Vamos imaginar que estamos num consultório médico. Um paciente queixa-se de uma tosse persistente. O profissional de saúde diz-lhe que tem de fazer exames complementares para confirmação do diagnóstico. O exame recomendado é a tomografia computadorizada (TC). O exame feito irá confirmar a existência ou não do tumor. Agora pensemos: e se, além do diagnóstico principal, fosse possível identificar automaticamente sinais de risco cardiovascular que poderiam passar despercebidos? É aqui que entra o INESC TEC com o recente projeto CardioComplete. O Instituto está a desenvolver uma ferramenta automática, interativa e explicável, que complementa os relatórios médicos e ajuda a salvar vidas.
Este sistema automático de rastreio oportunístico de achados cardiovasculares em exames de tomografia computadorizada vai, assim, dar recomendações ao radiologista sobre os achados. Ao receber o relatório, o médico pode querer alterar a terapêutica mediante o que foi relatado, o que pode, no futuro, vir a permitir a redução da mortalidade e morbilidade de doentes, graças a esta alteração e ajuste da terapêutica e análise dos fatores de risco, com base nas recomendações do sistema. Ao INESC TEC cabe o papel de desenvolver este sistema automático, que vai também incluir ferramentas de inteligência artificial (IA) para interpretação automática de relatórios imagiológicos e exames de tomografia computadorizada torácica. À Unidade Local de Saúde de Vila Nova de Gaia Espinho (ULSGE) cabe testar estes modelos.
“Os objetivos do projeto são o desenvolvimento e validação de métodos de processamento de linguagem natural para identificação de achados cardiovasculares em relatórios imagiológicos, métodos de visão computacional para a deteção de achados cardiovasculares em tomografia computadorizada torácica e uma interface gráfica que integre os métodos de IA desenvolvidos para integração clínica”, resume João Manuel Pedrosa, investigador do INESC TEC, que está a liderar o CardioComplete.
A motivação para este projeto? É que, embora as doenças cardiovasculares sejam a principal causa de morte em todo o mundo, os achados cardiovasculares não são frequentemente relatados nos relatórios de rotina de tomografia computadorizada, apesar das diretrizes existentes que incentivam o relato destes achados.
“Os relatórios assistidos por IA, tal como proposto pelo CardioComplete, irão revolucionar este paradigma, fornecendo avisos automáticos durante o processo de elaboração do relatório, incentivando os radiologistas a adicionar achados cardiovasculares aos seus relatórios. Isto, por sua vez, encaminhará os doentes para terapêutica ou consulta dirigida, melhorando o prognóstico cardiovascular destes doentes e diminuindo a mortalidade e a morbilidade”, esclarece o investigador, que vez neste projeto um avanço e um contributo grande por parte do INESC TEC na área de engenharia biomédica.
Mas há também uma série de contributos a ter em conta na área da inteligência artificial, como explica a investigadora Evelin Amorim – “as ferramentas de inteligência artificial estão a tornar-se cada vez mais presentes no dia-a-dia, mas o seu impacto depende não só do seu desempenho, mas também da sua implantação e da interação com as mesmas. No CardioComplete será explorado o conceito de complementação de texto em relatórios médicos e testada a sua usabilidade em ambiente clínico. Ter ferramentas de inteligência artificial que sejam fáceis de interagir e que possam ser inspecionadas – neste caso, através da segmentação de achados cardiovasculares – introduzirá transparência e fomentará a confiança nas ferramentas de inteligência artificial, facilitando a sua aprovação e estabelecendo novos padrões para estas tecnologias”.
Apesar de já terem sido propostos vários métodos de visão computacional para a deteção de calcificações coronárias – o achado cardiovascular mais comum e um marcador de risco cardiovascular amplamente utilizado -, a deteção de outros achados, nomeadamente a nível valvular, da aorta e a nível morfológico, possibilita um rastreio cardiovascular mais completo. “E esta é, sem dúvida, uma grande contribuição que este projeto traz para a ciência e tecnologia”, acrescenta João Pedrosa.
Mas existem outros contributos. É que os modelos existentes em língua portuguesa europeia para o domínio médico são escassos e a investigação do INESC TEC vai também representar um avanço nesta área ao propor, não só um modelo de linguagem em grande escala para português europeu, mas também um modelo de reconhecimento de entidades específico para relatórios de radiologia. O reconhecimento de entidades consiste em identificar automaticamente termos médicos importantes.
“Um dos principais desafios neste domínio é o reconhecimento preciso de entidades relevantes para o domínio da saúde. Além disso, a maioria dos conjuntos de dados em português europeu existentes concentra-se em resumos médicos ou relatórios de especialidades diferentes da medicina cardiovascular, tornando a identificação de entidades específicas em medicina cardiovascular desafiante”, esclarece Evelin Amorim.
De acordo com a mesma investigadora, os modelos de visão-linguagem obtiveram excelentes resultados em diversas áreas, mas as imagens e os textos médicos podem ser particularmente desafiantes. “Quando os relatórios são contraditórios, como no caso de resultados repetidamente não reportados, o alinhamento texto-imagem pode ser prejudicial e “ocultar” os achados cardiovasculares existentes. A exploração da aprendizagem de protótipos – isto é, aprendizagem a partir de modelos de referência -, dentro dos modelos de visão-linguagem vai permitir um maior foco em casos importantes onde são relatadas informações significativas para melhorar o desempenho preditivo dos modelos de visão-linguagem. Embora este novo paradigma seja explorado em relatórios de tomografia computadorizada, encontrará, sem dúvida, utilizações noutras aplicações, médicas e outras”, conclui.
Com o CardioComplete, um dos vários projetos que o INESC TEC viu aprovados, em 2025, no Concurso de Projetos Exploratórios da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), o Instituto dá um passo decisivo para que a inteligência artificial ajude a salvar vidas, apoiando médicos na deteção precoce de problemas cardiovasculares.
Os investigadores mencionados na notícia têm vínculo ao INESC TEC.