José Carlos Caldeira começou no INESC como voluntário, numa história que começa com sebentas e diretas. Os corredores da fábrica do pai e o espírito gregário que encontrou cá deram ferramentas para “falar a linguagem dos dois lados” e para repetidos ensaios de aproximação entre indústria e investigação.
Não há canção de embalar que valha quando se vive paredes meias com uma metalomecânica. José Carlos Caldeira habituou-se à melodia férrea da rebarbadora de tal maneira que mergulhava no sono como se o som do disco a atalhar ferro adentro fosse um burburinho ordenado e reconfortante: a mãe dizia-lhe que aprendeu a adormecer ao som da máquina. Mas do que José mais gostava era mesmo das “visitas de estudo” com o pai à Rua do Almada, no Porto – a Meca das ferragens a norte: vestido com um fato-macaco à medida, com bolso para muitos lápis, regressava para se passear nos corredores da fábrica do pai como um mini operário. Era a fábrica como “recreio”.
“Nascer numa metalomecânica” é quase a história de origem perfeita para a carreira de José Carlos Caldeira. Depois das muitas horas, dias, anos a ver a fábrica de perto encontra o INESC e tudo se encaixa para décadas a ensaiar a aproximação entre a indústria e o conhecimento produzido longe da sinfonia de rebarbadoras e corredores da maquinaria.
“Até certa altura, a minha vida foi ali na metalomecânica do meu pai, conheci muitas empresas, conheci muitos empresários e foi com todo esse contexto e experiência que eu cheguei ao INESC. Acho que foi algo que, inevitavelmente, marcou muito a minha carreira”, explica o agora conselheiro do presidente do INESC TEC.
No INESC para o crochet
José Carlos Caldeira tem mais de 35 anos de casa. Sai para a Agência Nacional de Inovação em 2014, “o desafio mais complexo, mas não necessariamente o maior”, e regressa em 2018. Mas esta história começa com sebentas. Estávamos em janeiro de 1983 e, no terceiro ano do curso de Engenharia Eletrotécnica na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), recebe sondagens para ingressar num Instituto a dar os primeiros passos à procura de voluntários. No fundo, era preciso bater a teclado o que estava em cadernos – “e acabou por ser de uma grande satisfação”. É que esse trabalho de secretariado fez uso dos primeiros Macintosh que chegaram a Portugal.
É pela mesma altura que Artur Pimenta Alves o convida a fazer protótipos dos circuitos integrado – wire wrapping. É trabalho de comunicações, longe da mecânica e da eletrotécnica, mas voluntaria-se. Apelida “com carinho” estes tempos em que ia para o INESC fazer “crochet”. Neste trabalho voluntário – “feito com todo o gosto” –, multiplicam-se noitadas e diretas porque se sentia um “privilegiado”: afinal, estava em contacto com equipamentos, computadores e sistemas que eram “do melhor que havia na altura”.
Ganha no INESC outro recreio. “Eu sou uma pessoa muito prática, gosto muito de mexer nas coisas. No curso não tinha isso e com estes trabalhos no INESC, estava sempre a fazê-lo”. Mais tarde, quando tem de decidir a área de investigação, escolhe automação industrial, coordenada e liderada pelo professor Borges Gouveia. Aí, reconhece, teve “alguma vantagem competitiva”. “Foi algo que eu acho que também marcou a minha carreira dentro do INESC, porque eu era a única pessoa naquele universo de gente que tinha experiência industrial. Sempre fui uma pessoa que teve facilidade em fazer esta ligação entre investigação, indústria e empresas, porque eu falava a linguagem dos dois lados. Estava num ambiente em que me sentia à vontade para fazer perguntas, testar. Foi uma grande oportunidade: aproveitei, gostei e fiquei – e acho que o INESC também gostou de mim”.
Um grupo de pessoas, um grupo de amigos
É mais do que justo dizê-lo. No INESC, lança-se para uma carreira de investigador que rapidamente se desmultiplica. O contexto ajuda a instigar. Encontra por cá um “conjunto de pessoas” à procura de se “libertarem de alguma atrofia que existia” na universidade. Investigador, conselheiro, dirigente, professor, um dos maiores desafios terá sido quando Pedro Guedes de Oliveira o chama para a direção. “Uma decisão corajosa”, refere, porque é o primeiro “não doutorado, não professor universitário” a assumir o cargo. Anos antes, cruza-se com José Manuel Mendonça acabado de regressar a Portugal e desenham em conjunto a alteração ao modelo organizacional que iria catapultar o INESC Porto. Estes dois momentos foram o preparado perfeito para ganhar a bagagem precisa para assumir o desafio ANI.
Adepto de “grandes” discussões – sempre por gosto, nunca para colidir –, encontrou desse cedo no Instituto espaço para debater ideias com quem “tinha uma visão relativamente semelhante dos problemas e partilhava uma ambição”. E não tem dúvidas: o INESC, no seu conjunto, teve um impacto muito grande na evolução do país nos últimos anos. Antes da saída para a ANI, em 2014, dizia que testemunhara a transformação do INESC, de “um grupo de amigos” para uma instituição sólida, reconhecida nacional e internacionalmente. Agora, reformula: “Não começa com um grupo de amigos, começa num grupo de pessoas que partilham um ideal e que ao fazê-lo se tornaram amigos pelo caminho”.
Filho do pai
É impossível resumir a carreira de José Carlos Caldeira entre 1983 e o presente sem enumeração exaustiva. Volta e meia, numa conversa que facilmente resvala para o que ainda falta fazer, José Carlos Caldeira vai atalhando pela lista das “coisas meias loucas” em que se meteu: a criação da Produtech, passagens pela ISPIM, ESA, EFFRA, o nascimento do Manufuture, o Conselho Económico e Social e, mais recentemente, a “carreira” de professor convidado na Faculdade de Economia da Universidade do Porto.
“Essa lista deve ser um terço do que já fiz”, reage. “Eu gosto muito do que faço, acho que sou um felizardo desse ponto de vista, nem toda a gente pode dizer isso. E depois várias destas coisas estão interligadas, é trabalho contínuo. Eu olho para elas como missões públicas, nem tanto como trabalho, e eu sinto-me na obrigação de aceitar. Acho que do ponto de vista profissional ninguém ficou a perder, nem eu, nem o INESC”.
E com tudo a acontecer, há tempo para o resto? José Carlos atalha: “No final de contas, sou filho do meu pai”. O pai que, com uma vida de fábrica, lhe disse para seguir eletrónica, a mecânica podia aprender ali, no andar de baixo, e que se habitua a ver todos os fins de semana na fábrica: “era o hobby dele”.
Música para os ouvidos e uma viagem ao país do tango
“Se eu quisesse vê-lo feliz, era vê-lo a ir para a fábrica ao sábado e ao domingo a pensar como melhorar a ferramentas. Para mim, muitas vezes, tudo isto em que me meto também é um hobby, mas eu não sou tão fanático”, brinca. Ganhou tempo para uma carreira profissional sem sobressaltos “à custa de duas coisas”: muitas diretas e pouco sono, e da família.
Mas vai arranjando forma de pontuar a agenda apertada. Recentemente, riscou duas entradas da bucket list: sentir, na Lapónia, a sensação de 30 graus negativos, e pilotar um avião. Mas há mais entradas para cumprir depois dos 60 anos. Muito tempo depois do som desenfreado da rebarbadora encontra outra banda sonora que tem sido companhia há décadas: o jazz. Com tanto tempo em viagem, habituou-se a fazer roteiros em busca dos melhores arranjos. “Há quem vá fazer a lista do roteiro dos restaurantes” – e não quer dizer que não os faça – mas não é a prioridade. “Costumo, sim, fazer o roteiro dos bares de jazz, perceber o que é que há e vou ouvir”. E se há muito prazer aqui, também há prospeção.
O plano para os próximos anos passa por abrir um jazz bar no Porto. “A cidade está maltratada desse ponto de vista, já tivemos mais bares e acho que há aqui oportunidade. Se conseguir consigo, se não conseguir não haverá de vir mal ao mundo”. Até porque, se não conseguir, haverá sempre o resultado de uma viagem à Argentina. Trouxe do país do tango “uma forma mais interessante” de ginástica do que “estar no ginásio” horas a fio. E agora nem as viagens constantes o tiram da pista: calcorreia escolas de dança pelo país – e até em Bruxelas.
Um agitador que gosta de construir memórias
Aos 60 anos, com “muito ferro puxado” longe do ginásio e prestes a iniciar o doutoramento no Politécnico de Milão – por gosto e não por obrigação –, ganhou recentemente uma nova faceta para juntar à lista. Terminado o mandato na ANI, em 2018, embarca numa carreira de docente e começa a dar aulas na Faculdade de Economia da Universidade do Porto em 2019 e, mais recentemente, numa pós-graduação em Gestão e Políticas de Ciência e Tecnologia. É, desde abril deste ano, conselheiro do presidente do INESC TEC.
Desde o regresso à base que tem visto com “enorme satisfação uma nova geração de pessoas a tomar conta do INESC TEC”. “Isto acontece também pela dinâmica que a instituição tem demonstrado ao longo dos anos. E temos agora uma nova geração nesta nova administração, é uma renovação geracional, vejo uma nova vaga de jovens investigadores a entrarem na instituição e a crescerem dentro da instituição. Porque eu diria que o maior mérito de alguém que teve uma função de gestão ou de coordenação ou de liderança, seja o que for, não é só criar uma grande instituição. É também, mas é sobretudo garantir o futuro dessa instituição”.
Viu a forma como Pedro Guedes de Oliveira deu oportunidades a uma nova geração – e “fez isso de uma forma magistral quando preparou a sua saída e a entrada do professor José Manuel Mendonça e a equipa dele”, recorda. “E tenho a certeza de que o professor José Manuel Mendonça fez isso e está a fazer isso com esta nova equipa”.
E considera-se José Carlos Caldeira um dos “construtores” do INESC TEC? Prefere o termo “agitador”. “Construiu” memórias, diz. Depois, andou sempre à procura de novos recreios: “Sou um tipo que vai aos sítios, que lança umas ideias, que lança umas propostas, que mobiliza as pessoas, que põe a malta a trabalhar e quando a coisa está a rolar eu saio de mansinho e vou tratar de outra”.