A Transformação Digital das Organizações

Por Henrique São Mamede, Investigador do Centro de Sistemas de Informação e de Computação Gráfica (CSIG).

Já muito antes da pandemia provocada pelo SARS-COV-2, as organizações refletiam sobre o melhor processo de aproveitar o momentum criado pela convergência de um conjunto de tecnologias como, por exemplo, a virtualização de servidores e data centers, os modelos de computação cloud, a evolução das redes de comunicações e protocolos (MPLS, SDN, 4G/5G, LPWAN), a Internet-das-Coisas, os algoritmos de machine learning e mesmo a realidade virtual e a realidade aumentada. A utilização mais intensiva e adequada destas tecnologias, aliada a uma real vontade de aumentar a eficiência organizacional, levou-nos ao ponto de definirmos este processo apelidando-o de transformação digital.

Note-se a importância dada a este tema, com a criação, pela primeira vez, de uma Secretaria de Estado, com nomeação do respetivo Secretário de Estado em outubro de 2019. A altura em que esta nomeação acontece, aliás, parece quase fruto de uma antevisão profética, na medida em que quase que coincide com o início de uma nova era, com a situação de pandemia, que ainda persiste, e que acabou por funcionar como um catalisador para uma transformação mais rápida e mesmo, em muitos casos, disruptiva.

Nos últimos anos, particularmente a partir de 2015, fomos assistindo a muitos casos de sucesso, bem como a alguns de insucesso, nestes processos de transformação digital, em organizações de praticamente todos os setores de atividade, incluindo a Administração Pública.

Contudo, estes processos foram sempre, de alguma forma, limitados, pois nem sempre se conseguem criar as condições e aceitar o risco de promover modificações disruptivas. Tal advém da necessidade que as organizações sentem, excluindo-se as start-ups, devido à sua natureza, de tomar decisões sobre as quais não possam ter, às vezes apenas sentir, alguma forma de controlo sobre os riscos. Em suma, transformar, sim, mas com pequenos passos incrementais.

A partir de finais de 2019, a transformação digital passou a assumir outro relevo, apenas porque não existia outra possibilidade. Tiveram então as empresas, nessa altura, que assumir, e rapidamente, a capacidade de transformação a todos os níveis. Com este processo, equipas de trabalho, remotas e distribuídas, tornaram-se uma prática comum para todos e não apenas para muitas das empesas tecnológicas que já na última década tinham adotado este método de trabalho. A necessidade de modelos para trabalho remoto em escala global foi imposta, essencialmente, para mitigar o risco de disseminação do vírus num ambiente físico de trabalho, mais vulnerável. As organizações que conseguiam executar as suas operações online recorrendo a ferramentas digitais, rapidamente adotaram um modelo de trabalho remoto para manter os seus colaboradores e equipas trabalhando a partir de casa. Esse facto levou a um cenário em que a maioria dos processos e métodos organizacionais passaram a ser capazes de ser suportados por forças de trabalho remotas usando ferramentas, plataformas e redes digitais, sem a necessidade de uma presença física, como um escritório.

Só que a velocidade imposta a esta transformação súbita foi tal que acabou por faltar tempo para a reflexão sobre a mudança e os impactos da mesma. E, portanto, mantém-se sem resposta a questão sobre a possibilidade de transformar um modelo de negócio físico num modelo de trabalho remoto, total ou mesmo parcial; e, em caso afirmativo, como liderar com o necessário programa de transformação; e, já agora, baseado em que guião.

Existem muitos esforços e trabalhos em curso, mas necessitamos, ainda, de tempo para que possam seguir o seu processo de desenvolvimento e avaliação até poderem constituir peças utilizáveis, que nos ajudem a percecionar as respostas às questões referidas.

O foco súbito em novos canais de comercialização, nuns casos substituindo-se totalmente aos canais físicos tradicionais, noutros apenas parcialmente, vieram provocar a necessidade de repensar o modelo de negócio. As transações de comércio eletrónico cresceram e continuarão a crescer porque muitos consumidores, subitamente, perceberam as vantagens de recorrer a este canal para a realização das suas compras. O que significa que continuarão a recorrer ao mesmo, mesmo pós-pandemia. Para as organizações significou a transição de um mundo físico para um mundo virtual, sem tempo para planos ou definição de estratégias, tendo-se passado diretamente para as operações.

Ao mesmo tempo, teremos de pensar que neste maravilhoso novo mundo pós-pandemia, em que na realidade não voltará a ser como era em 2019, temos de encontrar formas de acelerar a transformação do backoffice das organizações, pois só dessa forma ela pode aspirar a funcionar com suporte num modelo virtual ou, em abono da verdade, híbrido. A forma natural de efetuar essa transformação em particular é o recurso a ferramentas de Robotic Process Automation (RPA), que a seu tempo, e com novas tecnologias e funcionalidades, passarão a poder ser integradas não apenas em backoffice, mas também em frontoffice.

Grande parte do valor atual do RPA, que se concentra na economia de custos e noutros fatores, decorre de, simplesmente, se implementarem peças de software para automatizar a execução de tarefas repetitivas e previsíveis. À medida que as capacidades da IA forem sendo incorporadas nestas ferramentas, dando-lhes algumas características cognitivas, assistir-se-á à evolução do tipo de aplicação das mesmas. Assim, o RPA evoluirá de ferramenta capaz de executar um processo repetível para uma ferramenta capaz de aprender com o tempo e de alterar, inclusivamente, a sua forma de execução dos processos e de tratamento de exceções. Para isso, espera-se que a área de machine learning (ML) possa desencadear a próxima onda de inovação nos RPA. Essa onda trará a capacidade dos bots, instâncias dos RPA, se tornarem inteligentes, à medida que aprendem com erros repetitivos, para além da capacidade da criação de conceitos de comunidade e de pertença a uma rede. Nessa altura, perante um erro comum, o bot irá resolver o problema, ao invés de o colocar numa fila de exceção, para tratamento manual por um operador humano, partilhando, simultaneamente, a solução encontrada com a comunidade em que está integrado.

Mas as funcionalidades atualmente passíveis de serem encontradas nestas ferramentas, se implementadas corretamente, oferecem benefícios de amplo alcance para a organização, muito para além da economia de custos em colaboradores. Superficialmente, pode parecer que o RPA tem a ver quase exclusivamente com o tema da otimização de custos nas operações do negócio. Contudo, essa é uma visão estreita e bidimensional dos benefícios associados ao RPA. Na verdade, o RPA apresenta um potencial significativo para aprimorar a experiência do cliente e ajudar uma organização a aumentar a sua participação no mercado, oferecendo um nível superior de serviço aos seus clientes. Isto, ao mesmo tempo que funciona como o backoffice de escritório que, na verdade, foi virtualizado, mas que continua necessário ao suporte às equipas distribuídas.

A tecnologia dos RPA deve ser cuidadosamente examinada e entendida. Caso contrário, a organização corre o risco de perder a sua vantagem competitiva por inabilidade em capitalizar, rapidamente, através de inovação disruptiva.

Por fim, temos o fator humano, peça basilar na transformação e sem a qual a mesma não fará qualquer sentido. A capacidade de adaptação humana às alterações do meio envolvente, ainda que seja apenas societal, não pode deixar de me maravilhar. Foi o facto de termos pessoas cada vez mais partidárias do digital e, ao mesmo tempo, mais capacitadas para o utilizar de formas quer tradicionais, quer inovadoras que permitiu que toda esta situação se pudesse desenvolver como sucedeu. O que, ao mesmo tempo, mostra que a tecnologia, mais que substituir o trabalho humano, funciona como um capacitador e uma prótese capaz de ampliar a capacidade humana, levando a níveis de eficiência e de trabalho impensáveis há apenas um par de anos atrás.

Mas temos de ponderar realisticamente como podemos substituir aspetos ligados ao escritório físico, como o facto deste se constituir como uma âncora social, como um facilitador na partilha do conhecimento e como um ponto central em processos de colaboração não estruturada. Todos estes aspetos são muito importantes e devem ser encontradas as formas de os mitigar, porque o ser humano, enquanto tal e pela sua natureza específica, é um animal social. Não podemos simplesmente ignorar todos os aspetos desta socialização, sem correr o risco de tudo o resto falhar.

Postas estas considerações, afigura-se-me evidente a necessidade imperativa de todos podermos realizar e partilhar uma reflexão sobre o que será realmente este novo mundo. Certezas, tenho duas: nada na nossa sociedade atual voltará a ser como era em início de 2019, já agora em concordância absoluta com o Secretário de Estado para a Transição Digital; o nível tecnológico alcançado permitiu que ultrapassássemos a situação provocada pela pandemia, com o génio humano a retirar da adversidade o maior proveito possível, no mais curto espaço de tempo.

Por fim, para quem ainda tem dúvidas, proponho uma reflexão simples: tente recuar 30 anos e colocar-se no início dos anos 90 do século passado. Agora, imagine toda a situação de pandemia que vivenciamos e responda, de forma sincera: teriam sido as organizações capazes de resistir da mesma forma?

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