Caminhadas com GPS e endoscopias 2.0: a tecnologia INESC TEC ao serviço da saúde

A esperança média de vida tem vindo a aumentar – e ainda bem – ao longo dos anos. Vivemos mais do que os nossos avós e isso é, em grande medida, positivo. Mas, ainda assim, os números reais dessa evolução poderão ser surpreendentes. Segundo os dados mais recentes (2019) da Organização Mundial de Saúde, a população do oeste da Europa vive em média 80 a 83 anos, num ano em que o recorde mundial vai para o Japão, onde a esperança média de vida é de 84 anos. Em 2000, não se ia além dos 79 anos em nenhum país do mundo, à exceção do Japão, onde a média era já de 81. Se recuarmos até 1950, os cidadãos europeus viviam em média 62 anos, o que aos olhos de hoje é manifestamente pouco. 

A esperança média de vida tem vindo a aumentar

Vários fatores contribuíram para o aumento da esperança média de vida ao longo dos séculos, destacando-se o controlo de doenças infeciosas como a cólera e a varíola, o consumo de água potável, entre outras reformas sanitárias que marcaram o século XVIII. Seguiram-se mais tarde o desenvolvimento das vacinas e dos antibióticos, dois grandes avanços da Medicina que fizeram com que esticássemos a linha-vida. 

Contudo, o facto de vivermos mais tempo traz consigo uma série de desafios ao envelhecimento saudável. Viver mais anos acarreta uma maior probabilidade de contrair doenças e deficiências, e o melhor exemplo disso é o cancro, cuja incidência está diretamente ligada ao envelhecimento. Com o avançar da idade, o corpo começa a manifestar-se: os ossos tornam-se mais frágeis, os músculos mais fracos, e a mente também não escapa. Resta à comunidade científica continuar a fazer o que sempre fez: procurar saber mais sobre nós e o mundo que nos rodeia para com isso tentar resolver os problemas que a humanidade agora enfrenta. 

Caminhadas localizadas por GPS  

Um paciente com doença arterial periférica tem alguma dificuldade em andar durante longos períodos de tempo. As artérias das suas pernas estão parcialmente obstruídas com placas de aterosclerose que dificultam a circulação do sangue nos membros inferiores. Numa das fases da doença arterial periférica, os doentes sofrem de claudicação intermitente, um sintoma que os leva a sentir dor sentir nos músculos das pernas depois de caminhar, obrigando-os a parar para repousar. O ciclo repete-se, limitando a capacidade de caminhar por longos períodos de tempo. Nas fases mais avançadas, o doente pode sentir dormência ou dor muito intensa quando está deitado, por vezes forte o suficiente para interromper o sono. 

“É uma doença que faz com que as pessoas não queiram andar, porque naturalmente isso lhes causa dor. Apesar de o exercício ser uma recomendação médica, sabemos que não existem propriamente planos de exercício adaptados a cada doente. Um estilo de vida sedentário aumenta os fatores de risco cardiovasculares, agravando a progressão da doença arterial periférica. Em algumas localidades, os doentes deslocam-se aos hospitais três vezes por semana para fazer exercício, o que acarreta custos e causa um impacto considerável no seu quotidiano. Por isso, existem muitos doentes que não estão a fazer o exercício físico que necessitariam”, indica Hugo Paredes, investigador no INESC TEC e Professor na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).  

“É precisamente com o objetivo de travar a progressão da doença que desenvolvemos uma estratégia de intervenção centrada no doente e suportada pela tecnologia. Queremos perceber se um programa de exercícios apoiado por um assistente virtual é cumprido pelo doente, e se funciona melhor do que um programa em que o doente faz a auto-monitorização do mesmo”, conta Hugo Paredes. 

São 120 as pessoas com doença arterial periférica na Consulta Externa de Angiologia e Cirurgia Vascular do CHUPorto, e que já usufruíram dos desenvolvimentos do projeto WalkingPad – que tem como objetivo aumentar a distância caminhada sem dor, promovendo a adesão ao exercício físico, na forma de caminhadas. Utilizaram um smartphone com uma aplicação móvel que monitoriza as suas caminhadas junto da sua área de residência, tal como prescritas pelos seus médicos. A aplicação regista uma série de dados incluindo a velocidade e o trajeto percorrido, bem como os momentos em que foi necessário repousar por causa da dor. Esses dados ficam disponíveis para o doente e para os médicos que o acompanham numa plataforma web, permitindo assim uma supervisão mais fidedigna da adesão dos doentes aos planos de exercício.  

O WalkingPad é um dos projetos INESC TEC que promove a saúde dos cidadãos

Além de perceber quão eficaz é a tecnologia a motivar os doentes para o exercício, o projeto pretende também identificar os níveis de dor, notificando os pacientes sobre quando devem repousar, evitando que estes se forcem a caminhar com dor extrema, o que também não é benéfico para a sua saúde. Mas há mais: os investigadores conseguem saber se foi o neto, o vizinho, ou qualquer outra pessoa a fazer a caminhada em vez do doente. “Há ainda um aspeto interessante relacionado com a análise do sinal. Através do padrão de caminhada, conseguiremos saber se foi o próprio doente a fazer o exercício ou não, o que nos traz uma vantagem relativamente a uma terapia farmacológica, em que nunca temos a certeza absoluta se o doente tomou ou não a medicação”, acrescenta o investigador. 

A intervenção – que tem a duração de seis meses, por ser o período necessário para se verificarem efeitos na distância de caminhada sem dor e na qualidade de vida, de acordo com os estudos existentes nesta área – começa com a prescrição personalizada de exercício físico, como, por exemplo, caminhadas com uma duração de 30 minutos, em local e horário escolhido pelo paciente, embora o plano de exercício físico seja para ser implementado na zona residencial do participante ou numa zona preferencial. Os participantes no estudo têm três contactos presenciais com a equipa WalkingPad onde são avaliados ao nível clínico, físico e psicológico e são sujeitos a uma avaliação e intervenção psicológica presencial. Os restantes contactos são feitos por telefone com o objetivo de monitorizar o estado físico e psicológico do participante bem como reforçá-lo pela sua prestação. 

Com um conjunto de pacientes na sua maioria com mais de 60 anos, a barreira tecnológica foi um desafio inesperado. “Algumas pessoas simplesmente não tinham telemóvel, de qualquer tipo. Várias outras nunca tinham usado um telemóvel com ecrã táctil, o que requereu um reforço de apoio técnico para ajudar as pessoas na transição tecnológica”, confessa o investigador. Para além disso, há outras questões que têm tornado este projeto um grande desafio, como, por exemplo, as características desta população de doente, que apresenta níveis baixos de literacia em saúde, baixa escolaridade, entre outros.  

Apesar de ainda estar numa fase de desenvolvimento, o projeto já impactou positivamente a vida de várias pessoas. “Vários doentes pediram à investigadora principal – Ivone Silva -, médica no CHUPorto, para que pudessem continuar a utilizar a aplicação após o período de testes, tal foi a melhoria que sentiram no decorrer do estudo”, acrescenta Hugo Paredes. 

Como planos de futuro, Hugo Paredes destaca dois caminhos que gostaria de explorar. “Temos a ambição de incluir esta solução nos cuidados de saúde primários em Portugal, contribuindo também para a literacia das populações acerca da doença arterial periférica. Por outro lado, queremos alargar o projeto a uma escala europeia, avaliando a tecnologia em ensaios clínicos de grande dimensão em colaboração com três ou quatro mil doentes”. 

O projeto WalkingPad é um exemplo entre muitos de uma solução tecnológica desenvolvida pelo INESC TEC e que promove ativamente a saúde dos cidadãos. Neste caso, é capaz de auxiliar a classe médica e os próprios utentes a travar a evolução de uma doença cujas fases mais avançadas retiram ainda mais qualidade de vida e independência aos doentes. 

Endoscopias com Inteligência artificial 

A Organização Mundial de Saúde estima que 9.6 milhões de pessoas faleceram de cancro em 2018, tendo vindo a destacar a importância de um diagnóstico precoce para um tratamento com sucesso da doença oncológica. O cancro do estômago é o terceiro mais mortal em todo o mundo, estando previsto para 2035 um aumento de 20% na sua incidência e mortalidade, essencialmente devido a fatores demográficos.  

O diagnóstico do cancro do estômago pode ser realizado após uma suspeita que surge a partir de uma série de biomarcadores, ou integrado em operações de rastreio da população. É feito com o apoio de endoscopia gastrointestinal, um exame complementar que se mostrou crucial para melhorar as taxas de sobrevivência dos doentes com este tipo de cancro.  

“Quando o cancro do estômago é detetável através de endoscopia, já está normalmente num estado razoavelmente avançado, tendo a degradação de tecidos chegado à mucosa do estômago. Isto obriga a uma deteção precoce destas lesões, sendo uma das razões que leva a que apesar de não ser dos cancros com maior prevalência, é dos que tem maior letalidade”, explica Miguel Coimbra, investigador e coordenador do TEC4HEALTH do INESC TEC.  

Foi precisamente com o objetivo de criar uma ferramenta de apoio à decisão na identificação de lesões em endoscopia gastrointestinal para o diagnóstico do cancro do estômago que surgiu o projeto CAGED, que resulta de uma longa colaboração multidisciplinar entre o INESC TEC e o IPO Porto, este último representado pelo Médico Gastrenterologista Dr. Mário Dinis Ribeiro. 

CAGED – ferramenta de apoio à decisão na identificação de lesões em endoscopia gastrointestinal

“Queremos criar um protótipo inicial de um sistema de visão computacional para rastreio do cancro do estômago usando imagens obtidas através de endoscopia, para que seja possível avaliar automaticamente a qualidade do exame e apoiar a deteção e a caracterização de lesões observadas nesta doença”, conta Miguel Coimbra.  

A equipa pretende desenvolver algoritmos eficazes que sejam capazes de apoiar endoscopistas na realização destes exames, não só permitindo segundas opiniões clínicas sem o recurso a um especialista local ou via telemedicina, como também aumentando a confiança de que o exame foi total e corretamente efetuado. Sendo o cancro do estômago apenas detetável numa fase relativamente avançada, este seria um fator determinante para uma deteção mais precoce. “Segundo estudos de referência publicados na literatura científica, entre 7% a 10% das vítimas mortais de cancro no estômago fizeram anteriormente uma endoscopia onde muito provavelmente já seriam detetáveis lesões indicativas de cancro. Os endoscopistas experientes são muito bons a detetar as lesões, e se isso não aconteceu, é porque provavelmente não as viram, sendo possível que não tenham apontado os endoscópios para o local onde estavam localizadas. Isto é natural dada a dificuldade de operar um endoscópio e a similaridade visual da mucosa gástrica”, acrescenta o investigador do INESC TEC. A qualidade do exame é um outro objetivo do projeto CAGED, cuja solução desenvolvida será capaz de alertar o médico para áreas da mucosa que não foram devidamente examinadas.  

A avaliação da qualidade do exame poderá ainda ser útil aquando da subcontratação de serviços, garantindo assim que o serviço prestado pela entidade externa está de acordo com os padrões exigidos, mas também em contexto de formação de jovens médicos, com feedback em tempo real e uma avaliação quantitativa. 

“Estamos atualmente a recolher dados no IPO Porto através de um sistema que automaticamente recolhe imagens para que possamos desenvolver os nossos algoritmos. Mais para a frente teremos dois protótipos construídos em parceria por estas duas instituições, nos quais vamos incluir interatividade através de métodos sofisticados de visualização de dados. Um deles vai ficar no INESC TEC para continuar o desenvolvimento e o outro será instalado numa sala de endoscopia no IPO Porto”, revela Miguel Coimbra. 

O projeto CAGED combina conhecimentos anteriores de outros projetos associados à investigação e desenvolvimento de novos algoritmos e sistemas interativos para gastroenterologia, com os mais recentes avanços em aprendizagem profunda, contribuindo assim para criar um impacto relevante na prática clínica em Gastrenterologia em estreita colaboração com o IPO Porto. 

A aspiração da espécie humana em viver mais tempo é inegável, e a imortalidade é um tema comum em vários filmes e séries, por exemplo. As projeções do Pew Research Center indicam que o número de centenários vai octuplicar até 2050, altura em que se preveem ser 3.7 milhões as pessoas a completar 100 ou mais voltas ao sol. Talvez nunca sejamos imortais como o Deadpool, mas talvez um dia consigamos reconhecer que os cientistas são os verdadeiros heróis. 

Os investigadores mencionados no artigo tem vínculo à UTAD e à UP-FCUP.

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