De pequenino se torce o pepino

Por José Nuno Oliveira, Investigador Coordenador do Laboratório de Software Confiável (HASLab)

A intensa desmaterialização da atividade social que caracteriza os nossos dias tornou ubíquas as tecnologias baseadas em computação, desde o telemóvel que trazemos no bolso, até aos serviços de redes de máquinas poderosas que, num lugar nebuloso que não se sabe bem onde fica, tudo parecem guardar em segurança. Contudo, será aceitável que a vasta maioria da população não tenha sequer a mínima ideia do que está por trás de tecnologias das quais está cada vez mais dependente? Bastará uma elite de técnicos superespecializados que tudo fazem tudo e em quem todos confiam?

Carl Sagan disse: “We live in a society exquisitely dependent on science and technology, in which hardly anyone knows anything about science and technology. (…) If we continue to accumulate only power and not wisdom, we will surely destroy ourselves.

A frase de Sagan coloca não só um problema de iliteracia, mas também de cidadania. O cidadão tem o direito de saber os riscos que corre ao aceitar uma tecnologia, a par do dever de a usar responsavelmente. E só o poderá fazer se tiver alguma formação de base no respetivo corpo de conhecimento. Torna-se, assim, imperioso criar um corpus pedagógico que ensine a computação como disciplina de base, a par da matemática, da língua materna, etc.

Neste domínio tem havido muitos equívocos. Ao contrário do que muitos pensam, a iniciação à computação pode começar bastante cedo e não precisa de grandes recursos em equipamento: basta papel, lápis e, sobretudo, massa cinzenta. Na sua essência, coloca ao aluno um problema novo: como comunicar com uma máquina? E em que medida é isso diferente de comunicar com uma pessoa? Se aqui se pede domínio da linguagem escrita e falada, a primeira questão pede aquilo a que agora se chama “pensamento computacional”. Este pressupõe um bom domínio da lógica e da capacidade de abstrair situações complexas da vida real em modelos simples, que o computador entenda. Assim, e por definição, se geram sinergias imediatas com outras duas disciplinas nucleares: com a língua materna, pois será impossível a uma pessoa comunicar a um computador algo que não consiga sequer articular com uma pessoa; e com a matemática, por ser a forma de expressão que melhor lida com a informação abstrata e desmaterializada que está ao alcance de um computador entender.

Desde o ano letivo transato, que tenho o prazer de colaborar ativamente com a ENSICO – Associação para o Ensino da Computação – no âmbito de uma parceria que esta tem com o INESC TEC e através da qual três agrupamentos de escolas do Porto tiveram já aulas de computação ao nível dos 5 a 8 anos de escolaridade.

A experiência não podia ser mais gratificante. O que é nela diferente quando comparada com outras estratégias para aumentar a literacia digital é a ênfase em formação de base que é, por definição, lenta, maturada e crescente. Aposta-se sempre na integração da computação em conhecimentos anteriores e na evolução intelectual do aluno, desde os desenhos, os jogos e as historinhas iniciais, até à capacidade de resolver autonomamente problemas complexos, com eficácia e elegância, usando o computador.

Esta visão “unplugged” contrasta com a tentação que muitos têm de querer queimar etapas e correr para a falácia de que o que falta são computadores na sala de aula e outras visões falsamente futuristas e pedagogicamente improdutivas. O que é efetivamente necessário é produzirem-se conteúdos de elevada qualidade, cientificamente sólidos, atraentes, progressivos e sem hiatos pedagógicos. Estes deverão ser capazes de motivar professores e alunos a entrarem na “magia” da computação. E a seu tempo, os segundos terão acesso ao “violino” por que tanto ansiaram em anos anteriores – como Shinichi Suzuki recomendou que se fizesse há tantos anos atrás. Então sim, terão condições para (estudando) virem a ser bons concertistas.

Neste regresso às aulas, a experiência alargar-se-á a um universo de quase mil alunos. Para além de socialmente relevante, a literacia digital ao nível “K12”, como é costume designar-se, abrirá espaço para o ensino de matérias mais ambiciosas ao nível do ensino superior. Tem, assim, potencial para vir a revolucionar e atualizar os conteúdos pedagógicos dos cursos de informática e computação, gerando uma dinâmica com um potencial económico valioso num país que, parco de riquezas naturais, tem como principal matéria-prima a massa cinzenta e a energia dos seus cidadãos.

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