Da Bela Adormecida à Era Digital: o despertar da gestão florestal em Portugal

Era uma vez…uma princesa, uma menina, três porquinhos, um lobo mau. São muitos os contos do nosso imaginário infantil que têm como pano de fundo uma floresta, que é muitas vezes encantada, que esconde perigos e que é lar para muitas personagens. Mais do que isso, a floresta é essencial para a preservação da biodiversidade, contribui para o equilíbrio ecológico, é um pulmão verde na linha da frente na luta contra as mudanças climáticas e um ajudante de peso na prevenção de incêndios (sim, quando há uma gestão adequada; mas já lá vamos).

Em Portugal, o universo do setor florestal desempenha um importante papel na economia do país, além da contribuição direta para o Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Em 2021, as indústrias de base florestal e as empresas da silvicultura geraram um volume de negócios superior a 11,69 mil milhões de euros, contribuindo, respetivamente, para 4,98% e 0,47% do PIB nacional. A indústria florestal é um importante empregador, contribuindo para o desenvolvimento económico de muitas comunidades locais e para além da indústria da madeira e da cortiça, há uma série de outras indústrias que dependem da sua matéria-prima. Apesar de tudo, a gestão da floresta, a nível nacional, enfrenta atualmente diversos desafios que têm impactos significativos na sua sustentabilidade e preservação. Um dos problemas mais prementes é a estrutura fragmentada da propriedade florestal no país, caracterizada por uma grande quantidade de pequenos proprietários. Uma fragmentação que traz atrelada uma série de outros problemas como a ineficiência na gestão, a pouca maturidade tecnológica, a proliferação de um sistema analógico que dificulta a comunicação e colaboração entre organizações ou a incapacidade de tirar rendimento de uma matéria-prima volátil.

Quando “A Bela Adormecida” cai num sono profundo, também a floresta entra num estado de torpor, transformando-se num “matagal de espinheiros”. Há muitos hectares da nossa floresta que parecem o cenário deste conto dos irmãos Grimm. Vamos ficar à espera do príncipe encantado ou seremos capazes de mudar o nosso destino?

 

Uma casa de palha, uma de madeira e outra de tijolos

Reinaldo Silva Gomes, investigador do INESC TEC na área da engenharia industrial e de sistemas empresariais, tem trabalhado, através de diferentes projetos, com o setor florestal e reconhece que falta ainda uma estratégia integrada para a gestão do espaço florestal, que possa envolver e beneficiar todos quantos intervêm no setor, resultando numa valorização da floresta, até do ponto de vista económico.

“Temos realidades muito desfasadas. Para os pequenos proprietários é complicado perceber como é possível criar valor com os seus terrenos, para além de não o fazerem da forma mais eficiente. As máquinas utilizadas já são bastante antigas e tem havido dificuldade em digitalizar este setor. Por outro lado, temos grandes players da cadeia de valor da floresta, principalmente da área do papel e da cortiça que já têm um grau de desenvolvimento tecnológico elevado e com os quais conseguimos facilmente começar a testar protótipos e implementar novas tecnologias. Mas a maior parte do tecido empresarial do setor é ainda pouco evoluído e não conseguimos transferir os exemplos das grandes empresas em modelos de negócio”, explica.

Tal como na história d’ “Os três porquinhos”, os proprietários têm visões diferentes de como gerir a área florestal privada, não investindo na sua manutenção. E é por isso que, quando chega o lobo mau (leia-se incêndios florestais), poucas são as “casas” que resistem.

É urgente que os proprietários usem ferramentas digitais para gerir a floresta e, assim, escapar ao ataque do “lobo mau”.

 

Muitos proprietários desistem do setor porque, devido à ineficiência na gestão operacional, não conseguem tirar rentabilidade dos seus terrenos. E é muito difícil otimizar os processos quando algumas operadoras logísticas – que cortam e recolhem madeira ou biomassa – têm uma área muito dispersa. Falamos de centenas de quilómetros de distância que dividem parcelas onde é preciso levar a cabo estas operações. Para além disso, com características muito distintas: umas são de difícil acesso, outras apresentam um terreno pedregoso e/ou declives acentuados.

“Outro desafio neste sector provém da incerteza relativamente à quantidade e qualidade da matéria-prima, já que nunca sabemos como é que vai estar determinada parcela. Existe muita variabilidade, tanto espacial como temporal, o que dificulta a gestão. Ou seja, é necessário fazer um planeamento operacional diário, integrado numa gestão estratégica, porque aquilo que fazemos hoje terá impacto daqui a 15 anos”, justifica Reinaldo Silva Gomes.

 

A transformação digital é o caminho

O grande problema reside na gestão florestal sustentável da cadeia de abastecimento, que não está tecnologicamente adaptada, tem dificuldade em saber o que o mercado precisa, em organizar-se e identificar os recursos de que dispõe. O projeto Replant teve como propósito o desenvolvimento de novas ferramentas – câmaras óticas, aplicações móveis para inventário florestal, sensores digitais e utilização de robótica nas operações florestais de limpeza – que permitissem ajudar a ultrapassar estas necessidades. “Através de uma plataforma digital de monitorização, rastreabilidade, controle e planeamento, recolhemos dados em tempo real dos equipamentos que andam no terreno – a localização, produtividade e se necessitam de alguma manutenção – e do próprio ambiente, o que nos ajuda a identificar algum incidente e a atuar rapidamente. Já as aplicações móveis permitem a recolha de dados quantitativos e qualitativos à distância, apoiando a tomada de decisão”, refere Reinaldo.

Foram também colocadas camaras óticas nos postes da REN – Redes Energéticas Nacionais com o objetivo de monitorizar, proteger e antecipar o impacto dos incêndios rurais na floresta, fornecendo imagens em tempo real, com informações sobre a meteorologia e a vegetação.

“Numa segunda fase, através do projeto AgendaTransform, pretendemos incluir alguma inteligência no próprio planeamento e desenvolver um modelo de otimização, que permita fazer alocação de equipamentos, gestão de stock e do fluxo da matéria-prima até chegar às unidades de transformação”, adianta.

A Agenda Mobilizadora Transform, financiada ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) coloca o foco na gestão integrada, envolvendo um grande número de entidades e instituições, no desenvolvimento de soluções que possam ser aplicadas no terreno, e de iniciativas coerentes e articuladas entre elas. No fundo, o grande objetivo é apoiar produtores, empresários e gestores florestais, em particular, as Organizações de Produtores Florestais, com perfil de micro ou Pequena e Média Empresa (PME), no processo de transformação digital.

José Correia, investigador do INESC TEC, na área das ciências computacionais, explica de que forma é que está a ser trabalhada a adoção de novas tecnologias pelo setor, que facilitem a desmaterialização dos seus processos de negócio e monitorização da performance da atividade.

“O ecossistema das PME no setor florestal em Portugal opera, predominantemente, num ambiente analógico. Isso dificulta a comunicação e colaboração entre organizações, limitando sua atividade operacional, crescimento e rentabilidade. Sendo o setor bastante heterogéneo, a Agenda Transform tem a ambição de pensar numa melhor articulação entre os diferentes players. Por outro lado, atividades como serviços de limpeza florestal e o registo cadastral, entre outras especificas do setor, carecem de ferramentas adequadas de suporte, de modo que os serviços sejam prestados de uma forma mais eficiente, ágil e eficaz”, explica. O projeto está, também, focado na capacidade de criar protótipos ou modelos de negócio realistas.

Voltemos de novo ao imaginário dos irmãos Grimm, com o conto Hansel & Gretel: usar migalhas para assinalar o caminho não resulta, tal como continuar a usar sistemas tecnológicos obsoletos. Aplicar a robótica à floresta pode ser uma excelente solução: um robô poderá ser capaz de limpar parcelas de terreno e transformar resíduos em biomassa ou de vasculhar uma vasta área e identificar perigos. Tudo de forma autónoma. O problema é que os pequenos proprietários não têm capacidade financeira para investir em um tipo de equipamentos. Reservemos esta ideia para um futuro em que novos players tecnológicos queiram fazer parte da equação.

 

Aprisionados numa torre, incapazes de comunicar

No INESC TEC há muito que se tem feito trabalho de investigação na área agroflorestal. José Correia recorda, por exemplo, o projeto SIFOREST, que consistiu num estudo de identificação das capacidades e competências dos agentes setoriais regionais para a implementação de sistemas de informação partilhados no âmbito da gestão organizacional e gestão florestal. “Baseamo-nos no universo da Forestis, uma associação florestal que representa quase 20 mil produtores florestais, e fizemos um levantamento da realidade deste ecossistema. Na altura, ficamos com uma fotografia bastante razoável ao nível da maturidade tecnológica e digital destas várias organizações”.

Outro projeto relevante foi o PLIS1asis(em 2020), no qual foi proposta uma nova arquitetura para o Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais. “Este projeto envolveu um conjunto de entidades públicas e privadas que estão direta e indiretamente ligadas ao setor florestal e a interoperabilidade entre elas. Analisámos os dados que cada entidade processa e o tipo de processamento a que são sujeitos, quais as suas fontes, que aplicações informáticas e mecanismos de avaliação de qualidade de dados utilizam, a que entidades disponibilizam os dados e com que periodicidade, entre outros. A conclusão a que chegámos é que a informação é inexistente ou incompleta e, quando existe, não é disponibilizada em tempo útil e o acesso à mesma é inadequado, há falta de qualidade dos dados e muitas insuficiências ao nível da interoperabilidade informática”, resume José Correia.

 

A Rapunzel usou o cabelo para comunicar com o mundo exterior; a floresta do futuro usa robôs, sensores e câmaras.

Tal como a Rapunzel, aprisionada numa torre sem conseguir comunicar com o mundo, também estas entidades estão isoladas e incapazes de partilhar informação de forma robusta e fiável. A modernização tecnológica é a “escada” que permitirá alcançar a coordenação no setor florestal e operações mais eficientes.

“Aquilo que fazemos, no INESC TEC, é dar uma orientação estratégica, uma consultoria especializada, que inclui apoio técnico na adoção das tecnologias de informação. E propomos roadmaps de evolução para as tecnologias de informação compostos por um conjunto de iniciativas e projetos que deverão realizar”, acrescenta.

Mas será suficiente? Se o Capuchinho Vermelho soubesse o caminho a seguir, teria chegado a tempo de impedir que a avozinha fosse comida pelo lobo? Para José Correia, não basta criar os mapas; é preciso que os saibamos usar.  “Muitas vezes, há alguma resistência à adoção de sistemas de informação, por serem caros. Por isso, temos de olhar para os modelos de negócio. Não podemos oferecer um Ferrari para a mobilidade individual se não houver condições para o manter. É preferível oferecer um Renault. O setor está carente de soluções tecnológicas, mas têm de ser adaptadas à realidade de cada associação, produtor, empresa”, conclui o investigador.

 

As pessoas (ainda) são a personagem principal

Um dos grandes problemas da floresta atual é a falta de limpeza dos terrenos. Para Reinaldo, as atuais políticas públicas não promovem a proteção da floresta, persistindo na prática das coimas. “Como muitos dos pequenos proprietários não conseguem retirar rendimento dos seus terrenos, veem a limpeza como um custo e não como uma oportunidade. Por exemplo, os produtores ao limparem os seus terrenos, obtêm um subproduto muito valorizado em diversas indústrias e com elevada rentabilidade: a biomassa”. O investigador diz mesmo que, em projetos passados, como o BIOTECFOR, se procurou criar a ponte entre proprietários e empresas, maximizando a eficiência de utilização dos recursos florestais e a valorização de subprodutos.

O investigador acredita que a floresta precisa das pessoas mais presentes. “Precisamos de uma floresta mais vivida e temos de perceber como tirar partido destes espaços, seja para parques, para caminhadas ou para atividades radicais. Mais pessoas significam maior monitorização. É importante trazer as empresas para a floresta para perceberem o seu valor. Veja-se o caso particular das florestas de eucalipto (identificado muitas vezes como principal causa de incêndios): com uma melhor gestão e intervenção humana, limpeza, criação de caminhos e planeamento das operações deixariam de representar um fator de risco”.

Por outro lado, há uma necessidade premente de trabalhar na prevenção e na ótica da valorização. “Os produtores estão motivados e querem fazer parte do processo de transformação digital. Mas antes disso, é essencial que percebam que há valor acrescentado na floresta e que, investindo em tecnologia adaptada às suas necessidades, terão um maior retorno financeiro”, remata o investigador.

Na história “João e o pé de feijão”, a personagem principal troca o seu único bem valioso (uma vaca) por um punhado de feijões mágicos. Estarão os produtores preparados para correr este risco? Estarão dispostos a investir em tecnologia em prol de uma gestão mais eficiente e sustentável das florestas?

Uma floresta que investe em tecnologia é uma floresta onde o céu não é o limite.

Num país onde as florestas desempenham um papel crucial, da preservação da biodiversidade à economia, a colaboração e a adoção de novas tecnologias podem abrir portas para uma gestão mais eficaz. Porque as florestas não têm de ser apenas cenários de contos de fadas, mas protagonistas na construção de um futuro mais resiliente e próspero!

 

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