Conexões Invisíveis: a saúde para além dos cuidados médicos

Vivemos num mundo interconectado, transcendendo barreiras geográficas e disciplinares. Assistimos a um crescimento exponencial das redes sociais, vivemos em casas inteligentes, onde aparelhos eletrónicos e eletrodomésticos são controlados através do telemóvel, aderimos de forma generalizada ao trabalho remoto, fazemos, cada vez mais, as nossas compras online. E na saúde? Quantos de nós usamos wearables para monitorizar o número de passos diários ou a qualidade do nosso sono? Mas mais do que cumprir uma meta, constantemente recordada pelas vibrações dos nossos relógios – “Já só faltam 3000 passos para atingir a sua meta diária” – será que estamos focados na saúde como um todo? Será que temos noção de que tudo em nosso redor influencia o nosso estado? Estamos à procura de soluções unificadas na prevenção, na deteção e na resposta a ameaças globais à saúde?

1998, Malásia. O vírus Nipah causou centenas de casos de encefalite aguda e outras tantas mortes. A origem? Um grupo de morcegos (hospedeiros naturais) passou o vírus para os porcos que o amplificaram e transmitiram aos humanos. O surto começou numa quinta e rapidamente se propagou, tendo um significativo impacto na saúde pública. Foram levantadas questões relacionadas com a desflorestação que terá forçado os morcegos a procurar alimentos em áreas habitadas. Mais de 20 anos volvidos, multiplicam-se eventos semelhantes que sustentam aquilo que está na base do conceito “One Health” (Uma só Saúde): as atividades humanas, a saúde animal e as condições ambientais estão interligadas, e é urgente adotar abordagens integradas.

Vamos conhecer alguns pontos de partida para essas abordagens?

 

Saúde humana, animal e ambiental: a tríade que nos traz equilíbrio

Nos últimos quatro anos o INESC TEC esteve envolvido em cerca de 70 projetos na área da saúde humana, com um financiamento na ordem dos 12 milhões. Na investigação, como na saúde, cruzam-se vários domínios e conhecimentos em prol de soluções que promovam o bem-estar das pessoas.

Carlos Ferreira, investigador e Business Development Manager do TEC4Health do INESC TEC, reconhece que a simbiose entre humanos, animais e natureza é essencial, na resposta a surtos pandémicos ou no controlo da resistência a antimicrobianos, por exemplo. Uma tríade que se sustenta em relações de dependência e colaboração para o equilíbrio do ecossistema.

O caduceu de Hermes, símbolo do conceito One Health, é um convite à união e equilíbrio entre forças opostas.

“Estamos muito dependentes do ambiente e dos animais para a nossa sobrevivência e há muitas evidências do impacto que podem ter na nossa saúde. Isto é notório na alimentação: é verdade que a prevalência de intolerâncias alimentares, como intolerância ao glúten e à lactose, tem sido observada em algumas populações. A causa dessas intolerâncias é multifatorial e pode incluir fatores genéticos, imunológicos, mas também ambientais. Por exemplo, com a aplicação de pesticidas para controlar pragas nas plantações, estamos a agir sobre os alimentos que ficam ligeiramente modificados e aos quais não somos tolerantes”.

Mas os exemplos não acabam aqui. Vamos a números: 60% dos agentes patogénicos que causam doenças humanas têm origem em animais domésticos ou na vida selvagem; 75% das doenças humanas infeciosas emergentes têm origem animal; 80% dos agentes patogénicos que são motivo de preocupação em termos de bioterrorismo têm origem em animais.

Quando falamos em zoonoses[1], a chave parece residir na prevenção. É, por isso, necessário monitorizar os animais, na medida do possível. Algo que já é feito ao nível das plantas: no âmbito do projeto METBOTS, foi desenvolvida uma solução que integra sensores avançados que utilizam a luz para medir as transformações orgânicas que ocorrem na planta para, desta forma, obter uma maior qualidade na colheita. Imaginem poder fazer o mesmo em animais…e pessoas!

 

O Tricorder do Spock ganha vida

Em Star Trek, a personagem Spock usava um aparelho capaz de diagnosticar qualquer doença ao aproximá-lo do paciente. Uma tecnologia fantástica que pouparia muito tempo e trabalho aos médicos. Ainda não temos um tricorder, mas estamos cada vez mais perto, com a possibilidade de fazer diagnóstico no local. Rui Martins, investigador do INESC TEC, lidera uma investigação na área dos testes point-of-care[2], que combina espectroscopia UV-visível e inteligência artificial e permite identificar e quantificar elementos constituintes de amostras de sangue. A mesma técnica usada em plantas e animais, agora estudada em seres humanos.

Não é ficção! O “Tricorder” criado no INESC TEC é muito semelhante ao de Star Trek: pequeno, portátil, e capaz de analisar e interpretar dados.

“O sangue é um veículo de tudo o que se passa no nosso corpo e é primordial nas análises clínicas. Usando apenas uma gota de sangue, e sem recurso a reagentes conseguimos resultados imediatos. Isto é extremamente vantajoso, pois para além da conveniência por ser portátil e rápido, é também barato. Além disso, a não utilização de reagentes vai resolver problemas de inventário e armazenamento”, explica Rui Martins, que perspetiva um futuro em que cada pessoa poderá ter o seu próprio analisador portátil e capacidade de enviar resultados imediatos ao médico. O próximo passo é a comercialização destes equipamentos.

Atualmente, o Serviço Nacional de Saúde está equipado com tecnologia de ponta e infraestruturas de milhões de euros. Já existem sistemas eficientes (é possível processar 1000 amostras recolhidas numa manhã até à hora de almoço), mas podemos atingir níveis de otimização superiores.  “O Point-of-Care não vai acabar com os laboratórios. Mas há situações em que este sistema pode mesmo fazer a diferença. É muito útil para doentes crónicos que precisam de fazer análises com regularidade, ou para a colheita em bebés ou doentes em cuidados intensivos, e mesmo em medicina de emergência por apenas exigir uma gota de sangue e o resultado ser imediato”, adianta o investigador.

A aplicação desta metodologia à área veterinária é revolucionária, sobretudo porque, atualmente, não é possível efetuar-se uma monitorização exaustiva. Rui Martins dá o exemplo da tuberculose: “Os animais selvagens estão a ganhar terreno no interior do país devido à despovoação e não temos forma de monitorizar continuamente os animais, como é o caso do javali que é um vetor da tuberculose humana. Quando um caso é detetado a infeção pode já estar presente na população de animais”.

Este sistema de análise no local e em tempo real é também a base do projeto Multiscope que, neste caso, combina, de forma inovadora, estetoscópios multimodais (que fazem auscultação e realizam eletrocardiogramas) empregando técnicas de deep learning para rastrear doenças cardiovasculares decorrentes de febre reumática.

 

Medir o que nos rodeia para agir

O ambiente, e sobretudo as alterações climáticas, são também fatores decisivos de propagação das doenças. No INESC TEC já estão a ser trabalhadas soluções capazes de estudar o meio ambiente e perceber a influência que isso terá na saúde humana.

Gaia, deusa da Terra na mitologia grega, ensina-nos a importância da harmonia entre humanos, animais e natureza.

“O INESC TEC criou um wearable – tomado pela nossa spin-off  WeSenss – equipado com sensores de monitorização de dados vitais e ambientais. Num cenário de combate a incêndios, por exemplo, é possível medir os parâmetros fisiológicos dos bombeiros e estudar o impacto que o ambiente (temperatura ou gases tóxicos) tem no seu bem-estar através de uma app de gestão dos profissionais.  Mais recentemente, o mesmo wearable foi usado para monitorizar a equipa que participou na primeira missão analógica em Portugal – CAMões -, no interior da Gruta do Natal, nos Açores”, refere Carlos Ferreira.

Mas os exemplos não terminam aqui. O projeto Health From Portugal é o PRR da saúde que junta maior número de entidades (cerca de 90) com o objetivo de desenvolver novos produtos de saúde, assentes na inovação e tecnologia. Falemos apenas de um dos potenciais resultados: o desenvolvimento de aparelhos capazes de monitorizar o ambiente e perceber o seu impacto na saúde das pessoas. Artur Rocha, coordenador do Centro de Computação Centrada no Humano e Ciência da Informação (Humanise) do INESC TEC, é o investigador principal no projeto e desta área de investigação.

“Fazendo um pouco de futurologia, o que se pretende é avaliar, por um lado, a saúde das pessoas e, por outro, o ambiente em casa e fora dela. Vamos utilizar estudos de corte[3] que nos poderão ajudar a perceber, por exemplo, a influência da poluição ou a qualidade do ar nas infeções respiratórias.  A medição é algo muito importante na saúde e, cada vez mais, olhamos para além dos parâmetros fisiológicos das pessoas”, explica.

 

E terá também o ambiente impacto na saúde mental?

Artur Rocha e Gonçalo Gonçalves trabalham há muitos anos com projetos ligados à saúde mental. Veja-se, por exemplo, a criação da plataforma Moodbuster, um ecossistema de aplicações online e móveis para pacientes e terapeutas que permite avaliar vários tipos de fatores, tais como o humor ou as atividades diárias e construir novas intervenções terapêuticas que possam melhorar o estado de saúde mental das pessoas.

“Esta plataforma inclui um módulo de Ecological Momentary Assessments, cujo objetivo é perceber de que forma é que o ambiente em que estamos nos afeta e faz sentir no momento. É muito diferente reportar o que sentimos quando as coisas acontecem e quando falamos nelas em contexto de consulta médica. A perceção e memória que retemos dos factos é diferente. Na mesma linha, mas agora focando em tratamentos específicos, estamos a construir um catálogo de micro intervenções que funcionem como respostas a situações e condições de vida que causam mau estar, ansiedade, ou muitas vezes patologias mais graves”, explica o investigador.

A saúde, sendo uma área multidisciplinar precisa, portanto, de se sustentar em parcerias e cooperação com outras entidades nacionais e internacionais. Artur Rocha adianta que “a nível de políticas públicas e de linhas de financiamento, há essa preocupação”, incluindo diferentes vetores de investigação, “para além da saúde pura e dura”. “Como cientistas queremos promover uma compreensão abrangente das complexas interações entre diferentes áreas. E, acima de tudo, permitir que as pessoas possam ser atores do seu próprio estado de saúde, percebendo a saúde como um todo”, defende.

Trabalhamos, diariamente, na concretização do conceito One Health, através de ferramentas inovadoras e projetos multidisciplinares, como o desenvolvimento de tecnologias de diagnóstico no local, análises em tempo real e wearables para monitorização ambiental. E há também uma crescente preocupação, nas políticas públicas, para potenciar abordagens holísticas na promoção da saúde global. No fundo, aquilo que desejamos é o mesmo que os vulcanos: Live long and prosper.

Terminamos o artigo, recuando umas décadas, para, ao som de U2 (que não é a nossa banda favorita, mas há-de ser de muitos dos nossos leitores), recordar o que nos dizia a música One: “One love, one blood, one life…We get to carry each other”.

 

 

[1] Doenças que são transmitidas de animais para humanos, ou de humanos para os animais.
[2] Pode-se definir Point of Care Testing (POCT) como qualquer teste de diagnóstico rápido realizado no ponto de atendimento — consultórios médicos, pronto atendimento, home care, farmácias, hospitais, laboratórios
[2] O estudo de corte acompanha um grande grupo de pessoas e avalia, por exemplo, os efeitos sobre dos fatores de risco a questão expostos na saúde.

 

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