A Química das/nas coisas

Por Filipe Monteiro Silva, Assistente de Investigação no Centro de Fotónica Aplicada

Pensemos no que foi 2020.

Um ano que seria promissor, na boca de muitos, rapidamente se tornou num dos anos mais preenchidos e memoráveis, pelas razões erradas; senão veja-se:

Ébola, febres amarela e do dengue, incêndios brutais na Austrália, Black Lives Matter, quedas de aviões, explosões em Lagos e Beirute, confrontos no Azerbaijão, sismos, usurpação de poder na Bielorrússia, ataques à faca e à pistola em múltiplos países europeus, SARS-CoV-2 nas martas, Trump, um cheirinho de guerra civil nos E.U.A. e, por fim (sem fim), COVID19.

Exatamente por estes motivos não vou falar em nenhum destes assuntos! Ou melhor, vou pegar num deles para fazer uma ponte de ligação.

Estou no INESC TEC desde 2014 e sou Químico. Vim para para ajudar a evoluir algumas técnicas que por cá se faziam e – ao mesmo tempo – também eu evoluir à medida que contribuía para alguns projetos em execução.

Reparem que escrevi Químico com “Q” e não com “q”; dois motivos: pelo enorme orgulho que tenho em o ser e porque quero fazer a distinção entre o ser Químico e os “químicos”, que tantas vezes se ouve dizer por aí. Muito provavelmente por causa da (cada vez mais “normal”) importação direta do anglicanismo chemicals, que quer – na realidade – dizer compostos químicos, substâncias químicas ou reagentes. Esses sim, são os termos corretos para designar as substâncias químicas que tudo compõem; seja aquela mesa que temos na cozinha, aquele medicamento que tomamos para as dores de cabeça, os materiais dos nossos telemóveis ou o próprio combustível que nos move e alimenta.

Tudo composto por pequenos aglomerados de peças tipo Lego® – as moléculas – que são constituídas por elementos mais pequenos – os átomos. Estas unidades básicas da matéria são muito semelhantes a um pequeno planeta: pensemos num planeta com umas quantas luas a circular na sua órbita. O núcleo (um aglomerado de protões e neutrões) seria o planeta, e os eletrões a girar incessantemente na sua órbita, as luas. Podíamos pensar que as coisas ficariam por aqui, mas não: elementos ainda mais pequenos, que na realidade ainda não percebemos muito bem, compõem os átomos (quarks, gluões, etc.).

Em agosto de 2020, em Beirute (Líbano) aconteceu algo impensável: quase 3000 T de nitrato de amónio (NH4NO3) entraram em combustão rápida, o que resultou numa reação particularmente exotérmica e com uma inexorável devastação no raio de centenas de metros. Numa entrevista no Jornal 2, o Prof. Dr. António Fernando Silva (pessoa que me marcou no meu percurso académico e pessoal) explicou duma forma bastante direta o que é este composto: “é um sal simples, solúvel em água – muito solúvel – e é utilizado como fertilizante e para preparar explosivos. É um sal branco, com um aspeto inofensivo. O problema do nitrato de amónio é se existir em grandes quantidades e se forem aplicadas condições que levem ao aumento de temperatura ou de pressão interna, ele pode explodir”.

Este composto químico tem – como quase todos eles – uma dualidade existencial: podem ser usados de forma benéfica ou de forma prejudicial. Este em particular é extremamente útil para fertilizar os campos e permitir o desenvolvimento mais sagaz das colheitas que servem para nos alimentar (combustível). É claro que, se olharmos às propriedades que ele possui no estado sólido, rapidamente um olho treinado percebe que, em determinadas condições, ele faz mais do que fertilizar.

Esta dualidade não é exclusiva desta substância química: a nitroglicerina é um famoso explosivo mas, na dose certa, é um medicamento, sob a forma dum potente vasodilatador que já salvou muitas vidas. Há uma citação de Paracelso que me acompanha: “A diferença entre um remédio e um veneno, é a dose”, e que valida o meu exemplo anterior.

Não existem compostos químicos maus, apenas maus usos pois, dependendo do uso que se dá, o resultado será vantajoso ou nefasto. O que é “químico” não é necessariamente (ou de todo) mau, e o que é “natural” é que é bom. É uma falácia demasiado banal: é tudo constituído por átomos e moléculas. Uma molécula X sintetizada por uma pessoa é exatamente igual à molécula X que foi obtida a partir, por exemplo, da natureza. Qualquer argumentação em sentido oposto é intrinsecamente falsa. Um exemplo fenomenal e muito simples dado pelo Prof. Dr. Carlos Corrêa, na sua aula de jubilação:

“As pessoas têm uma má perceção da Química e talvez porque são facilmente influenciáveis. A um grupo de pessoas perguntou-se a perceção que tinham conforme o que lhes era apresentado. No primeiro exemplo, mostrou-se a expressão E300 que é utilizada na rotulagem de produtos alimentares; a reação foi de preocupação pois ‘coisas com siglas são artificiais e claramente só fazem mal’. De seguida, foi mostrada a expressão Ácido Ascórbico, e a reação foi de pânico porque ‘toda a gente sabe que o ácido rói, queima, mata’. Por fim, face à expressão Vitamina C a reação foi de tranquilidade e de confiança, pois ‘as vitaminas fazem bem’. O que as pessoas não sabiam/sabem é que estas são três designações diferentes para o mesmo composto químico…”

Em suma, o que é “natural” não é necessariamente bom, e o “artificial” não é obrigatoriamente mau.

Se considerarmos que Lavoisier tinha razão e que “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, então as moléculas que me compõem já foram, em tempos, pó das estrelas, terra que outros seres pisaram, ou mesmo o ar que os dinossauros respiraram.

Então as minhas moléculas são iguais às do meu vizinho, às da minha amiga, às de outra qualquer pessoa que caminha este mundo, apenas estão dispostas numa forma ligeiramente diferente. Espera… será que isso quer dizer que somos todos feitos da mesma matéria e somos todos iguais (mesmo sendo diferentes)?

TL;DR: Químicos são as pessoas com formação em Química; substâncias ou compostos químicos são as coisas; o artificial não é obrigatoriamente mau e o natural forçosamente melhor; somos todos iguais.

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