Do mar de sofrimento ao mar de oportunidades

Durante largos períodos da história recente, o mar foi visto pelos portugueses sobretudo como espaço de risco e sacrifício. A imagem dominante era a da dureza da sobrevivência, marcada por famílias que viviam em condições modestas, dependentes de atividades de grande esforço físico e baixo retorno económico. Este imaginário de adversidade deixou marcas profundas na cultura portuguesa, traduzindo-se em expressões artísticas, literárias e musicais que ecoam até aos dias de hoje. Nas últimas décadas, contudo, esta perceção foi sofrendo profundas mudanças. Mantendo-se a ideia de ambiente hostil e imprevisível, o mar passou a ser cada vez mais encarado não apenas como desafio, mas também como fonte de prosperidade, inovação e bem-estar. Às tradições ligadas à pesca, agora mais valorizadas, juntaram-se novas atividades marítimo-turísticas, a exploração sustentável de recursos vivos e não vivos e a emergência de setores com elevado valor acrescentado, ligados ao conhecimento científico e tecnológico. A visão do mar como espaço de sofrimento deu assim lugar à visão do mar como espaço de oportunidade, de desenvolvimento económico, de inovação e de sustentabilidade ambiental.

Portugal detém já uma das maiores zonas económicas exclusivas da União Europeia, com mais de 1,7 milhões de km², e aguarda a decisão das Nações Unidas relativamente ao pedido de extensão da sua plataforma continental. Caso este seja aprovado, a área marítima sob jurisdição nacional ultrapassará os 4 milhões de km². Trata-se de um território quarenta vezes maior do que a área terrestre do país, uma verdadeira vastidão oceânica ainda largamente por explorar. Há habitats desconhecidos, imensas espécies marinhas por identificar e potenciais recursos de enorme relevância económica, científica e ambiental. A exploração sustentável destes recursos pode ser determinante para enfrentar desafios globais, desde a provisão de alimentos até à descoberta de novos compostos de interesse farmacêutico ou industrial. Para além disso, o papel do mar como regulador climático e pulmão do planeta é hoje unanimemente reconhecido: do sequestro de carbono à produção de oxigénio, passando pelo suporte à geração de energias renováveis offshore, os oceanos estão no centro das soluções para mitigar os efeitos das alterações climáticas e promover o desenvolvimento sustentável.

O contributo técnico-científico do INESC TEC

O conhecimento profundo destes ecossistemas só é possível graças a avanços científicos e tecnológicos que têm vindo a superar limitações e desafios. Os sensores eletromagnéticos, tão eficazes na monitorização remota em grande escala em aplicações terrestres, são praticamente irrelevantes no meio aquático. Esta escassez de soluções de mapeamento em grande escala tem despertado o engenho humano, destacando-se o papel pioneiro da tomografia acústica, que permite inferir parâmetros ambientais a grandes distâncias; das imagens de câmaras hiper espectrais a partir de satélite e avião, capazes de detetar concentrações de elementos na superfície da água e, a partir daí, inferir propriedades do volume oceânico; e, mais recentemente, da utilização inovadora de cabos submarinos como sensores distribuídos ao longo de milhares de quilómetros. Estas tecnologias têm aberto caminho a um conhecimento cada vez mais detalhado e sistemático dos oceanos.

O INESC TEC tem estado na linha da frente destes avanços científicos e tecnológicos com uma significativa quantidade e diversidade de projetos de I&D associados ao mar. A criação da infraestrutura TEC4SEA representou um passo decisivo, ao disponibilizar meios experimentais únicos para desenvolver, testar e validar tecnologias marinhas, quer em águas costeiras, quer em mar profundo. O navio de investigação “Mar Profundo”, primeiro totalmente dedicado à investigação tecnológica em Portugal, demonstrou o valor deste investimento estratégico, tendo afastado receios de que pudesse ser um recurso subutilizado. Pelo contrário, o navio tem sido amplamente requisitado para missões científicas e tecnológicas, consolidando-se como um instrumento essencial para a investigação nacional.

Nos últimos anos, o financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência permitiu apoiar empresas da economia azul no desenvolvimento de novos produtos e serviços, muitos deles em estreita colaboração com o INESC TEC. Esta dinâmica revelou-se essencial para criar confiança mútua entre o sistema científico e as empresas, provando que o conhecimento gerado nos laboratórios pode ser transformado em inovação com impacto direto na economia. A aprovação do projeto Teaming INESCTEC.OCEAN veio reforçar esta trajetória, alinhando a estratégia da instituição com as prioridades europeias até 2030. Foi um reconhecimento do trabalho desenvolvido, mas também uma responsabilidade acrescida: espera-se do INESC TEC um papel relevante no contexto europeu e internacional da investigação em engenharia oceânica.

Uma rede global de colaborações

O mar português não se compreende isolado do mar global. O INESC TEC tem reforçado parcerias internacionais, sobretudo na Europa, mas também com instituições de todo o mundo onde há complementaridades de conhecimento. Memorandos de Entendimento e projetos conjuntos têm multiplicado os cenários de aplicação e alargado as fontes de financiamento, permitindo explorar novos domínios científicos e tecnológicos. Estas colaborações envolvem quase todos os centros do Instituto: da robótica à energia, das comunicações aos sensores, ampliando a capacidade científica e tecnológica. O resultado é uma comunidade mais robusta, com maior diversidade de recursos humanos altamente qualificados e preparada para enfrentar novos desafios. Ao mesmo tempo, estas ligações internacionais são também uma via de atração de talentos: estudantes de doutoramento e investigadores estrangeiros encontram no INESC TEC condições para desenvolver trabalho inovador, contribuindo para mitigar os efeitos da redução demográfica e da escassez de jovens talentos nacionais.

Se outrora o mar foi dominado por bravos marinheiros de carne e osso, cada vez mais no futuro será explorado por robots. Mas atrás deles continuarão a estar cientistas e engenheiros, desenvolvendo tecnologias para conhecer, proteger e aproveitar os oceanos de forma sustentável. A inteligência artificial, em particular, abre perspetivas revolucionárias: otimização da navegação dos robots, aumento da autonomia na tomada de decisões sem intervenção humana, análise em tempo real de grandes volumes de dados e até realização de tarefas complexas, nomeadamente em zonas remotas. Esta visão tecnológica tem atraído a atenção de jovens talentos, cada vez mais sensibilizados para os desafios ambientais e empenhados num futuro de prosperidade e sustentabilidade. Cabe às instituições científicas, como o INESC TEC, proporcionar as condições necessárias para que esse talento floresça e se traduza em impacto positivo.

Perspetivas para os próximos 5 a 10 anos

Olhando para a próxima década, várias áreas emergem como prioritárias. A defesa e a segurança marítima exigirão maior vigilância e proteção de fronteiras, portos, cabos submarinos e outras infraestruturas marítimas. A economia azul continuará a expandir-se, com destaque para as energias renováveis offshore e a monitorização ambiental permanente. A inteligência artificial aplicada aos desafios do mar permitirá novas formas de exploração e gestão sustentável, transformando a forma como conhecemos e utilizamos os oceanos. A biotecnologia marinha, por sua vez, promete abrir novos horizontes com o desenvolvimento de fármacos, cosméticos e materiais inovadores, nomeadamente a partir de organismos adaptados a condições extremas.

Mas não podemos ignorar as preocupações. O crescimento sustentado exige investimento continuado em I&D, incluindo a qualificação de recursos humanos e o reforço de infraestruturas, a valorização da propriedade intelectual e a dinamização de start-ups capazes de transformar conhecimento em valor económico. A redução demográfica limita a disponibilidade de jovens talentos, enquanto a prosperidade de outros setores cria forte concorrência por engenheiros e cientistas qualificados. O risco de perda de recursos humanos é real, e só uma estratégia coordenada permitirá manter Portugal na linha da frente. As colaborações internacionais podem desempenhar um papel decisivo, não apenas pela complementaridade de competências, mas também pela capacidade de atrair estudantes de doutoramento e investigadores estrangeiros que reforcem o sistema científico nacional, enquanto fortalecem os próprios laços de colaboração.

O mar continua a ser simultaneamente um desafio e uma promessa. Para Portugal, representa não apenas uma herança cultural, mas também uma oportunidade única de futuro. O INESC TEC tem vindo a reforçar o seu papel neste caminho, contribuindo com ciência, tecnologia e inovação. Nos próximos anos, caberá a todos nós — instituições, empresas, investigadores e cidadãos — transformar esta oportunidade em prosperidade sustentável, fazendo do oceano não apenas um legado, mas também uma alavanca para o futuro.

Por Nuno Cruz, investigador do INESC, onde coordena a área de robótica e sistemas autónomos. Tem também afiliação à Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP).

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