Clara ouviu o futuro nas ondas e veio para o Porto procurá-lo

Clara Gouveia não cresceu a “pensar em eletrões e carros elétricos”, mas a engenharia, na sombra, “já lá estava”. Deixou São Miguel e a imensidão que entrava olhos adentro para estudar no Porto. Num percurso cheio de desafios “agarrados de espírito aberto”, encontrou recentemente mais um: integra o novo Conselho de Administração do INESC TEC.

É o terreno do inesperado. É sobre ele que o diarista Fernando Aires aponta: “De repente, pode erguer-se a natureza em uivos, abrir-se a terra, perturbarem-se as constelações”. Clara percebeu isso cedo, ainda criança. O pai, que durante alguns anos foi responsável pela rede de média tensão das ilhas dos Açores, volta e meia saía em “aventuras” para reparar os uivados mais desorientados que mergulhavam a ilha de São Miguel na penumbra.

Depois, esses relatos ecoavam em casa nos dias de reunião familiar e ressoaram em quem já não se aproximava da Matemática e da Física de pé atrás. “As histórias que o meu pai contava não eram dirigidas propriamente a mim. Eu ouvia-as enquanto ele contava aos meus primos, que tinham já essa inclinação para a engenharia. No meu caso, a engenharia já estava lá, eu é que não sabia”, recorda a engenheira eletrotécnica Clara Gouveia.

Mas a engenharia podia esperar. Havia tempo: “Não cresci a pensar em eletrões e em carros elétricos”. Os dias enchiam-se com futebol nos recreios, o piano e dança no ballet. E nesse aspeto, as contingências da ilha não se imiscuíam: “Crescer em São Miguel foi igual a crescer em qualquer outro sítio”. Mas há algo que fica e deixa saudades quando a ilha fica para trás. Para Clara, a ligação à praia e ao mar – onde a natureza uivava com mais intensidade –, está lá sempre. 20 anos volvidos, a ilha já não é dia-a-dia. Já não se sente “muito pequenina” como quando olhava o horizonte nas Poças.

Partir para ficar

Aconteceu a universidade, o Porto, tempos de mochila às costas, investigação, e o INESC TEC – por esta ordem. “Foi uma mudança muito grande”, resume. O mar já não se deixava ouvir num búzio: a engenharia – que realmente sempre esteve lá – lançou-a para a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP).

“Nunca tinha estado no Porto. Para quem vem dos Açores é uma diferença enorme. Faltava-me o verde e o azul do mar. Foi um choque grande. E é uma coisa que os açorianos sentem sempre quando se afastam da ilha”, explica. Já tinha experienciado isso antes. Pela mão do ballet, vem fazer exames a Lisboa – chega mesmo a viajar com o Estúdio de Dança Ana Cymbron até Macau – e é mesmo num curso de Verão na capital que percebe que o ballet pode ter de ficar pelo caminho.

No Porto, tudo é diferente: com a engenharia, não há arrependimento. Clara Gouveia é mestre e doutorada em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores pela FEUP. Entra num curso com 180 pessoas (apenas 20 delas mulheres). “Não é fácil. Mesmo confiante, sentes isolamento e consciência sobre ti própria”, recorda. Através da música, conhece um ambiente diferente: “Na FEUP envolvi-me na Associação de Estudantes, onde foi representante dos alunos no Conselho Pedagógico, na Praxe e na tuna. As artes estiveram sempre presentes no meu crescimento e a Tuna Feminina da FEUP (TUNAFE) foi uma experiência muito engraçada porque era totalmente composto por mulheres”. Mas “também não era equilibrado”. O contraste com o curso era “bom”, mas também tinha “as suas desvantagens”.

Por este país fora, de subestação em subestação

Ao fim dos cinco anos de curso, aparecem as “grandes decisões”; primeira: voltar aos Açores ou ficar no Porto? A segunda: começar uma carreira na investigação ou tentar o mercado de trabalho? Esta foi mais fácil: “Queria ir ver coisas, queria ir para o terreno”. E foi. Mas antes, havia que decidir entre partir ou ficar.

“Foi uma decisão bem difícil, com tudo o que implicava para os meus pais. O meu irmão, que também estava a estudar no Porto, tinha decidido ficar cá. Eu dizer que não ia regressar era o esvaziar por completo da casa. Tive a oportunidade de ficar a trabalhar lá, mas achei que, se regressasse, ia estagnar, ia ser mais difícil”, recorda.

Conclui a tese e decide ficar no Porto. Quando Clara diz que que queria “ir para o terreno”, é quase para levar à letra: começa uma vida de estrada a trabalhar nas subestações, numa fase de renovação destas estruturas. Foram seis meses de aprendizagem, dias de mochila às costas e noites em hotéis. Regressava à “base” no fim de semana. Percebeu que trabalhar em obra podia não ser o caminho.

Um INESC TEC em transformação e um “grande desafio”

Nesse caminho cruza-se de novo com o ballet. Já no INESC, arranja forma de regressar às aulas, porque, como refere, a paixão pela dança – tal como muitas outras coisas que trouxe dos Açores – “esteve lá sempre”. Usa o mesmo termo quando fala da carreira de investigação, que agarrou quando recebeu um convite do Prof. Hélder Leite para integrar um projeto de investigação na FEUP. “Decidi que valia a pena arriscar nessa fase e regressar à faculdade”.

A entrada no INESC TEC acontece já com o doutoramento em andamento. Encontra, em 2011, quando integra o Centro de Sistemas de Energia (CPES) – um dos 13 centros de investigação do INESC TEC –, o Instituto “a crescer”: “O centro já tinha dimensão, contava com cerca de 80 pessoas, tinha projetos grandes, tinha uma grande atividade na área dos veículos elétricos. O INESC TEC hoje é muito diferente, cresceu muito, está a transformar-se também pela forma como olha para as pessoas e para a sua estrutura”.

Ao longo destes 13 anos, Clara Gouveia fez investigação em soluções de gestão de energia e digitalização da rede de distribuição, geriu projetos de investigação, desempenhou funções de consultadoria junto de empresas nacionais e internacionais, e foi responsável pela área EMS/DMS e automação de redes do CPES. Em 2021 abraçou ainda outro desafio e integra o Conselho de Administração do Grupo MARTIFER, onde, para além da experiência de gestão e administração de uma grande empresa, ganha uma nova visão vertical sobre as organizações.

Desde há uns meses tem um novo desafio em mãos: integra o novo Conselho de Administração do INESC TEC. Fala numa “responsabilidade e desafios enormes” – e “não teria graça de outra forma”: “Não tendo uma função executiva, tenho um desafio grande em algumas áreas, como na colaboração com as empresas e acompanhamento dos projetos transversais, por exemplo. Conto trazer a experiência que desenvolvi na área da inovação, contribuir e acompanhar mais de perto as grandes iniciativas como os PRR’s e projetos transversais que temos, mas também aprender muito, não só com o dia a dia da administração, mas também com a atividade do INESC TEC”.

Clara é parte do novo Conselho de Administração do INESC TEC. Na foto, da esquerda para a direita: Luís Seca, Clara Gouveia, Lia Patrício e Graça Barbosa.

“Agarrar e levar”

No caminho até aqui, lembra, que não é “pessoa de ídolos”, os contributos importantes de membros da comunidade INESC TEC que permitiram que desse passos firmes: o pensamento fora da caixa de Manuel Matos, a destreza para coordenar equipas de Luís Seca, a capacidade de entusiasmar de José Manuel Mendonça ou as ideias acutilantes de João Peças Lopes sobre o que pode ser o sistema elétrico do futuro.

O percurso no INESC TEC e tudo o que veio antes é fruto de oportunidades que agarrou, “mesmo com medo do desconhecido, mas sempre de espírito aberto e com muito empenho”. Como agarrou e continua a trazer consigo memórias da Lagoa do Fogo, o pôr do sol visto com os pés bem enterrados nas areias escuras da Praia de Santa Bárbara e o cheiro a mar de que sente falta no Porto.

 

O verde e azul dos Açores com que Clara cresceu. Fotografia: João Reguengos/Unsplash
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