A décima edição do Fórum do Outono do INESC TEC partiu de uma premissa – como é ser humano na era da Inteligência Artificial (IA)? Uma reflexão que tinha de ser alargada a várias áreas da sociedade e que, por isso, colocou em cima da mesa questões tecnológicas, mas também éticas, filosóficas, psicológicas e, naturalmente, políticas. Foi no dia 17 de novembro que a Sala Suggia da Casa da Música se encheu – com mais de cinco centenas de pessoas vindas do mundo empresarial, académico e de diferentes áreas do conhecimento, das tecnológicas às ciências sociais – para perceber que futuro nos espera na era da IA.
Num evento que contou com duas keynote speakers internacionais e uma mesa-redonda repleta de especialistas na área, a abertura esteve a cargo de João Claro, presidente do INESC TEC, que destacou, desde logo, o significado especial desta edição ao encerrar as comemorações públicas dos 40 anos do Instituto e ao celebrar os 10 anos do Fórum do Outono, uma iniciativa que, desde 2015, tem promovido o debate alargado de temas com impacto científico, económico e societal, entre milhares de pessoas.
“As tecnologias digitais, de um modo geral, e a IA, em particular, são, desde há muito tempo, centrais no nosso trabalho no INESC TEC e têm sido de extrema importância no desenvolvimento da nossa ciência, na colaboração com a indústria, na nossa contribuição em programas públicos e na formação de novas gerações”, sublinhou João Claro, na sua intervenção inicial.
A escolha do tema do fórum deste ano é, por isso, e como realçou o presidente do INESC TEC, uma continuação do longo envolvimento desta jornada coletivamente com os vários agentes da sociedade, numa era de grandes transformações tecnológicas.
“A IA traz diferentes questões nas conversas que temos uns com os outros. Científicas, técnicas, sociais, éticas, culturais e requer oportunidades para diálogos mais abrangentes, onde todas estas perspetivas têm algo de valor para contribuir e que se estão a tornar muito relevantes no debate público”, continua. Por isso, o tema escolhido representa uma clara intenção de enriquecer esse diálogo abrangente, “reunindo pessoas que podem ajudar-nos a melhorar a nossa compreensão e olhar para o futuro com iniciativa, curiosidade e responsabilidade”, explica o presidente do INESC TEC.

As keynote speakers internacionais
Marzieh Fadaee, diretora da Cohere Labs, e Gitta Kutniok, investigadora da Ludwig Maximilian University of Munich foram as keynote speakers da décima edição do Fórum do Outono do INESC TEC.
A primeira a intervir foi Marzieh Fadaee com uma talk intitulada “Building human-centric models from global voices”, trazendo aquela que foi a visão mais global e humanista de todo o evento. Sublinhou que o futuro da IA depende da capacidade de incluir as pessoas de todo o mundo – em termos linguísticos, culturais e sociais – no desenvolvimento de novos modelos. O trabalho que desenvolve na Cohere Labs é focado, por isso, na criação de LLMs multilingues com forte participação comunitária global, algo que ecoa diretamente com um dos pilares históricos do INESC TEC: tecnologia criada com impacto social, não apenas tecnológico.

Nos 40 anos de celebração do INESC TEC, Marzieh Fadaee, deixa uma mensagem poderosa “não há inovação verdadeiramente transformadora sem diversidade de vozes e sem ciência aberta”, outro dos vetores estratégicos para o Instituto.
Alguns dos pontos abordados nesta primeira intervenção assentam em ideias-chave, tais como o facto de a inteligência artificial multilingue não ser um luxo ou da importância da participação humana nos processos.
De acordo com a oradora, os modelos treinados apenas em inglês geram desigualdades e riscos a vários níveis, nomeadamente no que diz respeito, por exemplo, a questões relacionadas com desinformação. “Se treinarmos modelos apenas em quatro línguas, deixamos 96% da população global sem proteção”, enfatizou Marzieh Fadaee.
Outro dos tópicos em destaque nesta intervenção foi o facto de, para a investigadora, a participação humana nos processos de IA multilingue ser determinante. Foi, por isso, que, como explicou Marzieh Fadaee, a Cohere Labs criou uma comunidade de mais de 4 mil investigadores de 150 países que contribuíram para o desenvolvimento de conjuntos de dados, denominados AYA, e que hoje são uma referência mundial.
Mais do que traduzir é preciso existirem dados localmente relevantes, porque traduções automáticas não captam, entre outras, expressões culturais, formas de discriminação específicas ou contextos sociais. A propósito desse ponto, Marzieh Fadaee destacou que “há dados que são globais e dados que são culturalmente situados e que os modelos devem ver ambos”. De acordo com a oradora, a diversidade linguística melhora o modelo como um todo e, por isso, modelos treinados em línguas de baixa disponibilidade tornam-se mais robustos em inglês. Ou seja, a diversidade melhora a transferência de conhecimento, a segurança e o alinhamento.
Por último, Marzieh Fadaee, recomendou que a avaliação seja global e não apenas americana. De acordo com a oradora, hoje em dia, os benchmarks existentes refletem, sobretudo, epistemologias oriundas dos EUA. Foi, nesse sentido, que o seu grupo criou o primeiro benchmark global de conhecimento escolar em 44 línguas.
Seguiu-se a intervenção de Gitta Kutyniok, cujo título era “The Next Generation of AI: Sustainable, Reliable, and Trustworthy”. À intervenção mais humanista da Marzieh Fadaee, Gitta Kutyniok trouxe o fundamento ao levar uma visão profundamente técnica e estrutural. A investigadora explicitou onde estamos, onde falhamos e o que é preciso reconstruir para garantir uma IA confiável, sustentável e alinhada com os valores europeus.

Na sua intervenção, a oradora destacou o facto de a quarta revolução industrial estar em aceleração e de a IA estar a reconfigurar setores inteiros, desde a administração pública, à justiça, à educação ou às telecomunicações, algo de especial relevância, naturalmente, para instituições como o INESC TEC que trabalham estas áreas.
Gitta Kutyniok observou também que a IA ainda é frágil e tem de ser mais confiável, uma vez que ainda tem problemas estruturais a nível de segurança, privacidade ou viés e a falta de explicabilidade mina a confiança tanto pública como institucional.
Outro dos pontos analisados durante a sua intervenção esteve relacionado com a crise energética atual associada à IA e, para isso, a investigadora explicou que é necessário treinar e usar modelos que consumam níveis sustentáveis de energia, pelo que há uma necessidade urgente de explorar novos paradigmas, desde a computação analógica, à computação neuromórfica e até mesmo a uma coevolução hardware-software.
Ainda durante a sua intervenção, Gitta Kutyniok enfatizou que a matemática deve ser a base para a confiança. Ao abordar este ponto, a cientista apresentou métodos rigorosos que tornam possível avaliar generalização, erro e explicabilidade. Reforçou ainda a importância da investigação fundamental, algo muito presente também no INESC TEC.
Por último, a investigadora defendeu que a Europa tem de criar, não pode apenas regular, caso contrário arrisca-se a ficar dependente de modelos e infraestruturas americanas ou chinesas. De acordo com Gitta Kutyniok, “a soberania digital não é um luxo. É sobrevivência”.
A Mesa-redonda
Com quatro oradores – Sofia Miguens, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Mário Boto Ferreira, da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, Mário Figueiredo, do Instituto Superior Técnico, e José Carlos Príncipe, da Universidade da Flórida -, a mesa-redonda contou com moderação do jornalista da SIC Notícias Rodrigo Pratas e do Presidente do INESC, Arlindo Oliveira.

Durante uma hora e meia, uma filósofa, um psicólogo e três engenheiros – uma vez que Arlindo Oliveira, para além de moderador, interveio também no painel, não fosse também ele cientista, para além do INESC, no Instituto Superior Técnico -, discutiram riscos, ilusões, limitações, promessas e responsabilidade da IA, refletindo aquilo que o INESC TEC tem vindo a defender – a tecnologia não pode ser pensada sem sociedade e a sociedade não pode ser pensada sem tecnologia.
Houve pontos divergentes, mas também muitos convergentes, começando, desde logo, pelo facto de a IA não ser algo novo, o que mudou e pode ser considerado radical é o seu impacto social e a capacidade que tem tido para moldar comportamentos, política e cultura.
“Não devemos temer as máquinas, mas quem as controla” – foi um dos pontos fortes deste debate, sintetizados numa frase proferida por Mário Figueiredo quando se discutia sobre quem realmente orienta o desenvolvimento da IA. O cientista sublinhou que os modelos não são independentes e que o grande risco não está na tecnologia em si, mas nos interesses políticos e económicos por trás dela.
Discutiu-se educação, questões relacionadas com financiamento das universidades e também a incerteza do futuro do trabalho. Para os cientistas que fizeram parte da mesa-redonda, é certo que a IA vai substituir algumas funções, mas, novamente aqui o problema maior é político e social e não tecnológico. A complementaridade das visões dos cientistas vindo das áreas das tecnologias com os das ciências sociais – nomeadamente, filosofia e psicologia cognitiva -, foi, de facto, um dos pontos altos e distintivos da edição deste fórum.
A questão da desinformação que afeta a verdade, realidade e confiança – que estão todas em crise e que já tinham sido abordadas nas duas intervenções iniciais – voltou também aqui a ser referida, chamando a atenção para uma necessidade crítica e urgente de reflexão filosófica face à dificuldade de distinguir, por exemplo, o que é real ou não.
O encerramento
O fecho do evento ficou a cargo do Ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, que aproveitou o fórum para refletir sobre inovação e ciência em Portugal e a necessidade de investir mais na investigação e na ciência.

O Ministro começou por salientar o World Uncertainty Index, uma medida que avalia a incerteza e que está disponível para 143 países, Portugal incluído. Desde o início dos anos 2000, houve uma série de choques – tais como a pandemia, guerras, crises financeiras, fenómenos climáticos extremos -, que fizeram com que os níveis de incerteza disparassem, tornando cada vez mais difícil uma compreensão sobre o mundo. Assim, explicou Fernando Alexandre, antecipar o futuro – tal como tinha sido discutido no painel antes da sua intervenção -, tornou-se, cada vez, mais incerto também. “Prever o futuro neste contexto de incerteza mundial tornou-se ainda mais difícil”, explicou o Ministro da Educação, Ciência e Inovação.
Nesse sentido, para o Ministro, o papel das instituições que compõem o ecossistema científico português, nas quais o INESC TEC se insere, torna-se ainda mais importante. De acordo com Fernando Alexandre, é preciso investir mais em ciência, em investigação, em educação e na qualificação das pessoas. Defendeu ainda que a sociedade deve compreender a importância de se investir mais nestas áreas e os benefícios que proporcionam, nomeadamente no combate à desinformação, tema amplamente debatido ao longo da tarde. Salientou, por isso, a necessidade de uma comunicação eficaz dos resultados da ciência.
Fernando Alexandre traçou ainda um paralelismo entre o tema do fórum – a inteligência artificial – e as transformações estruturais necessárias nas áreas da educação e da ciência. Referiu-se, nomeadamente, às grandes tendências do mercado de trabalho, recorrendo como base ao Future of Jobs Report 2025.
Por último, o Ministro antecipou alguns dos planos de reforma do governo para as áreas do ensino superior, educação e inovação, bem como a visão estratégica que orientará os investimentos considerados necessários nessas áreas.
A síntese
É difícil imaginar uma síntese mais fiel do que o INESC TEC representa – e tem representado ao longo de 40 anos – depois de analisadas todas as intervenções que marcaram a tarde de 17 de novembro.
Mas, se um resumo pode ser feito, então fá-lo-emos assim: Marzieh Fadaae trouxe inclusão e diversidade, Gitta Kutniok acrescentou rigor, soberania e sustentabilidade; e os cientistas da mesa-redonda ofereceram uma reflexão crítica, ética e responsável.
O Fórum do Outono do INESC TEC regressa em 2026. Até lá, o streaming da edição 2025 está disponível no canal YouTube do INESC TEC.


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