Salvar Vidas: Tecnologia no Comando

Da roda que permitiu que os humanos se espalhassem pelo mundo aos aspiradores autónomos que entretêm (e assustam) gatos, a tecnologia impacta a humanidade há já muitos anos. Mas quanta tem trazido benefícios diretos aos humanos?  

A tecnologia humana mais antiga de que se tem conhecimento foi criada há cerca de dois milhões de anos. É durante o Paleolítico que surge a primeira ferramenta de pedra. Uma rocha oval, lascada de um lado de forma a ter uma ponta mais aguçada. Foi utilizada em várias tarefas, nomeadamente no tratamento de carnes ou corte de plantas. Depois veio o fogo, a roda, sistemas de irrigação, navios, ferro, motores e a lista prossegue até aos dias de hoje. Onde a curiosidade foi, a tecnologia acompanhou. Humanos têm inventado desde que existem, mas é na segunda metade do século XXI que a expansão tecnológica é acompanhada de um outro boom – o da expectativa de vida.

Ilustração
Desde o fogo à roda, humanos têm inventado desde que existem.

Em 1850, na Europa, vivia-se até aos 30 e poucos anos. 100 anos depois, a esperança média de vida quase que duplicava.  Por exemplo, estima-se que invenções como fertilizantes tenham salvado mil milhões de vidas enquanto que sensores e dispositivos wearables salvam dois milhões todos os anos. A tecnologia prolongou a vida humana sem precedentes e ainda continua a fazê-lo.

No entanto, seria pouco prudente – e talvez um pouco inocente – não ver o outro lado da moeda.

A tecnologia tem sido amplamente criticada por várias razões: rouba vidas em acidentes, causa danos hediondos ao ambiente e já tem o poder de interferir no processo democrático através de anúncios. Se conseguimos calcular quantas vidas a tecnologia já salvou, fica a pergunta se algum dia conseguiremos calcular quantas a tecnologia ceifou (alguns pensam que um dia, ceifará todas).  Ainda assim, o ser humano não parece conseguir escapar à tecnologia, porque não consegue deixar de a criar. No INESC TEC há quem se foque plenamente na investigação e desenvolvimento de novas ferramentas que de várias formas salvam vidas, incluindo resgates marinhos. 

Resgatar náufragos de forma autónoma – o ICARUS 

O projeto ICARUS (Integrated Components for Assisted Rescue and Unmanned Search operations) chegou ao fim em 2016 e demonstrou que é possível resgatar náufragos de forma autónoma. De acordo com José Carlos Alves, investigador no Centro de Robótica e Sistemas Autónomos (CRAS) do INESC TEC, o projeto focava-se em desenvolver tecnologias que permitissem detetar e resgatar náufragos no mar. A equipa do INESC TEC desenvolveu uma plataforma capaz de, com a informação capturada por um leque variado de sensores, levar, de forma autónoma, socorro aos náufragos. 

O investigador desenha um cenário simples, mas com potencial devastador: imagine que há um acidente na água, por exemplo, um cacilheiro no Tejo que vira. Há dezenas ou centenas de pessoas que ficam espalhadas a boiar na água. Em situações deste tipo, a tendência é a dos náufragos agregaram-se em grupos. Agora, admitamos que está mau tempo, nevoeiro e é de noite; é difícil um barco resgatar pessoas nestas condições. É aqui que entra o sistema de salvamento baseado nas tecnologias desenvolvidas no projeto ICARUS. 

Existem quatro grandes personagens neste sistema de resgate: um centro de controlo, drones, uma embarcação autónoma (chamada ROAZ) que transporta um conjunto de pequenas embarcações, também elas autónomas que, por sua vez, carregam balsas salva-vidas insufláveis. 

Embarcação ROAZ
A embarcação autónoma ROAZ integra o sistema de resgate autónomo.

Primeiramente, o drone equipado com sensores térmicos deteta e localiza os náufragos a partir do calor emitido pelos seus corpos. Essa informação é enviada para um centro de controlo que mapeia e localiza os grupos. Esta foi a primeira parte do projeto: tornar automática a deteção das pessoas a socorrer.  

De seguida, entram as embarcações autónomas. Recebendo a informação, a embarcação transportadora das balsas autónomas define automaticamente um percurso que permite minimizar o tempo necessário para fazer chegar o socorro aos náufragos. Idealmente, todo o sistema de controlo define o percurso tendo em conta o estado do mar e as condições atmosféricas, especialmente o vento. As pequenas embarcações seguem o percurso traçado, comunicando em tempo real com o centro de comando e, chegando aos grupos de náufragos, designados lançam as balsas salva-vidas insufláveis. Ainda que toda a missão seja baseada em sistemas autónomos, há uma quinta personagem na narrativa: pessoas que monitorizam e controlam todo o processo em terra.  

“Há vários avanços que têm aparecido no mercado nesta área. Já há drones em praias que lançam coletes insufláveis para apoiar pessoas que estejam em risco. Mas são sistemas operados manualmente e que nunca foram integrados em sistemas autónomos de busca e salvamento para cenários de acidentes de grande dimensão,” acrescenta José Carlos Alves. 

A demonstração de um sistema autónomo de resgate é um primeiro passo de um desde já longo caminho em que tecnologia dá a mão à vida humana. Mas a tecnologia consegue fazer mais que salvar vidas – pode ainda ensinar os que salvam vidas. 

Treinos sem cheiro a esturro – o PERFECT 

Bombeiros passam por vários treinos antes de estarem prontos para combater chamas. Algumas dessas formações envolvem a criação propositada de fogos para recrutas apagarem. Isto envolve perdas financeiros, de recursos e até mesmo, ocasionalmente, perdas humanas – o relatório anual das fatalidades de bombeiros norte-americanos identificou 5 mortes em sessões de treino em 2019. O projeto PERFECT pretende contornar este cenário recorrendo à realidade virtual.   

O projeto surge alinhado no laboratório de realidade virtual do INESC TEC, o MASSIVE, onde as tecnologias estão a ser desenvolvidas. O objetivo é criar sessões de formação altamente imersivas em que o recruta, utilizando óculos, um headset imersivo e comandos consiga treinar missões de socorro. Ainda que esta descrição parece um jogo de Playstation, há um fator crítico que torna esta iniciativa única: apelar a quase todos os sentidos.  

“Nós não nos limitamos a entregar apenas estímulo áudio e visual. Temos utilizado uma tecnologia baseada num dispositivo de entrega de calor, de estimulação termoelétrica e também utilizamos dispositivos de aromas. Assim, como entregamos mais estímulos, a pessoa tem que processar mais informação e é possível o treino da tomada de decisão,” explica Miguel Correia Melo, investigador no Centro de Sistemas de Informação e de Computação Gráfica (CSIG) do INESC TEC. 

O dispositivo de estimulação termoelétrica referido é essencial para um treino muito específico que envolve a deteção do plano neutro nas portas de um edifício em chamas. O plano neutro é, essencialmente, uma linha numa porta: acima dessa linha a temperatura é drasticamente elevada (pode chegar aos 800 graus) e abaixo é seguro passar. Em situações de salvamento, o bombeiro coloca as costas da mão junto do fundo da porta e vai subindo vagarosamente até sentir uma diferença súbdita de temperatura. Aí é o plano neutro e só é possível entrar nessa divisão abaixo dessa margem. De acordo com Miguel Correia Melo, que tem colaborado com os bombeiros voluntários de Vila Real, é muito difícil simular esta questão em ambiente de treino real. 

“O dispositivo de estimulação termoelétrica que construímos é colocado nas costas da mão do bombeiro e permite que ele faça o procedimento todo em realidade virtual,” acrescenta. 

O que acontece na realidade imersiva é desenhado pelos investigadores no MASSIVE. Tudo parte de conversas entre os bombeiros e investigadores para que se identifiquem os exercícios mais viáveis e pertinentes de preparar em realidade virtual. Depois disso há um trabalho multifacetado: uma porção da equipa dedica-se à multimédia e criação de modelos 3D, a parte mais visual do processo, e a outra utiliza as ferramentas de engenharia e programação para desenvolver o software propriamente dito.  

Os componentes do set-up são como que marcadores que possibilitam que os algoritmos percebam quais são as extremidades da pessoa na sessão: os óculos, os comandos nas mãos, dois dispositivos nos pés e um na cintura.  “O algoritmo pega na informação dos marcadores e transforma-a num ‘esqueleto’. Depois esse ‘esqueleto’ é associado à malha diagonal – o objeto 3D de uma personagem – e conseguimos assim atualizar em tempo real o movimento da personagem 3D, que é, neste caso, um formando,” explica o investigador do CSIG.    

Ilustração de um homem a utilizar uns óculos de Realidade Virtual
Os óculos de realidade virtual integram o set-up utilizado pelos bombeiros aquando dos treinos

Pare além do set-up base que inclui os óculos, headphones e comandos, há outros componentes que podem adicionar ainda mais realismo à sessão. Os recrutas vestem a farda e é lhes fornecido um colete de circulação de água quente, que aumenta a temperatura corporal. Depois podem utilizar o dispositivo de mão referido acima, machados reais para simular ações e ainda garrafas de oxigénio para treinar a gestão de fadiga. As sessões de treino já revolucionaram o treino de futuros bombeiros, mas o objetivo nem sempre é substituir totalmente os treinos em cenário real. 

“Em alguns exercícios pode não fazer sentido substituir, mas sim complementar a formação em cenário real com formação em realidade virtual,” acrescenta Miguel Correia Melo. “No futuro queremos aumentar o realismo das simulações e queremos conferir ferramentas de autoria que permitam aos formadores criar treinos novos que se complementam uns aos outros.” Ainda que o PERFECT tenha acabado em junho deste ano, os investigadores envolvidos pretendem continuar. “Os bombeiros com quem trabalhamos têm todo o interesse em continuar com o trabalho”, remata.  

O projeto teve ainda o apoio de Susana Rodrigues, psicóloga e investigadora no INESC TEC, no Centro de Investigação em Engenharia Biomédica (C-BER), que considera que treinos em ambiente de realidade virtual são úteis e potencialmente eficazes. “A realidade virtual é uma ferramenta promissora nas mais diferentes áreas. Naturalmente que estes contextos virtuais devem ser suficientemente realistas, para que consigam causar no utilizador um sentimento de presença e imersão.” 

Mas e se depois dos treinos, na vida real, a tecnologia continuasse a prestar apoio monitorizando a saúde destes bombeiros? Em 2019, criou-se no INESC TEC a solução para esta questão e em 2021, investigadores vão limar as arestas.

Detetar vida para mantê-la – VR2MARKET

Se se perguntar a si próprio se o trabalho que desempenha é stressante, há uma probabilidade grande de responder que sim. E não estaria só. De acordo com um questionário colocado pelo Instituto Americano de Stresse, 40% dos inquiridos afirmam que o seu trabalho é muito ou extremamente stressante. E em ambiente de stresse, somos menos eficientes e cometemos mais erros. Mas se em algumas profissões um erro pode resultar num contacto de e-mail que não correu bem, no caso, por exemplo, de controladores aéreos ou neurocirurgiões o cenário é bem diferente. Há mais de 10 anos, surgiu uma ideia no INESC TEC para ajudar a monitorizar os sinais vitais destes trabalhadores. O objetivo? Ajudar na gestão dos recursos humanos e evitar erros. 

A linha de investigação VR (Vital Responder) teve três projetos consecutivos: o VR1, VR2 e VR2Market. Desde a sua conceção até 2019, as tecnologias foram testadas e foram bem-sucedidas. Duarte Dias, investigador do C-BER no INESC TEC, explica que há uma intensa cooperação entre os investigadores e profissionais como bombeiros, mas que a tecnologia pode ser utilizada noutros profissionais como trabalhadores de risco em petrolíferas, neurocirurgiões e controladores de tráfego aéreo. “Queremos trabalhar nos ambientes stressantes e perigosos, que de certa forma podem colocar a saúde dos profissionais em risco. Por exemplo, há bombeiros que desenvolvem cancro do pulmão porque estão demasiado tempo expostos a fumos. Temos inclusive um parceiro nos Estados Unidos, um bombeiro reformado, que apoia imenso esta iniciativa porque considera que este tipo de doença é evitável se os sinais vitais de socorristas forem melhor geridos,” conclui.  

Mas como é feita a deteção dos sinais vitais?  Os investigadores desenvolveram um sensor vestível, uma tecnologia agora patenteada, que se chama de Vital Sticker. É um dispositivo pequeno, sem fios e flexível com elétrodos cardíacos que medem o eletrocardiograma do utilizador. Aplica-se no peito da pessoa que se pretende monitorizar e, via Bluetooth, a informação é enviada para algoritmos patenteados que quantificam o stresse a partir dos dados cardíacos.  

Ilustração de um homem a utilizar o VitalSticker
O VitalSticker aplica-se no peito e, via Bluetooth, envia informação fisiológica para algoritmos patenteados que quantificam stresse.

“Para controladores aéreos, estas tecnologias podiam ser úteis para um supervisor de equipa perceber de forma automática e eficaz se algum membro se sente mal ou incapaz de prosseguir com o seu trabalho,” exemplifica o investigador do C-BER.  

Ainda que soe a um trabalho objetivo, aliar valores absolutos cardíacos com escalas de stresse subjetivas não foi tão simples assim. Para tal, surgiu a ajuda de uma outra área de conhecimento – a psicologia.

“Sendo o stresse um processo complexo e multidimensional, a análise isolada de variáveis fisiológicas por si não nos permite uma avaliação realista. Por isso, foi importante combinar variáveis psicofisiológicas, utilizando uma abordagem multidisciplinar,” explica Susana Rodrigues.   

Psicofisiologia é a ciência que estuda estruturas biológicas que regulam o comportamento humano. No VR2MARKET, para que fosse possível criar um algoritmo que deteta níveis de stresse a partir de níveis cardíacos, foi primeiro essencial perceber como é que o stresse se manifestava nos utilizadores. E para isso, utilizou-se um teste popular no mundo da Psicologia, o TSST (Trier Social Stress Test). Neste procedimento, os participantes são convidados a proferir um discurso perante uma audiência, durante três a cinco minutos e a realizar uma tarefa aritmética complexa (por exemplo, contagem decrescente de 1022 de 13 em 13 durante dois minutos), sendo que sempre que erram voltam ao início. A audiência não responde emocionalmente durante o teste, o que torna a situação stressante para os participantes. 

“Nas recolhas realizadas durante o VR2Market, para além da recolha de dados em contexto real, utilizávamos este procedimento [o TSST] para obter uma medida quantitativa de stresse, num ambiente controlado. Os participantes preenchiam questionários de stresse antes e depois da experiência, sendo monitorizados de forma contínua com os nossos dispositivos,” explica a psicóloga. Depois, profissionais de engenharia recorreram a técnicas de machine learning para desenvolver o algoritmo que o VitalSticker utiliza (a tecnologia ficou com o nome de Beat Stress). 

O projeto VR2Market foi um sucesso, mas a história não fica por aqui. Em dezembro prevê-se que comece um projeto europeu que dá seguimento a esta iniciativa e que vai aprimorar ainda mais as tecnologias com vista ao mercado. 

No INESC TEC há mais tecnologias para explorar. Nem todas procuram resgatar vidas de forma literal, mas o objetivo da investigação é fazer da inovação um aliado. Da rocha lascada do Paleolítico chegamos ao ICARUS, PERFECT e VR2Market. E ainda que um instrumento utilizado há milhões de anos seja tão diferente de embarcações autónomas, realidade virtual e sensores, o objetivo tem sido sempre o mesmo: servir a humanidade.  

Os investigadores mencionados no artigo têm vínculo à UP-FEUP e INESC TEC. 

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