Como a tecnologia pode reescrever a nossa identidade

O que significa ser uma pessoa? O que molda a nossa identidade? Somos um conjunto de memórias e experiências contínuas? Possuímos apenas uma identidade ou coexistem em nós múltiplas personas? Se já se cruzou com “Severance”, estas e outras questões já lhe passaram pela cabeça. Criada por Dan Erickson, a série conta a história dos funcionários de uma empresa que têm duas identidades totalmente separadas – a pessoal e a profissional – e onde as memórias não são partilhadas. Da ficção à realidade, colocam-se também, hoje, muitas questões sobre o controlo que temos sobre as diferentes “versões” da nossa identidade. Num mundo onde os documentos digitais e as credenciais verificáveis ganham terreno, podemos perder a privacidade e autonomia quando se trata de partilhar os nossos dados?

Imagine-se, agora, a passear na rua. É abordado pela polícia, pedindo que se identifique. O primeiro instinto será mostrar o seu cartão de cidadão. Mas não será a identidade de uma pessoa mais do que um mero documento com informação pessoal?

 

De acordo com a Iniciativa de Identificação para o Desenvolvimento do Banco Mundial (World Bank’s Identification for Development na versão anglo-saxónica), em todo o mundo, cerca de 850 milhões de pessoas não possuem um documento oficial de identificação e 3,3 mil milhões não têm acesso a identificação digital. Esta ausência de documentação afeta sobretudo pessoas na África Subsaariana e no Sul da Ásia, e mais de metade são crianças cujos nascimentos não foram registados.

É neste contexto que nasce o IDINA, um projeto que pretende mapear as relações sociais de confiança como base para um sistema de identificação que envolva escolas, instituições de saúde, ONGs ou autoridades locais como fontes de informação sobre o nascimento e eventos de vida dos cidadãos. Um conceito arrojado que lhes valeu o primeiro prémio da 3.ª edição do prémio IN3+.

O IDINA baseia-se em muito mais do que dados biométricos.

Ao longo de vários anos, investigadores do INESC TEC tiveram a oportunidade de trabalhar em diferentes regiões, particularmente em alguns Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste, onde se depararam com evidências de um problema que afeta uma geografia bem mais alargada: a dificuldade da população em obter documentos oficiais de identificação. Para Vítor Fonte esta foi uma oportunidade de perceber o quão longe estamos da realidade desses países: “começamos a delinear uma solução pragmática para a identificação de pessoas em regiões onde o Estado tem dificuldades em garantir o registo civil. Este é um dos melhores exemplos da tecnologia aplicada ao mundo real e às necessidades das pessoas. Se a investigação fundamental é crucial, o que faz o avanço da ciência são projetos como este, que mostram a relevância do que fazemos dentro de portas”.

João Marco, outro dos investigadores na génese deste projeto, explica que todo o sistema foi construído com base nas normas técnicas internacionais atualmente utilizadas em registos civis oficiais. O que significa que, para além de acautelar as questões de segurança e privacidade, prevê ainda a interoperabilidade do sistema. Uma vez que as regiões-alvo são frequentemente campo de trabalho de organizações não-governamentais, seria útil tentar mapear as relações de confiança que essas entidades possuem com as populações e permitir a criação de um sistema pragmático de identificação dos cidadãos. “Precisávamos de uma abordagem diferente da que é tipicamente adotada, desenvolvendo um sistema que, ainda que suportado por uma infraestrutura digital, não exigisse o mesmo ao cidadão. A ideia era que em muitas das regiões onde as pessoas ainda não possuem documento oficial de identificação, pudessem ser reconhecidas de forma prática pelas múltiplas entidades com as quais interagem no dia-a-dia. Essas entidades – que em muitos casos complementam ou substituem mesmo o Estado nos serviços prestados às populações – poderão, por seu lado, conhecer melhor a população, coordenar e planear de forma mais eficaz e eficiente a o serviços por elas prestados.”, refere.

 

O que é a verdade?

Como garantir, então, a confiabilidade da informação fornecida por essas entidades? “O IDINA pressupõe a criação de uma identidade não autoritativa, ou seja, que não é oficialmente reconhecida pelo Estado. Em vez disso, baseia-se numa rede de entidades que, ao longo do tempo, contribuem para a formação de um perfil confiável sobre os indivíduos. O investigador João Marco vai mais longe: “se pensarmos bem, os nossos documentos de identidade não refletem necessariamente a verdade; eu conheço algumas pessoas que têm registada uma data de nascimento incorreta. Com o IDINA, à medida em que múltiplas entidades fornecem dados sobre o mesmo indivíduo, a informação vai sendo enriquecida, confirmada ou corrigida, e atribuímos um nível de confiança crescente àquela informação. Num cenário onde os dados são incompletos e muitas vezes divergentes, este sistema dinâmico é capaz de fazer convergir essa informação e atribuir níveis de qualidade a cada atributo sobre um indivíduo”.

Como não há uma “verdade definitiva” que é oferecida por uma entidade como o Estado, é natural que haja visões ligeiramente diferentes do que são os atributos associados aos cidadãos. Com a ajuda da matemática, é possível analisar uma coleção de dados (afirmações) sobre os cidadãos e perceber se são confiáveis. Outro aspeto inovador do IDINA é a abordagem à privacidade dos indivíduos. “A preocupação com a proteção de dados foi central desde o início. O sistema não armazena informação sensível de forma centralizada, e o controlo dos dados está sempre nas mãos do próprio cidadão”, reforça João Marco.

“Num mundo ideal, o IDINA não seria necessário”, lembra João Marco. Mas não sendo essa a realidade, pode ser a resposta não só para populações sem registo civil, mas também para outros contextos, como migrações forçadas ou populações marginalizadas. “O IDINA pode ser uma solução transitória para um sistema estatal ou, em alternativa, pode funcionar como um sistema independente que garante identidade e acesso a serviços essenciais”, explica João Marco.

 

Não somos um número

O trabalho com a identidade digital não é novo para Vítor Fonte. O Mobile ID, um projeto que se iniciou com a Imprensa Nacional Casa da Moeda, baseado na arquitetura e mecanismos propostos na norma ISO/IEC  18013-5:2021 para a construção de documentos de segurança.

A forma como somos atualmente identificados – recorrendo a números – não define a nossa identidade

“A ideia era usar uma arquitetura, tendo em consideração um conjunto de protocolos, para criar documentos de segurança digital, com diferentes campos de aplicação. Poderia ser, por exemplo, uma carta de condução, um documento único de registo automóvel ou até um documento de sócio de um clube de futebol”, adianta. No fundo, o trabalho desenvolvido estava já a ir ao encontro do que é hoje o objetivo da União Europeia de permitir aos cidadãos associar as suas identidades digitais nacionais a outros atributos pessoais, como cartas de condução, diplomas e contas bancárias, proporcionando, ao mesmo tempo, o pleno controlo sobre os seus dados quando acedem a serviços online em todo o espaço europeu, eliminando a partilha desnecessária de informações pessoais.

Regressamos agora a Severance: teremos nós o direito de também separar as nossas identidades? Afinal, todos nós desempenhamos diferentes papéis na sociedade e a multiplicidade de identidades reduziria o risco de rastreabilidade.  Estaremos mal identificados nos sistemas atuais? “No fundo, podemos dizer que sim, são sistemas muito parcelares. É uma limitação reconhecida dos sistemas de tradicionais de identidade. Eles são usados para nos identificar junto de um conjunto de entidades, mas não mais do que isso; há um conjunto de informação associada a uma pessoa que se perde. Para o bem e para o mal.”, sugere Vítor Fonte.

A existência de um ecossistema digital com entidades que produzem informação sobre os cidadãos, e que podem ser usadas em diferentes contextos, pode muito bem ser o futuro. O IDINA já deu os primeiros passos. “As pessoas não são números e, no IDINA, quando falamos em identidade não nos referimos ao número de registo civil. São as interações das que as definem e é daí que extraímos a sua identidade.

Imaginem, agora, como seria mais fácil tomar decisões se conhecêssemos as pessoas para lá daquilo que um sistema define como prova de identidade, seja uma impressão digital, um número de segurança social ou um registo de nascimento. Parece impossível?

 

Da teoria à prática

“Nós fizemos um esforço significativo para ter melhores algoritmos de consolidação da informação do que os que estavam descritos na literatura até agora. Portanto, há aqui contributos verdadeiramente inovadores nessa área”, adianta Vítor Fonte. O próximo passo é levar a solução do laboratório para o terreno. “O IDINA foi testado laboratorialmente com dados públicos e dados sintéticos gerados por nós para validar as componentes do sistema. Agora é necessário pô-lo no campo, avaliar o resultado e fazer os ajustes necessários”, explica João Marco.

Possuímos apenas uma identidade ou coexistem em nós múltiplas personas?

O IDINA pode, segundo Vítor, ser usado em contextos em que nem sequer há uma representação escrita do nome dos cidadãos: “quando não há tradição escrita, o mesmo nome pode estar escrito de maneira diferente, e o IDINA tem de perceber estes contextos. Outro exemplo, o Vítor pode escrever-se com C ou sem C, pelo que o sistema tem de atender a estes pormenores”.

Há também dados e atributos que podem não estar pensados e que terão de ser consolidados, assim como a questão da interoperabilidade. Como é que o IDINA se vai ligar a outros sistemas? Como motivamos as entidades a participar? É perfeitamente possível que o passo seguinte seja migrar os dados do IDINA para um Serviço Central de Registro Civil. “O IDINA é um sistema não autoritativo, mas pode servir de base para a incorporação desta informação num sistema autoritativo, com bases legais que poderiam sustentar o uso desta informação”, adianta João Marco.

No fundo, o IDINA representa um passo significativo na interseção entre tecnologia, direitos humanos e inclusão social. “Transferir tecnologia dos nossos laboratórios para melhorar a qualidade de vida das pessoas é, para nós, um verdadeiro compromisso”, conclui Vítor Fonte.

Regressamos à pergunta do início: se pedirem para se identificar, como o vai fazer?

 

 

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