Alterações climáticas

Por Susana Barbosa, Investigadora Sénior no Centro de Robótica de Sistemas Autónomos (CRAS) e no Centro de Sistemas de Informação e de Computação Gráfica (CSIG)

No mês em que decorreu a 26.ª cimeira anual das Nações Unidas acerca do clima, designada “COP26” (Conference of the Parties em inglês, Conferência das Partes em português), o tema do clima esteve em foco nos meios de comunicação, redes sociais e na mente das muitas e diversas “partes interessadas”. Talvez sem grande surpresa o resultado da conferência foi morno, parecendo uma tarefa impossível conciliar de forma satisfatória para todos os diversos interesses e preocupações em cima da mesa. Embora o meu trabalho científico esteja muito relacionado com o clima, confesso que o meu interesse nas questões políticas do clima é muito reduzido, mas não resisto a dar a minha perspetiva pessoal…

Para quem conhece o meu trabalho científico, a minha relutância na militância climática pode parecer surpreendente… afinal, tenho passado os últimos quase 20 anos a estudar o planeta, a fazer campanhas de monitorização de parâmetros geofísicos, a desenvolver métodos para extrair informação de dados climáticos, a investigar a subida do nível do mar, e as interações complexas entre a terra e o espaço… e não tenho qualquer dúvida da relevância e urgência da questão climática para a sobrevivência – não do planeta (sabemos que a Terra já resistiu – e continuará a resistir – a muitas convulsões), mas da humanidade e da civilização como a conhecemos. E mesmo pondo de lado a questão das alterações climáticas, a utilização insustentável dos recursos que temos atualmente deveria só por si ser motivo de muita preocupação, por exemplo a crescente diminuição das reservas de água, da capacidade dos solos, ou da qualidade do ar.

Apesar de não esquecer estas preocupações, sou apologista da separação entre ciência e política, ciência e religião, ciência e ativismo. Não é que não ache que a política não é importante, ou que eu não tenha profundos interesses espirituais, ou que não ache o ativismo louvável e desejável. Simplesmente penso que para a ciência conseguir manter a sua eficácia não deve haver misturas! É impossível que a ciência não tenha fortes influências culturais, afinal é feita (ainda e – atrevo-me a apostar – sempre) por seres humanos e não por máquinas. Mas tem uma cultura muito própria, um ethos que exige uma postura o mais imparcial possível, desapaixonada e rigorosa, que é difícil conciliar com uma postura de “parte interessada”.

No INESC TEC estou a trabalhar em vários projetos com o objetivo de compreender melhor o clima e o sistema terrestre. No projeto traceRadon, financiado pela EURAMET (European Association of National Metrology Institutes) trabalhamos em formas de melhorar as medições de gás radão no ar para melhorar modelos de transporte atmosférico, por exemplo. No projeto NEWSAT, do programa MIT-Portugal, desenvolvemos tecnologia que permitam o estudo da ionosfera e compreender melhor o papel desta interface quer no clima terrestre quer no clima espacial. No projeto SAIL, financiado pelo Fundo Ambiental, recolhemos dados atmosféricos e oceanográficos a bordo do navio-escola Sagres para compreender melhor a camada limite marinha, que tem um papel fundamental no clima, e as alterações nas propriedades elétricas da atmosfera associadas às alterações climáticas.

No projeto europeu TiPES (Tipping Points in the Earth System) tentamos aplicar métodos de inteligência artificial para identificar transições climáticas abruptas em registos passados. A informação sobre o clima de há muito tempo (cerca de 60 000 anos até ao presente) está registada, por exemplo nas camadas dos gelos da Gronelândia e da Antártida, e nas estalagmites. As séries temporais de indicadores climáticos obtidas a partir desses registos indicam que houve várias transições abruptas no passado – abruptas em termos climáticos significa alterações de temperatura de cerca de 15 graus num piscar de olhos. E essas alterações ocorreram na ausência de qualquer influência humana! Há várias teorias, mas essencialmente pensa-se que há um desequilíbrio nos subsistemas principais do sistema terrestre (oceano, gelos, atmosfera) e depois é um efeito dominó, em cascata, que faz com que o sistema vá caminhando cada vez mais rápido para um novo estado. Se estas alterações climáticas estão bem documentadas no passado, sem haver qualquer efeito antropogénico, é fácil compreender que juntando a componente humana o potencial para desequilíbrios do sistema terrestre é imenso!

Fazendo a analogia entre e o planeta e um ser vivo, há “órgãos” mais sensíveis que convém não perturbar para manter um funcionamento estável, no caso do planeta alguns desses pontos mais óbvios, que sendo perturbados podem levar o sistema global para outro estado radicalmente diferente, incluem o gelo no Ártico, as placas de gelo na Gronelândia e na Antártida, e a floresta da Amazónia. E é muito provável que os limiares para estes sistemas já tenham sido ultrapassados, isto é mesmo que por magia se parassem todas as emissões, e houvesse uma estabilização do clima, os sistemas já estão provavelmente no caminho inexorável do desequilíbrio para outro estado. E isso é verdade em relação às temperaturas ou ao nível do mar, por exemplo – os efeitos vão certamente ser sentidos pelas próximas gerações, mesmo que o aquecimento global parasse de repente.

Porque as alterações climáticas são um problema global que afeta tudo e todos, a abordagem tem de ser necessariamente diversa e inclusiva. A ciência do clima, o conhecimento aprofundado do sistema terrestre e das suas interações, é sem dúvida fundamental. Mas por si só não é a resposta. A humanidade terá de ser capaz de tomar decisões baseadas em evidências científicas, mas acima de tudo em valores humanos e numa perspetiva que privilegie o bem comum – de todos, e não só dos países mais influentes.

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