O que é que um templo romano e a bitcoin têm em comum?

Durante o Império Romano, os sacerdotes que trabalhavam nos templos guardavam as poupanças dos cidadãos mais ricos. Os clérigos eram considerados devotos e honestos, motivo pelo qual lhes era confiada a guarda dos tesouros, já numa altura em que se usavam moedas de vários metais. Há registos de que estes mesmos templos também emprestavam dinheiro além de o manterem seguro. Este foi o início das entidades que hoje conhecemos como bancos.

Apesar de estas práticas terem sido realizadas noutras civilizações, o império romano foi o primeiro a mover os tesouros para edifícios próprios, criando inclusive leis que protegiam os banqueiros. A falta de cumprimento de pagamento era considerada crime, e Júlio César deu até permissão para que se arrestassem terras e propriedade àqueles que não pagassem o que lhes era devido.

Sensivelmente dois milénios depois continuamos com uma atividade bancária no seu cerne muito semelhante à do império de Augusto. Hoje como há 2000 anos, a atividade bancária está essencialmente assente nestes dois pilares: guardar e emprestar dinheiro.

Nesta atividade de ceder crédito aos seus clientes, os bancos têm de considerar vários fatores que podem impactar os seus resultados. Entre esses fatores está o risco associado, ou seja, a probabilidade de o investimento feito pelo banco resultar num cenário desfavorável para as suas contas.A tecnologia na medição do risco

Foi no âmbito da análise de risco que a Natixis, multinacional francesa da área financeira, procurou o apoio do INESC TEC para o desenvolvimento de uma solução que pudesse otimizar a análise de risco financeiro. “Os bancos como a Natixis acompanham determinados indicadores financeiros, que diariamente são analisados por economistas com o objetivo de encontrar algum valor atípico que possa, de alguma forma, indicar algum tipo de problema. Por exemplo, uma mudança brusca na taxa de câmbio entre duas moedas poderá despoletar valores atípicos nos indicadores de risco”, explica João Mendes Moreira, investigador do Laboratório de Inteligência Artificial e Apoio à Decisão (LIAAD) do INESC TEC.

O acompanhamento dos indicadores de risco é tipicamente feito por analistas financeiros, mas o grande volume de informação com o qual os bancos se deparam atualmente faz com que esta tarefa se torne demasiado morosa, como verificado pelo investigador na primeira interação com a multinacional francesa. “Os valores de indicadores ascendiam a mais de um milhão. Eram enormes quantidades de dados, o que representava um trabalho muito penoso para os analistas. O trabalho era feito de forma visual num sistema de informação que o banco possuía que obrigava os responsáveis por esta tarefa a percorrerem essa vasta lista de informação. Visualmente era um trabalho muito cansativo”, acrescenta João Mendes Moreira.

Foi precisamente o cenário descrito anteriormente que motivou o Banco a procurar um sistema tecnológico que fosse capaz de facilitar a análise de indicadores de risco. “Desenvolvemos um sistema que utiliza metodologias na área do machine learning e técnicas supervisionadas com o objetivo de tentar perceber variações indevidas dos indicadores de risco financeiro, mais associado a investimento financeiro de risco mais elevado, como derivados e outros produtos semelhantes”, finaliza o investigador. A tecnologia encontra-se a ser usada pelo banco, que comprou em exclusivo a solução tecnológica desenvolvida.

Neste exemplo, a tecnologia e a inovação serviram um propósito muito específico e tentaram resolver um problema que a banca enfrenta nos dias de hoje. Mas este foi apenas um exemplo da intervenção tecnológica no setor financeiro, ou seja, de fintech.

A tecnologia na redução de custos

Fintech é o termo resultante da junção das palavras finance e technology e representa a atividade financeira, incluindo as operações tipicamente efetuadas por instituições financeiras, com recurso a novas tecnologias que permitem oferecer os serviços de uma nova forma melhorada. A tecnologia na área financeira está por todo o lado e já não está apenas atrás do balcão. Aliás, quando foi a última vez que precisou de se deslocar ao balcão de um banco? As novas tecnologias impactam cada vez mais os clientes das entidades deste setor.

Em Portugal, o exemplo mais paradigmático foi o surgimento do serviço MBWay, uma aplicação para dispositivos móveis desenvolvida pela empresa SIBS que possibilitou o acesso a várias operações financeiras utilizando smartphones. A tecnologia rivaliza com os serviços oferecidos pela banca tradicional, uma vez que é capaz de realizar transferências apenas com recurso a um número de telemóvel e de forma instantânea e gratuita (dentro de alguns limites).

Este é apenas um entre muitos serviços financeiros que surgiram da integração das novas tecnologias. Paypal, Transferwise, Kickstarter, Venmo, Revolut, Apple Pay, Google Pay, ou até a portuguesa Raize, todos vêm impactando a vida dos seus utilizadores ao longo dos anos.

Com o principal objetivo de sensibilizar os reguladores e supervisores financeiros para a importância das novas tecnologias no setor, Paula Brito e Carlos Alves, investigadores do LIAAD e do Centro de Economias e Finanças da UP, respetivamente, colaboraram juntos no projeto europeu FinTech. “Estas novas tecnologias permitiram o surgimento de determinados operadores que vieram desafiar as instituições financeiras que estavam já instaladas no sistema, na realização de determinadas transações. Particularmente falamos de movimentos financeiros, transferência de dinheiro, realização de pagamentos, etc. É uma área em que mais facilmente novos operadores conseguem entrar”, refere Carlos Alves.

Apesar da tecnologia na área financeira não representar na sua maioria o surgimento de novos tipos de operações, traz certamente maior comodidade e custos de intermediação mais baixos. Estes custos são “um problema latente e patente, e o sistema financeiro está sempre a tentar encontrar formas de poder prestar os serviços que vêm sendo prestados por outros operadores”, acrescenta o investigador. Para a investigadora Paula Brito “as novas tecnologias vieram permitir tratar mais informação e mais rapidamente, o que vem também contribuir para a redução dos custos de intermediação”.

No entanto, não é apenas no surgimento de novos operadores que resulta a aplicação da tecnologia. Também a banca tradicional foi capaz de se adaptar. “A banca tradicional recorre hoje à tecnologia particularmente em dois níveis: no relacionamento com os clientes e na forma como os bancos operam internamente. Hoje já quase não se vai ao balcão de um banco e a digitalização dos processos veio permitir uma maior segurança nos procedimentos internos”, esclarece Carlos Alves.

Até mesmo o mercado de capitais pode vir a ganhar com a implementação de novas tecnologias, como o blockchain, que sendo uma tecnologia de registo distribuído, possibilita a realização e o registo de transações eletrónicas de forma similar aos registos contabilísticos “O blockchain pode ser muito útil no backoffice das operações. Não tanto ao nível das transações, porque atualmente estas já são feitas ao nanossegundo, mas no que diz respeito à liquidação das operações, à transferência de ações de quem vende para quem compra, à manutenção do registo de quem é proprietário. Penso que as tecnologias poderão vir a dar uma boa ajuda no futuro”, continua Carlos Alves.

Além de querer sensibilizar os reguladores e supervisores para a importância das novas tecnologias, o projeto propôs-se também a “nivelar o conhecimento dos diferentes reguladores, dar-lhes uma plataforma e competências para estarem em pé de igualdade ao nível tecnológico no exercício da sua função”, explica Paula Brito. Além da sua vertente científica, o projeto incluiu ações de formação que decorreram nas sedes dos reguladores dos vários países e onde se abordaram temáticas como Big Data, Inteligência Artificial e Blockchain. Em Portugal, as sessões decorreram na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários com a participação do Banco de Portugal e da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões.

A tecnologia na descentralização

“Um dos melhores casos de uso do blockchain são as criptomoedas. Conseguimos criar moedas como Bitcoin ou Etherium em que não existe uma entidade central que gere a emissão e a governação dessa moeda. Ela é completamente distribuída, ninguém tem que confiar em ninguém e as transações ocorrem entre cada pessoa que participa no sistema de forma quase imediata, com custos baixos”, indica Francisco Cruz, investigador do Laboratório de Software Confiável (HASLAB) do INESC TEC.

Apesar das grandes capacidades da tecnologia blockchain e das inúmeras tentativas de a aplicar para resolver diferentes problemas, grande parte destes projetos tem dificuldade em transpor a barreira entre o mundo real e o mundo digital. “Se usássemos blockchain para controlar a cadeia de abastecimento de um produto, poderíamos ter um registo fiável do seu percurso desde a sua origem, e poderíamos saber com certeza as suas características. Podemos de facto ter um registo imutável, mas como é que garantimos que o que foi escrito corresponde de facto ao mundo real?”, questiona Francisco Maia, também investigador do HASLAB.

Francisco Cruz e Francisco Maia desenvolveram uma carteira de criptomoedas chamada KeyRuptive. As carteiras de criptomoedas funcionam como uma conta bancária para criptoativos. No entanto, são muito diferentes em termos de segurança, uma vez que no caso das criptomoedas, o ónus da responsabilidade por manter o capital seguro é da total responsabilidade do detentor do mesmo, não havendo uma instituição que faça esse papel por nós. “Quando criamos uma carteira de criptomoedas, temos uma chave privada, geralmente composta por 12 palavras, que nos dá acesso aos nossos fundos. Se algum atacante tiver acesso a essa chave, ficamos sem o nosso dinheiro”, explica Francisco Cruz.

A história da Keyruptive começou em 2015, quando na altura submeteram um pedido de patente para uma tecnologia capaz de guardar dados de uma forma muito segura. No entanto, foi apenas em 2017 que decidiram usar essa potencialidade e aplicá-la a um problema que identificaram quando tomaram contacto com as criptomoedas. “Reparámos que um dos problemas que existia era o armazenamento da chave privada e nessa altura deu-se um clique. Nós tínhamos uma tecnologia de armazenamento de informação muito segura que envolvia distribuição de confiança, onde a informação é guardada em vários armazenamentos na nuvem”, conta Francisco Cruz.

Uma das formas de gerir as chaves privadas atualmente é usar um serviço que faz essa gestão, uma solução muito fácil de usar, mas muito pouco segura. No outro oposto está a utilização de carteiras físicas (uma espécie de pendrive) que são muito seguras, mas bastante difíceis de utilizar. A Keyruptive tinha como objetivo juntar o melhor destas duas abordagens. “Na nossa aplicação, a chave privada não está guardada em lado nenhum durante 99% do tempo. Não está no meu telemóvel nem está na nuvem. Só se materializa temporariamente quando se faz uma transação, e depois é desconstruída em informações distribuídas. Conseguimos ao mesmo tempo oferecer conveniência, porque é uma aplicação móvel e permite fazer transações sempre que quisermos, e segurança, porque mesmo que se perca o telefone ou que mesmo que um dos armazenamentos na nuvem seja comprometido, os fundos mantêm-se seguros”, explica Francisco Maia.

Seguiu-se o desenvolvimento de um protótipo e o levantamento de uma ronda de investimento. Apesar do mediatismo que envolve as criptomoedas, a vertente comercial do projeto trouxe alguns desafios. “Neste momento encontramo-nos numa fase em que estamos a tentar perceber qual é que será o melhor próximo passo. Se prosseguimos com a tentativa de lançamento da carteira com uma ronda de investimentos, se licenciamos a tecnologia para que outras pessoas possam desenvolver as próprias carteiras, ou licenciar para outros fins que não a carteira”, revela o investigador.

As criptomoedas vivem atualmente o seu hype. Existem muitos projetos, novas moedas e tentativas de realizar o sonho de um sistema de pagamentos universal, descentralizado, de baixo custo. “Existem também muitas fraudes e burlas, mas parece-me que tomar uma posição hoje sobre se as criptomoedas são boas ou más parece-me bastante prematuro”, declara.

O turbilhão de projetos surge na sua maioria da necessidade de ultrapassar alguns obstáculos que ainda existem no setor financeiro que, apesar dos avanços, apresenta ainda um nível de desenvolvimento tecnológico muito abaixo do existente noutros setores. “Parece-me ser muito cedo para saber se o caminho para lá chegar será é A, B ou C. Provavelmente é o Z, que nós ainda não vimos. Ainda estamos muito no início e provavelmente esse caminho Z vai englobar ideias deste movimento, ideias do setor tradicional. Provavelmente vamos assistir a uma fase de remodelação dos sistemas mais tradicionais que temos para gestão financeira”, continua Francisco Maia.

Também Francisco Cruz nos deixa as suas previsões para o futuro das criptomoedas. “Estamos a caminhar para um futuro com criptomoedas, mas que provavelmente serão regulamentadas e reguladas por bancos centrais e existirão simultaneamente ativos digitais como o bitcoin, que serão meramente especulativos. Acho que o bitcoin nunca será um meio de pagamento como foi pensado inicialmente. Será talvez uma reserva de valor, funcionando quase como o ouro no mundo físico atualmente. Provavelmente, os bancos vão começar a aproximar-se do mundo das criptomoedas e haverá possivelmente uma fusão entre os dois mundos.”

Apesar de ainda existir muito em comum entre a banca do século III e a que conhecemos hoje, os últimos anos trouxeram inovação a vários níveis. Usamos metodologias sofisticadas para avaliar o risco em vez de pedirmos a bênção dos Deuses sobre o capital emprestado. Os antigos templos são agora os smartphones na palma da mão. O futuro do sistema financeiro é uma incógnita, mas certamente que a tecnologia fará parte da revolução financeira que poderá estar para vir.

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