interpretação dos dados. Por exemplo, uma paragem pode ser chamada de “paragem”, “estação” ou “apeadeiro”, dependendo do operador, e ter não só nomes, mas também códigos de identificação distintos, e os modelos não conseguem perceber que se trata do mesmo local. Um dos objetivos do projeto foi fazer com que as bases de dados “comunicassem” entre si”, explica Tânia Fontes.
A outra questão é conseguir prever atrasos, acidentes ou desvios, tendo por base padrões de circulação. “O mapeamento é absolutamente essencial. Com dados GPS, monitorizamos a velocidade e a aceleração dos veículos, o que nos ajuda a identificar as áreas e períodos do dia críticos”, adianta a investigadora.
O acesso a estes dados poderá ainda ajudar a ajustar a frequência dos transportes ou a melhor gerir o tráfego em algumas zonas, considerado todos os meios de transporte, incluindo o individual. O projeto trabalhou, assim, em várias ferramentas e compilou informações que podem ajudar a suportar vários níveis de decisões dos operadores, sejam estas de controlo, táticas ou estratégicas. Mas, é necessária a colaboração de parte a parte: “Para fins de investigação, seria vantajoso que os dados fossem disponibilizados de forma mais ágil, algo que algumas entidades já fazem, mas há ainda um longo caminho a percorrer. Se houvesse um compromisso mais sério por parte destas entidades -municípios, áreas metropolitanas, empresas de transportes, entre outras – para explorar e analisar estes dados, poderíamos desenvolver e treinar algoritmos para resolver problemas de forma prática”.
Próxima paragem: acessibilidade
E se tivermos de apanhar um autocarro, mas estivermos numa cadeira de rodas? De repente, já não são apenas os horários que importam para planear a nossa rota. Quando a questão é acessibilidade, há outras variáveis a considerar. Em 2020, no âmbito do projeto opti-MOVES, as investigadoras Tânia Fontes e Teresa Galvão já tinha explorado o domínio da acessibilidade, de modo a tornar a experiência de utilização dos transportes público mais inclusiva. Mais recentemente, a investigadora do INESC TEC, Marta Campos Ferreira, desenvolveu uma aplicação móvel (app) direcionada para pessoas com mobilidade reduzida, de modo a facilitar a sua movimentação. BarrierBeGone é uma ferramenta colaborativa que permite às pessoas identificar obstáculos em áreas públicas. “Funciona de forma semelhante ao crowdsourcing, em que os utilizadores partilham informações sobre barreiras urbanas que encontram, como a falta de rampas, rampas muito inclinadas, passeios obstruídos, entre outros. Se alguém reportar, por exemplo, que um carro está a bloquear o passeio, essa informação pode ser validada por outros utilizadores, tornando a app mais fiável e útil para todos”, explica a investigadora. Estamos a falar de uma ferramenta que funciona um pouco como o Waze ou até o Google Maps, que recebem informação em tempo real dos seus utilizadores. Torna-se, assim, possível planear uma rota com mais segurança, para que possam navegar no espaço urbano com mais confiança.
O desenvolvimento da aplicação incluiu entrevistas com pessoas com mobilidade reduzida para identificar as principais dificuldades que enfrentam ao movimentar-se no espaço público, e um teste da app com feedback muito positivo. Marta realça que “esta abordagem participativa permitiu criar uma solução realmente eficaz, desenvolvida em conjunto com as pessoas que mais beneficiam dela”. Para aumentar o envolvimento das pessoas, a app pode integrar elementos de gamificação, permitindo aos utilizadores ganhar pontos à medida que contribuem com informações. “Há locais onde esta estratégia já é usada em apps colaborativas, incentivando a contribuição com recompensas simples, como descontos em serviços ou produtos de parceiros aderentes”, explica. Para a investigadora, esta ferramenta vai tornar as cidades mais inclusivas e permitir que os municípios possam atuar sobre as necessidades reais dos seus habitantes.
Mobilidade sustentável? Carros não entram!
Além deste projeto, Marta tem-se dedicado a desenvolver várias aplicações de incentivo à mobilidade sustentável. “A inclusão e a sustentabilidade urbana são os meus focos principais. Estou sempre a trabalhar em soluções que promovam o uso de bicicletas, andar a pé e utilizar transportes públicos”.
A mobilidade em Portugal tem evoluído com foco crescente em transportes públicos e meios de transporte mais sustentáveis. No entanto, a falta de infraestruturas e o financiamento insuficiente para as estratégias de mobilidade ativa (andar a pé e de bicicleta)[1] dificultam esta transição. E mesmo com a implementação de sistemas de gestão de tráfego, apps ou veículos elétricos, o comportamento das pessoas também exige mudanças.
Em 2022, o número de passageiros transportados nos sistemas ferroviários ligeiros (metro ou elétrico) aumentou 11,89% e nos pesados (comboio) diminuiu 3,39% em relação a 2019, depois de em 2020 e 2021 ter havido um decréscimo da utilização destes meios de transporte na ordem dos 50%, devido à pandemia de COVID-19. Já a utilização do transporte rodoviário coletivo sofreu um decréscimo de 12,26%.[2]
De acordo com o Observatório da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes, numa nota estatística do Tráfego Anual nas Vias Rodoviárias Nacionais de 2022, circulam, diariamente, cerca de 35.000 a 60.000 veículos nas principais vias das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Um número que pode ultrapassar os 100.000 veículos em algumas vias mais movimentadas, como a Ponte 25 de Abril e a autoestrada A5 em Lisboa, e na Via de Cintura Interna (VCI) no Porto. Nos últimos anos, o número de carros em circulação aumentou significativamente, com 450 mil novos veículos nas estradas entre 2020 e 2023, contrariando o objetivo de reduzir o congestionamento e as emissões de carbono.
Vou, então, pegar na minha bicicleta, para ir trabalhar. Mas será que o trânsito matinal me vai permitir circular com a agilidade esperada?
Marta desenvolveu um planeador de rotas que incentiva a mobilidade ativa, apresentando trajetos mais atrativos e seguros. “Este planeador de rotas tem em consideração, por exemplo, condições meteorológicas, e questões como a inexistência de sombra em dias quentes ou abrigos em dias de chuva. Identifica trajetos planos ou com inclinação e possíveis obstáculos. Mesmo em cidades adaptadas para caminhar, há outros fatores: o mesmo trajeto não será igual para um jovem ou para um idoso; para uma mãe com uma criança ou com um carrinho de bebé. Algumas pessoas valorizam a iluminação e os espaços verdes, enquanto outras priorizam áreas com câmaras de vigilância ou com presença de lojas. O planeador de rotas considera essas questões e sugere percursos adequados para cada tipo de mobilidade”, esclarece a investigadora.
Mobility as a service: o futuro é personalizado
A mobilidade urbana está a avançar para um modelo integrado e personalizado, conhecido como Mobility as a Service (MaaS). Esta abordagem permite reunir numa só plataforma digital diferentes modos de locomoção, oferecendo uma experiência de viagem mais fluida, e permitindo ao utilizador planear e pagar todo o percurso. “O objetivo é que o utilizador planeie uma viagem de A para B e possa visualizar e combinar os vários meios disponíveis, como ir a pé, apanhar um comboio, trocar para uma bicicleta, e pagar tudo de forma integrada,” explica Marta Campos Ferreira.
Foi com este princípio de simplificação da mobilidade que a investigadora participou no desenvolvimento da app ANDA para os Transportes Intermodais do Porto.
“A aplicação permite contornar o problema da complexidade de bilhetes e zonas. Sempre foi complicado para os utilizadores saberem que tipo de bilhete ou passe comprar, e queríamos que com a ANDA isso fosse algo em que nem tivessem de pensar – apenas validassem a entrada com o telemóvel e seguissem viagem”, argumenta a investigadora.
A app ANDA permite que o utilizador faça check-in ao entrar nos veículos ou nas estações, usando tecnologia NFC. Uma vez feito o check-in, a viagem é monitorizada até ao fim, e a tarifa é calculada automaticamente com base num algoritmo de otimização. “Este algoritmo garante que o passageiro pague o mínimo possível, aplicando, por exemplo, um bilhete diário em vez de múltiplos bilhetes individuais, ou até um passe mensal, caso faça muitas viagens frequentes,” explica.
Para Marta, “esta ferramenta representa uma evolução essencial na mobilidade urbana, simplificando ao máximo a experiência do transporte público, contribuindo para uma cidade mais prática e acessível”.
Sincronização de transportes públicos, planeadores de rotas mais acessíveis e seguras, aplicações que permitem viajar sem ter de comprar um bilhete: já o convencemos a abandonar definitivamente o automóvel?
Vamos fazer entregas mais sustentáveis?
Chegámos ao nosso destino, mesmo a tempo de receber a nossa encomenda. Desta vez, o estafeta veio de trotinete. O projeto e-LOG surge no contexto do crescimento acelerado do e-commerce, que tem transformado as tendências de consumo. O problema? Este aumento das compras online pressiona as cadeias de distribuição e levanta questões no âmbito do Pacto Ecológico Europeu, que visa reduzir drasticamente as emissões de carbono. “A Comissão Europeia estabeleceu metas ambiciosas para a descarbonização, mas o transporte de mercadorias nas cidades – em grande parte movido a combustíveis fósseis – é um grande obstáculo para alcançar esses objetivos. Por isso, o e-LOG procurou avaliar a viabilidade de substituir veículos tradicionais por opções mais sustentáveis, como bicicletas elétricas e trotinetes, em zonas urbanas” explica Tânia Fontes.
E se a minha encomenda for volumosa e pesada? É claro que não pode ser entregue por um estafeta de bicicleta. Mas vai muito para além disso: em áreas com características específicas, como os centros históricos, o uso de bicicletas e trotinetes é desafiante, pois as condições do terreno, em particular a inclinação, o tipo de via e a densidade da procura condicionam a forma como o transporte é realizado. “Percebemos que em certos locais, como zonas de difícil acesso, os veículos elétricos apresentam melhores resultados em distância percorrida e tempo de entrega. No entanto, as bicicletas tradicionais ainda são imbatíveis em emissões zero” aponta a investigadora.
Apesar das soluções elétricas serem muito mais interessantes do ponto de vista da sustentabilidade ambiental, não existe uma única solução perfeita. Segundo Tânia Fontes, a adaptação das estratégias logísticas deve ajustar-se às variáveis de mercado, como o aumento da procura, a sazonalidade e as restrições ambientais. “Estudámos algumas estratégias para as áreas urbanas, com inspiração em grandes empresas de logística. Por exemplo, a atribuição de zonas fixas para os estafetas, permite que estes conheçam bem as suas áreas de trabalho, o que lhes permite criar rotinas, mas também permite reduzir, em simultâneo, os tempos de entrega, aumentando assim a eficiência do processo. E isto também é uma forma de alcançar a sustentabilidade considerando não só a dimensão económica e ambiental, mas também a social”, defende.
O e-LOG propõe ainda algoritmos que permitem monitorizar a localização dos camiões e o tempo de espera durante as entregas, reduzindo “tempos mortos”. “Esta tecnologia, além de melhorar o planeamento, proporciona uma visão detalhada dos locais onde há atrasos na rota, sejam eles na entrada de fábricas ou empresas, nas zonas de parqueamento, ou na própria estrada” esclarece Tânia.
O certo é que as compras online continuam a crescer e a logística terá de se adaptar, procurando soluções alternativas no caminho para a sustentabilidade. Será que ainda vou a tempo de apanhar o autocarro e fazer as minhas compras na loja física?
Com todas estas inovações e tecnologias à nossa disposição, a questão já não é apenas se vamos apanhar o autocarro, o comboio ou o metro, mas quais as alternativas mais acessíveis, sustentáveis e eficientes. Última paragem? Cidades cada vez mais inteligentes.
[1] A MUBi – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta criticou recentemente o baixo investimento governamental para 2024, apontando que apenas 1 milhão de euros foram alocados, quando países como a Irlanda investem esse valor diariamente em medidas semelhantes.
[2] Dados recolhidos no Anuário Estatístico da Mobilidade e dos Transportes do IMT.