Ligue aos seus vizinhos. O caminho para autossuficiência energética começa na porta ao lado

1999. Vivemos numa nação ecologicamente sustentável. Ambiente e seres humanos vivem em perfeito equilíbrio, há um controlo da poluição com tolerância zero e abundam comunidades energeticamente eficientes, com a participação ativa dos cidadãos em soluções descentralizadas para a produção de energia. Sim, leram bem: 1999. A ideia visionária é do escritor Ernest Callenbach, no seu romance Ecotopia, publicado em 1975.

Da utopia à realidade, regressamos a 2024 e olhamos para um futuro, à mesma distância temporal entre o escritor e o romance, com uma visão muito semelhante no que à sustentabilidade diz respeito. 2050 é a meta para um mundo em que a produção de energia estará praticamente livre do carbono, com a transição completa para as energias renováveis e onde as comunidades e indivíduos terão um papel ativo na produção e gestão de energia. A isto, juntamos o armazenamento de energia, a eletrificação generalizada em todos os setores, dos transportes à indústria, e o aumento significativo da literacia energética. Estaremos a ser demasiado ambiciosos?

 

O cidadão como protagonista da mudança

Vamos regressar a Ecotopia, por momentos. A obra coloca o cidadão no centro de todas as transformações: as comunidades locais têm capacidade de tomar decisões e implementar práticas sustentáveis, demonstram uma consciência ambiental aguçada, adotam estilos de vida energeticamente responsáveis e fazem uso das fontes de energia renovável (e até de métodos agrícolas ecológicos). Ao estilo de um enredo de ficção científica, a descarbonização estará muito dependente do papel que cada um de nós irá representar, nomeadamente, através do autoconsumo individual e coletivo e das comunidades energéticas. Vamos descobrir mais?

Estamos em Guimarães. De acordo com os dados da E-Redes, esta é a região líder na instalação de unidades de produção para autoconsumo (UPAC), ou seja, que visam o autoabastecimento direto (industrial ou residencial). Qualquer um de nós, cidadãos residentes em Portugal, pode tornar-se num autoconsumidor, bastando, para isso, instalar uma UPAC e produzir a sua própria energia através de fontes renováveis, para consumo próprio, mas também para armazenamento ou venda. Mas, atenção, há regras a seguir, definidas em Diário da República.

O autoconsumo individual é, assim, o primeiro passo num longo caminho em que a geração de energia e o consumo tentam fazer o match perfeito. José Villar, investigador do INESC TEC, na área de sistemas de energia explica que, quando somos consumidores individuais podemos ter de injetar na rede a energia elétrica excedente (não consumida) ou ter de recorrer a fornecimento externo quando não conseguimos produzir o suficiente para dar resposta às nossas necessidades. No entanto, o preço que se paga pelo consumo é sempre mais elevado do que o que se cobra pela injeção. A solução pode passar, por exemplo, pelo autoconsumo coletivo (ACC), através da partilha de energia com um ou mais vizinhos. “No ACC, os consumidores partilham energia entre si, evitando, dessa forma, recorrer à rede, seja para injeção ou fornecimento de energia. Assim, o que começa como um acordo puramente financeiro, pode evoluir para uma realidade em que eu vou tentar ajustar o meu consumo para me adaptar ao fornecimento local ou vou gerir o meu excedente de energia através de baterias, para ser mais autossuficiente, quer individualmente, quer coletivamente a nível local”, exemplifica José Villar.  O ideal é que no ACC, os membros tenham comportamentos energéticos e perfis complementares: não adianta produzir excedente se ninguém consumir.

É assim que olhamos para o futuro: energeticamente conectados.

O conceito de ACC está, assim, na base das comunidades de energia: vários membros que se juntam para partilhar energia entre si. A grande diferença está no facto de as comunidades de energia terem de ter uma entidade jurídica (do tipo cooperativa ou sociedade participada).  E porque é que a energia é mais barata nestas condições? José Villar explica: “Os membros desta comunidade vão estar ligados por rede interna ou através da Rede Elétrica de Serviço Público. No segundo caso, as UPAC não podem estar demasiado longe das instalações de utilização (por exemplo, no caso de instalações ligadas à rede de distribuição de baixa tensão, 2 quilómetros de distância, ou, em alternativa, estar ligadas ao mesmo posto de transformação). A ideia é só pagar tarifas pela rede de distribuição usada, poupando as tarifas das redes com maiores níveis de tensão”.

Portanto, tome nota: pelo menos para já, se quer pertencer a uma comunidade energética, a proximidade física ou elétrica é essencial.

A “pergunta de um milhão”, segundo José Villar, é: se optar por um autoconsumo coletivo ou comunidade de energia? Por exemplo, a iniciativa Tools4AgriEnergy, coordenada pelo INESC TEC, e que está agora a arrancar, vai explorar a constituição de ACC nos setores agrícola, agropecuário e agroalimentar, aproveitando a energia produzida localmente para a redução dos custos energéticos, mas a decisão de se constituir uma Comunidade de Energia Renovável (CER) está ainda por ser tomada. “A nossa interpretação é que o ACC está mais pensado para prédios e condomínios e estruturas de autoconsumo coletivo mais simples. Por exemplo, num polo industrial fará mais sentido uma comunidade de energia, pois são sistemas mais complexos e heterogéneos. Não obstante, a regulação não é completamente clara nisto”, conclui.

 

Portugal precisa de literacia energética

O potencial das comunidades energéticas é enorme, mas a informação é dispersa. Para Tiago Soares, investigador do INESC TEC, há uma grande falta de literacia energética e financeira que está na origem de uma certa “aversão à mudança”. “Fala-se muito sobre as comunidades de energia, mas ninguém diz como as implementar e quais os seus benefícios reais. Não existe um elemento agregador da informação, que chegue junto das pessoas, como deveria ser os Gabinetes de Energia dos municípios. Além disso, a literacia energética da população portuguesa é muito diminuta, e muitas pessoas não estão dispostas a fazer um investimento inicial, porque procuram retorno imediato sem pensar a médio e longo prazo. Isto é flagrante no caso dos painéis fotovoltaicos: os nossos níveis de aceitação aumentaram quando começamos a ver mais casas equipadas. Infelizmente, outras não conseguem fazer o investimento inicial sem ajudas financeiras, muitas vezes difíceis de obter pelas exigências e burocracias existentes”.

Em 2021, o projeto DECARBONIZE procurou envolver o cidadão, enquanto utilizador final, com o objetivo de, por um lado, encorajá-lo a assumir um papel ativo na gestão e utilização dos recursos energéticos, e, por outro, sensibilizá-lo para o impacto social que resulta das suas atitudes individuais.

Mas é preciso mais!  Fazer parte de uma comunidade energética é a garantia de uma nova aprendizagem, pois é necessário estar atento a novos investimentos, a soluções de poupança e de eficiência energética. “Não adianta investir em centrais fotovoltaicas e eólicas megalómanas se as pessoas continuarem a ter consumos poucos adaptados ao recurso energético disponível. Veja-se, por exemplo, que as pessoas só começaram a ter consciência da importância do isolamento adequado após 2010, com a aplicação das normas europeias. Há que ter consciência que as comunidades energéticas não vão resolver todos os problemas. Temos de ser realistas. O passo mais importante é o autoconsumo individual e adaptar o nosso consumo a nossa produção”, refere Tiago Soares.

No filme “A Vila” de M. Night Shyamalan, um grupo de pessoas decide formar uma comunidade, vivendo isolados do mundo exterior para se protegerem. Spoiler alert: não resultou. Estamos longe de constituir exemplos perfeitos, e temos de estar preparados para abraçar as mudanças que aí vêm.

No filme “A Vila” acompanhamos uma comunidade que vive isolada. No mundo real (e perfeito!), queremos comunidades autossuficientes e ligadas entre si.

 

Chegar à meta, com muitas barreiras pelo caminho

As comunidades energéticas enfrentam obstáculos reais que vão muito além da vontade das pessoas. Os pedidos de licenciamento para o autoconsumo coletivo e comunidades de energia, em 2023, chegava quase aos 700. Há entidades que estão à espera de uma resposta da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) há mais de dois anos. Mesmo com algum apoio da ADENE – Agência para a Energia o processo arrasta-se, pela incapacidade de resposta. Mas este não é um problema circunscrito a Portugal.

“A regulamentação portuguesa é das mais ambiciosas e flexíveis. Mas a nível da implementação vamos muito devagar, pela questão burocrática e administrativa. Não obstante, isto também acontece noutros países, como Espanha, França ou Itália. No INESC TEC estamos envolvidos nas várias fases da constituição das CER, desde o estudo da regulamentação e propostas de melhoras, até ao desenvolvimento de tecnologia para a sua operação, como é o caso da plataforma de gestão de comunidades de energia RECreation, resultado dos desenvolvimentos no projeto DigitalCER – que está a servir de base para novos projetos. Portanto, temos uma visão bastante abrangente do processo e das dificuldades do mesmo”, acrescenta José Villar.

Mas não ficamos por aqui. É urgente que os operadores de redes de distribuição (na versão anglo saxónica DSO – distribution system operators) implementem procedimentos e mecanismos de partilha para que as comunidades energéticas sejam viáveis. A DGEG tem também a responsabilidade de desenvolver uma plataforma digital para facilitar todos os procedimentos relativos às interações dos agentes do sector com as administrações, tal como se indica no decreto do setor elétrico. Tiago Soares vai mais longe: “Por exemplo, há a obrigação, na construção de uma nova casa, a obtenção da classe energética mínima B- o que leva à necessidade de consumo de energia de origem renovável, isto numa lógica de autoconsumo individual. Havendo excedentes na produção fotovoltaica, sobretudo quando falamos de uma comunidade, os DSO não estão preparados para que toda a gente injete energia na rede. Esta adaptação demora tempo e custa dinheiro e somos nós que a vamos pagar na fatura da eletricidade”.

 

O futuro é autossuficiente

Há um enorme desejo, a nível europeu, de promover e incentivar as comunidades de energia renovável como parte integrante da transição para uma energia mais sustentável e para o envolvimento ativo dos consumidores finais. Para José Villar não há só um futuro e “todos os peritos no terreno da descarbonização sabem que há muitas soluções, e que são todas complementares, em maior ou menor medida”.

Para Tiago Soares, olhar para a autossuficiência energética[1] das pessoas pode ser um caminho interessante. Mas há pequenos gestos e hábitos que podem ser dados e que fazem a diferença. “É essencial apostar na eficiência energética. Somos mais eficientes, quanto menos consumirmos. E também é necessário mais apoios e linhas de financiamento para que as pessoas adiram à mudança e cumpram os objetivos da União Europeia para 2050”.

Feldheim é uma pequena cidade alemã totalmente autossuficiente em termos energéticos. Uma rede local, com painéis solares, turbinas eólicas e baterias de armazenamento que permite a esta comunidade ter das tarifas de eletricidade mais baixas em toda a Alemanha. Mas há mais exemplos e contam-se quase nove mil comunidades energéticas operacionais na União Europeia. Só nos Países Baixos existem cerca de 700!

O projeto InterConnect, o maior alguma vez liderado por uma instituição portuguesa – neste caso, o INESC TEC -, tem como objetivo desenvolver ferramentas avançadas para a digitalização do sistema elétrico Europeu, ligando casas e edifícios independente de marcas e fabricantes, numa lógica chamada interoperável. São mais de 36M€ e 50 parceiros que estão em causa para que estes objetivos sejam atingidos. Numa das open calls que o projeto abriu para que as empresas pudessem apresentar soluções digitais para edifícios e redes, um dos projetos vencedores tem precisamente que ver com comunidades de energia. Através da utilização e melhoria de uma plataforma, chamada IoT-DRACO, as comunidades de energia, na Eslovénia, vão ser monitorizadas e controladas ativamente, em tempo real, e com base em dados.

2050. Portugal emerge como um modelo de sustentabilidade e consciência ambiental e destaca-se pelas suas práticas ecologicamente responsáveis. Há redes extensas de ciclovias que ligam o país de ponta a ponta, todas as casas estão equipadas com painéis solares, os edifícios são energeticamente eficientes, incorporam materiais sustentáveis e têm um design amigo do ambiente. Todos os transportes são elétricos. (Lamentavelmente, ainda não temos carros voadores, pelo que pedimos desculpas antecipadas ao Ridley Scott, Luc Besson e Robert Zemeckis). As áreas verdes multiplicam-se, há uma crescente biodiversidade, o ar é puro. Todo o lixo é reciclado e vigoram políticas de desperdício zero. Vivemos em comunidades que foram (e são) catalisadoras desta revolução.

Contado assim, até parece ficção científica, mas se assumirmos o papel de protagonistas podemos ser os heróis e as heroínas da transição energética.

 

[1] A autossuficiência energética refere-se à capacidade de um sistema (residencial, industrial, urbano) produzir toda a energia necessária para o seu funcionamento, com recurso a fontes renováveis, sem depender de fontes externas.
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