O apagão que deixou milhões de pessoas incontactáveis na Península Ibérica

Sobre o que aconteceu no dia 28 de abril de 2025 na Península Ibérica do ponto de vista do sistema elétrico já escrevemos na última edição do INESC TECWatch. Mas não foi só o sistema elétrico que apagou nesse dia. Outra das infraestruturas críticas que ficou comprometida em Portugal continental foi a associada aos sistemas de comunicações nacionais, que foram afetados e reagiram de forma diferenciada. Nesta edição consultámos vários especialistas do INESC TEC que investigam nas áreas das telecomunicações para tentarmos perceber o que se passou, quais as características destes sistemas – e de que modo é que isso ajuda a explicar a forma como se comportaram – e que lições devem ser retiradas para o futuro.

Facto é que a energia elétrica falhou em Portugal continental durante quase 10 horas. À medida que alguns tentavam ainda perceber se a falha de eletricidade era relativa apenas ao seu apartamento, casa e, depois, à área geográfica em que se inseriam no momento do apagão, e que tentavam avisar o atraso em, por exemplo, possíveis compromissos online – pelo menos aquela que ainda conseguiam comunicar –, muitas pessoas foram-se apercebendo que a falha na rede elétrica era generalizada. Aqueles que conseguiram estabelecer comunicações começaram então rapidamente a perceber que a situação abrangia, pelo menos, toda a Península Ibérica. Houve, no entanto, quem demorasse algum tempo a compreender o que se passava, porque ficou sem telecomunicações durante várias horas.

Os três sistemas de comunicações mais falados

Foram várias as notícias publicadas sobre o que se passou e até a presidente da ANACOM, Sandra Maximiano, admitiu que os tempos de autonomia dos sistemas de backup das empresas do setor das comunicações não estavam preparados para o apagão que houve em Portugal.

Mas quais são afinal os três sistemas de comunicações de que mais se tem falado na comunicação social? 1) as comunicações 4G/5G exploradas pelos operadores de comunicações móveis, 2) o sistema TETRA explorado pelo SIRESP e 3) o sistema de comunicações FM usado por todas as rádios que emitem em Portugal.

De acordo com Manuel Ricardo, diretor do INESC TEC e docente na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), os três tipos de sistemas de comunicações têm características comuns, na medida em que o terminal – ou seja, o telemóvel ou outro aparelho – comunica através de uma ligação rádio com uma estação base que está no terreno. Esta estação base – cuja componente mais visível é a torre de comunicações, muitas vezes referida simplesmente como “antena” – emite numa frequência e com uma potência que definem o tamanho de cada célula. Para cobrir todo o país, é preciso juntar muitas destas células. As estações base de um sistema – ou seja, todas essas “antenas” – estão ligadas a uma rede de comunicações central (uma espécie de “centro de controlo”) equivalente a um centro de dados (data center), composto por servidores e redes de computadores que gerem toda a rede e comunicações.

“A rede central de cada um destes sistemas está por definição localizada em um ou dois locais projetados para resistir a eventos raros e severos, contendo redundâncias relevantes e sendo servidos por geradores de energia diesel”, explica Manuel Ricardo, que acrescenta que estes “têm os problemas típicos dos data centers bem projetados”. No caso do dia 28 de abril de 2025 não foram reportados problemas de maior. No sistema 4G/5G há, no entanto, relatos de utilizadores que ficaram sem roaming no estrangeiro e de utilizadores que tiverem de reiniciar telemóveis para os voltar a ligar ao sistema 4G/5G, o que pressupõe que houve, provavelmente, problemas de re-arranque ou migração de serviços e de bases de dados, com reposição de backups.

No entanto, apesar de terem características comuns, os terminais destes três sistemas têm características que os distinguem. Atentemos a cada um deles.

No caso dos telemóveis com 5G o que acontece é que o terminal 5G “recebe e transmite informação a débitos elevados, tem capacidade de processamento elevada e tem ecrã policromático”, como explica Manuel Ricardo. Por outras palavras, podemos dizer que se trata de um terminal que envia e recebe grandes quantidades de dados – podem ser vídeos, chamadas, e-mails, etc. –, tem um processador potente e ecrã a cores. Um consumo médio, em regime de utilização de dados moderado, deste terminal traduz-se em cerca de 1 W, o que significa que lhe permite ter uma autonomia de cerca de 20h, incluindo sete horas de ecrã ligado.

Já no caso do sistema TETRA explorado pelo SIRESP, um terminal portátil (walkie-talkie) está tipicamente envolvido em comunicações de grupo (como, por exemplo, comunicações entre polícias, bombeiros, entre outros), passando a maior parte do tempo a receber pequenas mensagens de voz e transmitindo esporadicamente usando a técnica push-to-talk. Isto traduz-se num consumo médio em cerca de 2 W o que, “considerando as baterias que o alimentam, lhe dá uma autonomia de mais de 12 horas, sendo que os terminais colocados em veículos têm autonomias maiores”, como explica o investigador.

No que diz respeito ao pequeno recetor FM, alimentado a pilhas (o “transístor”), só recebe informação; não envia. O que acontece neste caso é que o sinal recebido é desmodulado e enviado para um pequeno altifalante. “Tem um consumo de 100-300 mW e, funcionando com duas pilhas, possui uma autonomia de até 50 horas em funcionamento contínuo”, como explica Manuel Ricardo.

Portanto, os terminais destes 3 sistemas podem ter autonomias que, em funcionamento contínuo, vão de 7 a 50 horas.

Voltando às características de cada um destes sistemas. Primeiro, “no caso das comunicações FM, a estação base do sistema de comunicações opera entre os 87,5 e os 108 MHz e transmite com potências entre 10 e 50 kW nos transmissores principais, o que lhe permite criar células de raios da ordem das dezenas de quilómetros”, esclarece o investigador. Mas, vejamos o caso de uma das estações públicas de rádio portuguesas. A Antena 1, por exemplo, tem cerca de 40 (re)transmissores espalhados pelo país. O sistema FM é um sistema maduro e os seus transmissores principais estão equipados com geradores que entram em funcionamento se e quando necessário, ou seja, mesmo em alturas em que há falhas de energia, como a que existiu a 28 de abril.

Já a estação base TETRA/SIRESP opera na banda dos 400 MHz e com potências de transmissão de cerca de 25 W. “O SIRESP cobre o país com 550 estações base, distribuídas ao longo de Portugal Continental, Açores e Madeira”, como explica Rui Campos, investigador sénior do INESC TEC e também ele docente na FEUP. Estas estações estão tipicamente protegidas por Sistemas de Alimentação Ininterrupta (na designação anglo-saxónica Uninterruptible Power Supply – UPS), que vulgarmente se designam por baterias. No entanto, existem cerca de duas dezenas de geradores diesel móveis que se encontram posicionados em zonas estratégicas do país, podendo ser mobilizados para onde for necessário.

Uma estação base 4G/5G opera na banda dos 3,5 GHz e com potências de transmissão até 40 W, sendo que esta potência depende do tamanho desejado para a célula que define, porque há requisitos exigentes de cobertura do território nacional a 100 Mbit/s, como explicam os especialistas do INESC TEC.  Um operador de telecomunicações 4G/5G pode precisar de até 5 mil estações base para cobrir o território nacional. Rui Campos explica que, “de acordo com o relatório da ANACOM referente ao quarto trimestre de 2024, existem em Portugal 13 089 estações base 5G, no conjunto dos quatro operadores que têm licença do regulador para operar (DIGI, MEO, NOS e Vodafone)”. Estas estações estão protegidas por baterias com uma autonomia entre 2h e 8h, podendo haver grupos geradores diesel em células consideradas críticas e também geradores de energia móveis.

O comportamento dos sistemas de comunicações durante o apagão

A partir da análise das características de cada sistema, do que os distingue e também do que os separa, os investigadores referem que é possível compreender que a resiliência dos sistemas – no caso específico de 28 de abril – está diretamente relacionada com a duração do apagão, com o número de células de cada sistema de comunicações e com a capacidade de mobilização de grupos geradores após o esgotamento das baterias associadas às estações base.

“O sistema FM, com poucas células e geradores de energia nas células principais não teve falhas aparentes”, explica Manuel Ricardo.

Já o sistema SIRESP, com a sua capacidade instalada de geradores móveis distribuída pelo país, terá tido dificuldade em acorrer a todas as falhas nas estações base cujas baterias de backup se foram esgotando.

E quanto aos operadores de telecomunicações 4G/5G? Impossibilitados de acorrer a todos os sites, estes operadores reverteram o sistema para a utilização de tecnologias 2G e 4G, consumidoras de menos energia e definidoras de células maiores, permitindo diminuir o número de células a socorrer. “Esta estratégia permitiu assegurar a cobertura do território nacional, sobretudo para os serviços de voz e SMS, embora com uma redução na capacidade de transporte de tráfego (voz e dados). Do ponto de vista dos utilizadores, isso traduziu-se na dificuldade ou impossibilidade de estabelecer chamadas ou enviar mensagens, mesmo quando os terminais detetavam sinal 2G/4G”, como esclarece Rui Campos.

Filipe Ribeiro, investigador do INESC TEC onde coordena a área das telecomunicações e multimédia, explica ainda que é necessário referir que a crescente substituição das ligações de cobre por redes de fibra ótica nas residências tem implicações relevantes do ponto de vista da resiliência energética. “Ao contrário da infraestrutura de cobre, que em muitos casos transportava energia suficiente para manter o terminal (ex.: telefone fixo) funcional durante uma falha elétrica local, os sistemas baseados em fibra ótica requerem que todos os equipamentos terminais (ONTs, routers, etc.) estejam alimentados localmente por energia elétrica”, como explica. Deste modo, uma falha de fornecimento de energia inviabiliza qualquer tipo de comunicação por esta via, mesmo que a infraestrutura do operador de telecomunicações esteja operacional. “A par desta evolução tecnológica, a eliminação quase total das cabines telefónicas públicas aumentou de forma significativa a dependência da rede doméstica e móvel, redes essas que, como vimos, dependem de energia elétrica em todos os seus componentes”, acrescenta ainda. De acordo com o investigador, estas mudanças estruturais reforçam a necessidade de repensar a resiliência das redes de comunicações, não apenas ao nível da infraestrutura central, mas também na sua capacidade de se manterem operacionais junto do utilizador final.

Como garantir então um sistema de comunicações nacional que possa servir o governo, os serviços de emergência/proteção civil e a população em situações excecionais?

O sistema FM, de difusão e unidirecional, é uma mais-valia, recomenda-se, e deverá ser usado para disseminação de informações relevantes, explicam os investigadores.

“Em situações de emergência como a vivida no passado dia 28 de abril, os próprios smartphones podem desempenhar um papel crucial como recetores de rádio FM. Embora muitos modelos recentes tenham descontinuado o suporte a esta tecnologia, o evento evidenciou a sua relevância enquanto meio de difusão de informação em tempo real. Do ponto de vista legislativo à escala europeia, poderá, por isso, justificar-se a consideração de medidas que imponham a obrigatoriedade de suporte à receção FM em todos os smartphones comercializados. Tal medida garantiria que, em contextos de crise, a população continuasse a dispor de um canal expedito, fiável e amplamente acessível para a receção de comunicações de emergência, utilizando um dispositivo que está ao alcance da grande maioria dos cidadãos”, explica Rui Campos.

Mas qual a razão para o desaparecimento do suporte à tecnologia FM nos telemóveis? De acordo com Luís Pessoa, também ele investigador sénior do INESC TEC e docente na FEUP, existem um conjunto de razões técnicas e comerciais. “Uma delas prende-se com a necessidade de uma antena dedicada para a receção do sinal FM”, explica. “Uma solução utilizada habitualmente pelos fabricantes tira partido dos fios dos fones (ligados via ficha de 3.5 mm) para realizar a função da antena. No entanto, a tradicional entrada de 3.5 mm tem vindo também a ser eliminada dos modelos mais recentes, de modo a libertar espaço interno para outras funcionalidades — como baterias de maior capacidade ou melhorias na resistência à água. Apesar de ser tecnicamente possível integrar uma antena FM diretamente no interior do equipamento, essa abordagem implicaria um aumento da complexidade de design e exigiria espaço adicional, o que tem impacto nos designs ultracompactos dos smartphones modernos”, continua.

A decisão de abandonar o FM nos telemóveis tem ainda uma dimensão estratégica e comercial. “Para os fornecedores de conteúdos, é mais rentável que o acesso à rádio seja feito por streaming, o que também promove o consumo de dados móveis. Existem, contudo, exceções: no México, por exemplo, a legislação obriga todos os telemóveis comercializados a suportarem receção FM, desde que o chip o permita. Já em países como os Estados Unidos ou o Brasil, há apenas recomendações ou incentivos das entidades competentes. Estudar a experiência destes países poderá revelar impactos positivos ou negativos associados a tais medidas”, explica Luís Pessoa.

Os operadores 4G/5G deverão, de acordo com Manuel Ricardo, em articulação com a ANACOM, definir uma rede nacional de grandes (macro) células de comunicações, de baixo débito, que cubra o território nacional de forma cooperativa e redundante, sobrepondo-se a pequenas células que não poderão deixar de existir. “Esta rede de macro-células deverá estar particularmente bem protegida podendo, sob este ponto de vista, o sistema FM ser usado como uma referência”, esclarece o investigador. Para que isso aconteça pode ser necessário recorrer ao roaming nacional, através de um acordo entre operadores de comunicações nacionais, à semelhança do que, aliás, já sucede hoje com as chamadas de emergência, em que mesmo sem saldo e sem ligação a uma estação base do operador de que é cliente, qualquer utilizador pode fazer chamadas de emergência.

Já “o SIRESP deverá avançar para uma rede central baseada na arquitetura de serviços 5G e integrar as soluções Mission-Critical definidas pelas normas 3GPP 4G/5G, com dois objetivos principais: usar também as células e redes de acesso rádio dos operadores de telecomunicações 4G/5G, incluindo a rede nacional de macro-células proposta, e passar a usar serviços multimédia”, explica Manuel Ricardo. Para o leitor menos familiarizado com o jargão das telecomunicações, o investigador esclarece que isto é o equivalente às comunicações de grupo do WhatsApp, incluindo voz e vídeo, numa versão profissional (usável por exemplo por utilizadores com mãos ocupadas), fiável, segura e gerida pelas entidades competentes. “Esta solução baseada na tecnologia 4G/5G é já usada, por exemplo, na FirstNet, a rede de comunicações de emergência estabelecida pelo Congresso dos EUA em 2012, na sequência das falhas de comunicação identificadas durante os ataques de 11 de setembro de 2001. A FirstNet está assente numa infraestrutura dedicada do ponto de vista do núcleo de rede (que está separado das redes comerciais), assegurando que o tráfego de emergência e segurança pública seja tratado de forma distinta e segura, mas tira partido das estações base comerciais (cuja capacidade foi reforçada com mil novos sites para reforçar a cobertura em áreas rurais e remotas”, explica Rui Campos.

Filipe Ribeiro acrescenta ainda que, para além das soluções tecnológicas avançadas já referidas, importa também considerar abordagens mais clássicas de comunicação de emergência que têm mostrado eficácia comprovada em vários países europeus. “A difusão sonora através de altifalantes instalados em áreas urbanas e rurais, por exemplo, continua a ser usada na Alemanha, nos Países Baixos e no Reino Unido como forma de alertar rapidamente a população em caso de catástrofe”, explica.  Adicionalmente, tendo em conta que os sistemas de comunicações baseados em fibra ótica requerem alimentação elétrica local para funcionamento, é crucial pensar em soluções que mitiguem essa vulnerabilidade. “Uma possibilidade concreta seria a inclusão de pequenas UPS nos pacotes de serviços fornecidos pelos operadores. Estas UPS permitiriam que os equipamentos essenciais nas residências, como as ONTs e os routers Wi-Fi e respetivos terminais (ex.: smartphones), se mantivessem operacionais durante algumas horas em caso de falha de energia”, acrescenta Filipe Ribeiro. Isto garantiria, por exemplo, o acesso contínuo à Internet por aplicações de rádio ou a redes locais de comunicação em situações críticas, assim como a possibilidade de fazer chamadas com recurso ao telefone fixo usando a tecnologia Voice over IP (VoIP) do próprio operador de telecomunicações.

Outra possibilidade que qualquer consumidor doméstico poderá considerar é ele próprio adquirir uma UPS para alimentar os seus equipamentos essenciais. “No entanto, é crucial que os operadores de telecomunicações também assegurem a continuidade operacional da sua infraestrutura de rede, garantindo sistemas de backup adequados nos nós de acesso, agregação e núcleo”, conforme explica Luis Pessoa. Pelas informações disponíveis, clientes da Vodafone e Digi enfrentaram falhas generalizadas de serviço o que sugere que múltiplos componentes da sua infraestrutura foram afetados. A combinação de esforços entre consumidores e operadores pode contribuir para uma maior robustez das comunicações em casos de emergência.

Assim, ao conciliar a gestão de energia das células móveis com a da rede fixa, poderá ser possível estender a autonomia das comunicações ao nível nacional, assegurando maior resiliência face à falha generalizada no fornecimento de energia elétrica. Acresce ainda referir que em caso de emergência nacional, seria importante existir o encaminhamento automático para uma página web (landing page) com informações oficiais atualizadas assim como a possibilidade de difusão de rádio e TV nacional. “Uma solução deste tipo, simples e escalável, pode ser determinante para assegurar que a população se mantém corretamente informada e com alguma capacidade de comunicação durante emergências prolongadas, com a vantagem de não sobrecarregar a rede móvel 4G/5G”, remata o investigador Filipe Ribeiro.

Aqui chegados percebemos que apesar das falhas registadas nos sistemas de comunicações durante o apagão de dia 28 de abril, há lições a retirar e medidas que podem ser implementadas para que estes acontecimentos não voltem a acontecer. Os modelos propostos pelos investigadores do INESC TEC “podem e devem servir de base para a evolução da rede de comunicações de emergência em Portugal”.

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