Vai um mergulho até ao mar profundo? Desta vez, levamos robôs, sensores e fibra ótica

“O mar é tudo”. Palavras de Pierre Aronnax em “Vinte Mil Léguas Submarinas“, a obra literária de Jules Verne. Passaram mais de 150 anos desde que foram escritas pela primeira vez e não perderam o sentido. As visões futuristas de Verne inspiraram gerações de exploradores e cientistas, entre eles, Jacques Cousteau, oceanógrafo nascido em 1910. Verne trouxe a magia do mar para o nosso imaginário e Cousteau transformou o sonho em realidade, quebrando fronteiras com o Aqua-Lung, o primeiro equipamento de mergulho autónomo, ou o Calypso, um laboratório flutuante equipado com tecnologias avançadas como sonares ou câmaras, que permitiram a pesquisa e documentação detalhada da vida marinha.

Navegamos até 2024. Dos robôs submarinos (ROVs[1] e AUVs[2]) às tecnologias de observação e monitorização, o INESC TEC tem desempenhado um papel vital nesta área, reforçado por parcerias estratégias e pela participação em múltiplos projetos internacionais. Sabemos que a nossa investigação de vanguarda e tecnologias têm contribuído para aprofundar a exploração do oceano, em missões, do Ártico ao Brasil. Mas como é que os nossos robôs se orientam debaixo de água? Sabemos, até, que somos capazes de detetar atividade sísmica, através de sensorização acústica distribuída. Mas como funciona esta inovação tecnológica?

Melhores que o Professor Aronnax ou o Capitão Nemo, os nossos investigadores têm todas as respostas. Preparados para mergulhar nesta aventura?

 

Sabiam que temos fibra ótica espalhada por todo o oceano?

Se não acreditam, google it! Os cabos de fibra ótica no fundo do mar formam a espinha dorsal da internet global e são, também, uma aplicação crucial para a investigação subaquática. Para além disso, a tecnologia da fibra ótica é a base de muita da investigação do INESC TEC na área da medição e sensorização acústica. Sim, leu bem; a fibra ótica não serve apenas para transmissão de dados. Os primeiros passos foram dados pela investigadora Susana Silva, através da sua tese de doutoramento, sobre a utilização da fibra ótica para medir o índice de refração e deteção de gases numa distância de10 quilómetros (e que resultou numa patente). Hoje, percorremos mais uma dezena de quilómetros, e trabalhamos com sensorização acústica distribuída (DAS – distributed acoustic sensing, na versão anglo saxónica).

“Existem milhares de quilómetros de fibra ótica instalados em todo o mundo. O que fazemos, nos nossos projetos relacionados com o uso de cabos submarinos em fibra ótica, é usar a própria fibra como um sensor, para fazer medições acústicas, nomeadamente na área da sismologia. Nós transmitimos continuamente dados em forma de impulsos de luz ao longo da fibra ótica e, devido aos defeitos intrínsecos da fibra, parte desses impulsos são refletidos, ou seja, voltam para trás. Quando ocorre um evento, são propagadas ondas mecânicas que são sentidas pela fibra ótica, gerando uma perturbação local e, consequentemente, a variação da reflexão da luz. Os impulsos retro-refletidos transportam informação relevante sobre o evento decorrido. Isso diz-nos que naquele sítio e instante de tempo foi detetado algo que tem de ser identificado”, explica a investigadora.

Mas como sabemos que uma reflexão de luz corresponde a atividade sísmica? Junte à equação as perturbações inerentes a um cabo que parte da terra, como o movimento das ruas, dos carros e até da rebentação das ondas. Orlando Frazão, investigador na área da fotónica do INESC TEC, ajuda-nos a descomplicar: “Vamos usar como exemplo o cabo que parte da landing station da Madeira, com cerca de 50 km, e que é utilizado exclusivamente para fins científicos e de investigação.  Como nós conseguimos localizar a posição do cabo, também conseguimos, visualmente, identificar as alterações correspondentes a passagem de um carro – porque sabemos que naquele sítio está a passar por uma estrada – ou à rebentação das ondas – porque sabemos que naquele sítio o cabo entra no mar. A partir daí, é uma análise que fazemos em parceria com profissionais de diferentes áreas, como geofísicos ou biólogos, porque também apanhamos os sons das baleias, cachalotes ou golfinhos que têm frequências distintas. A Marinha Portuguesa também desempenha um importante papel ao ajudar-nos a identificar a passagem de um navio a uma determinada hora num determinado local”.

No fundo do mar, não se encontram apenas espécies aquáticas; há uma rede de cabos submarinos que liga o mundo inteiro.

 

Quando estes investigadores detetaram, pela primeira vez, atividade sísmica a longa distância na Ilha da Madeira, não foi propriamente um trabalho fácil. “Todas as semanas fazemos deteção de sismos, locais ou no meio do Atlântico. Já detetamos sismos na China e na Turquia. Mas o nosso interesse é ter a capacidade de detetar os locais onde os sismos ocorrem, sobretudo os de magnitude abaixo de 2,5 na escala de Richter. A vantagem? Se começarmos a detetar periodicidade de abalos, ainda que pequenos, num mesmo local podemos prever o surgimento de um sismo de maior magnitude”, acrescenta Susana Silva. O INESC TEC está, por isso, a ajudar a construir um futuro em que será possível prever com maior exatidão atividade sísmica. Evitar catástrofes está no horizonte, mas o caminho a percorrer é longo. “Quando recebemos os dados, através do DAS, eles têm de ser processados e filtrados, e este processo é demorado e requer técnicos superiores altamente especializados.  Atualmente, a análise de dados demora demasiado tempo para fazer um early warning. Portanto, a computação terá de ser potente e de alto desempenho, para permitir, de forma rápida e eficiente, o processamento de dados, aliado à capacidade de armazenamento de petabytes[3] de dados.  É de salientar que, dependendo dos parâmetros operacionais do DAS, nomeadamente frequência de amostragem e resolução, já é possível fazer aquisição de terabytes de dados por dia. Teremos de esperar pelos computadores quânticos que potenciarão o desenvolvimento de sistemas early warning associados à análise de grandes quantidades de dados”.

Orlando Frazão olha para a tecnologia DAS como uma oportunidade: podemos não evitar um tsunami, mas gerir danos colaterais, como incêndios (à semelhança do que aconteceu no terramoto de Lisboa em 1755), com um corte de luz prévio. No âmbito do projeto MODAS, está a ser feita a monitorização do cabo submarino nos Açores, entre a ilha do Faial e das Flores, não só através da tecnologia DAS mas também de boias meteoceanográficas, uma técnica standard para monitorização de diversos parâmetros, como temperatura, salinidade, pH, características da ondulação, para além de outros dados. A combinação das duas tecnologias vai permitir a recolha e a comparação dos dados na área da sismologia.

 

De Portugal para o mundo, do mar para a terra: o DAS sem fronteiras?

O projeto europeu SUBMERSE, que conta com 24 parceiros, entre os quais o INESC TEC, quer instalar unidades de DAS em três locais distintos – Noruega, Grécia e Portugal – para monitorizar os cabos submarinos. Pretende-se que estes três locais estejam ligados através de uma plataforma que está a ser desenvolvida, através da qual se podem aceder a dados em tempo real. Estamos, assim, a elevar a monitorização a um novo nível, com instalação de equipamentos e armazenamento de um enorme volume de dados, e com implicações na segurança relativamente ao livre acesso dos mesmos. “É um projeto ambicioso e muito complexo. A Noruega, por exemplo, faculta poucos dados e sempre muito bem filtrados. Porquê? Porque, pela sua localização geográfica, o DAS pode detetar dados que o Governo ou a Segurança Nacional não tem interesse em divulgar, como movimentação de embarcações militares. Há questões de segurança que têm de ser tratadas com muito cuidado, porque, no âmbito do projeto, vamos ter acesso a informação potencialmente sensível”, adianta Susana.

Do mar para a terra, a tecnologia de sensorização acústica já foi testada igualmente na ferrovia. “Além de cabos submarinos, existem os cabos terrestres que ligam o norte ao sul do país. Na ferrovia, essa monitorização pode ter grande interesse para a reparação da linha, para identificar paragens ou avarias, e até outro tipo de perturbações como o roubo de cobre. Ou seja, pode ter um papel muito importante na área da prevenção, e na área da monitorização dos comboios”, explica Orlando Frazão. Mas não ficamos por aqui! Nas linhas de Muito Alta Tensão (MAT) da Rede Elétrica Nacional (REN), os cabos de guarda com fibra ótica incorporada (conhecidos como OPGW – Optical Ground Wire), desempenham um papel crucial na proteção e monitorização da rede elétrica.  Através da tecnologia DAS, podem detetar descargas eletromagnéticas, a integridade dos vãos (distância entre dois apoios de uma estrutura) e ainda – imagine-se! –  quando as aves colidem contra as linhas MAT. A magnitude deste impacto nas populações de aves pode ser relevante, em particular no caso de espécies raras e ameaçadas. “O Orlando viu aqui uma excelente oportunidade para integrarmos a tecnologia, permitindo a deteção espacial e temporal, com maior exatidão, das aves que colidem contra as linhas. Atualmente, o método é 100% humano:  há zonas de prospeção visual de cadáveres de aves debaixo das linhas, no entanto, não corresponde ao valor real da mortalidade de aves por colisão porque algumas podem, por exemplo, ser levadas por predadores”, acrescenta Susana Silva.

 

Tão grandes quanto o necessário, o mais pequenos possível

Quando falamos em investigação do mar profundo, não nos podemos esquecer da robótica e, no INESC TEC, desafiamo-nos diariamente, para tornar os nossos robôs em instrumentos essenciais. Ou seja, podemos não estar focados em descobrir novos corais, mas os nossos robôs fazem parte do processo! Nuno Cruz, investigador do INESC TEC na área da robótica subaquática, revela, no entanto, que nem sempre precisamos de um end user para desenvolver determinadas ferramentas ou potencialidades. “Não estamos circunscritos a desenvolvimentos tecnológicos que foram definidos em sede de projeto. Por exemplo, um sistema de recolha de amostras de água pode ser usado para contabilizar a quantidade de sedimento transportado pela água do rio ou para recolher informação com interesse para biólogos.  A mesma tecnologia, aplicada a diferentes contextos”.

Isto pode explicar porque temos tantos robôs…e não só!  Além de veículos que navegam, desenvolvemos também sistemas robóticos que recolhem apenas dados e tecnologias – como um sistema de localização – que podem ser usados em robôs ou de forma independente. Temos robôs grandes e pequenos. Com cabo e sem cabo. Com maior ou menor autonomia. E, cada um deles, com diferentes sensores e objetivos. Ainda está desse lado?

Chamamos-lhes IRIS e NEO. Mas quando o tema é exploração subaquática, as soluções INESC TEC não acabam aqui.

“A maior parte dos veículos podem ser operados com cabo, o que representa vantagens ao nível do fornecimento de energia e da capacidade de resposta, porque temos ligação ao robô em tempo real e, logo, acesso imediato aos dados recolhidos.  Além disso, representa maior segurança: dificilmente perderemos o nosso robô. Desvantagem? Ninguém vai fazer uma trajetória muito longa com um cabo atrelado e nas missões em grutas, os cabos representam um perigo, pela probabilidade de ficarem presos. Veículos pequenos são mais leves e fáceis de operar, sendo apenas necessário um pequeno barco de apoio, mas limitados na capacidade de levar sensores ou energia a bordo, através de baterias. Portanto, qual a melhor solução? Depende do objetivo!”, esclarece Nuno Cruz.

Cenário: percorrer a costa, ao longo de 100 quilómetros, para estudar um parâmetro como a poluição da água. Precisamos de uma solução hidrodinâmica, pelo que o torpedo, que tem pouco atrito na água e gasta pouca energia para se mover, poderá ser a solução. Mas se o objetivo for mais do que conhecer a extensão da poluição, e forem necessárias medições específicas?  “Os torpedos estão pensados para andar sempre na mesma direção, e têm pouca manobrabilidade, por isso é que quase nunca são usados em inspeção.  Mas se a prioridade continuar a ser eficiência no movimento, então o ideal é equiparmos o nosso torpedo com os melhores sensores possíveis – câmara ou sensor de turbidez – mediante o pouco espaço que temos. Eu diria que queremos os nossos robôs tão grandes quanto o necessário, o mais pequenos possível”.

 

No mar não há GPS nem estradas: como nos orientamos debaixo de água?

Se é fã de James Cameron e já viu o filme O Abismo, o termo sonares não será totalmente desconhecido. No INESC TEC (ainda) não recuperamos nenhum submarino nuclear perdido, mas usamos esta tecnologia para navegação e localização dos nossos robôs. “Quando falamos em localização, há duas questões: o robô tem, ele próprio, de saber onde está, e nós, à superfície, também. Para a auto-localização, usamos os sonares, que são equipamentos autónomos que medem distâncias, como fazem os morcegos, enviando um som e esperando pelo eco. Convertem depois em distância o tempo que o som demora a ir e a voltar.  Portanto, o robô envia um sinal a uma boia para saber onde está, debaixo de água, e poder seguir uma trajetória. E à superfície, fazemos algo semelhante, com a emissão de um sinal que em resposta nos dará a localização do robô, em termos relativos”. Se todos os dispositivos estiverem sincronizados, basta definir quais enviam e quais recebem sinais, e já não é necessário esperar pelo eco do som emitido, usando a trilateração para chegar à localização. E se pensam que esta tecnologia de localização acústica está circunscrita aos robôs, desenganem-se. “Numa missão ao Brasil, usamos um conjunto de boias equipadas com GPS e um cilindro com emissor, que emitia todos os segundos, colocado nas costas de um mergulhador. Montámos um sistema que permitiu não só acompanhar a evolução do mergulhador ao segundo mas também o envio de um sinal especial, codificado previamente, quando o mergulhador encontrava algo de relevante, sem necessidade de vir a superfície, como acontecia no passado. E isto é realmente revolucionário. No caso, usamos a tecnologia para mapear corais, mas podia ser usada para outra coisa qualquer”, adianta Nuno Cruz.

Bússola, astrolábio, quadrante? Esqueçam estas tecnologias do passado. As nossas bóias com GPS vão orientar qualquer navegador perdido!

Há outras formas de obter a localização de um robô. Sabemos que o som demora cerca de 1 segundo a percorrer 1500 metros debaixo de água. Mas este é um valor estimado, e a velocidade média do som pode variar consoante o local e as condições. “No Porto, o som não se propaga como em Lisboa. À superfície não se propaga como no fundo do mar. Porquê? Porque temos de ter em conta valores como a salinidade, a condutividade e a temperatura da água que podem variar localmente e ao longo do dia. Junte-se o facto do som não se propagar em linha reta”, esclarece o investigador.

Recorremos, assim, a sensores adicionais como bússolas, sensores CTD (Conductivity, Temperature and Depth) que registam valores de condutividade, temperatura e pressão ou sensores DVL (Doppler Velocity Log) que medem a distância ao fundo marinho, mas também a velocidade do veículo e na coluna de água. Uma coisa é certa: quanto maior a liberdade dos nossos veículos, mais difícil é a localização, pois não há rotas pré-definidas; quantos mais valores conseguirmos recolher mais fácil será fazer um perfil completo.

 

Autonomia e eficiência: o novo paradigma da robótica subaquática

Há uns anos, ninguém se queria aventurar a navegar com os robôs junto a portos marítimos, por exemplo, mas, à medida que evoluímos e ganhamos confiança na navegação, passamos a usar os obstáculos como referência para nos orientarmos. Mas isto é só a ponta do iceberg daquilo que ainda podemos fazer, quando se fala de investigação subaquática. Para Nuno Cruz estamos, de facto, perante um novo paradigma: robôs mais eficientes e com capacidade de interpretar e filtrar dados. “O futuro passa por termos soluções robóticas com maior autonomia. Autonomia no sentido de irem mais longe e passarem mais tempo debaixo de água, utilizando menos bateria. Autonomia ao nível da capacidade de tomar decisões, funcionando sem supervisão. Queremos robôs capazes de detetar, interpretar e enviar informação sintetizada. Queremos trabalhar em cenários mais arriscados e complexos, como destroços naufragados.  Queremos usar veículos aquáticos capazes de carregar as baterias em docking stations debaixo de água, algo que já estamos a estudar com o projeto K2D”.

As modernas tecnologias de sonares, sensorização acústica distribuída e robôs submarinos são uma continuação natural do legado de Cousteau e a Comissão Europeia reconhece já o INESC TEC como uma entidade credível e na linha da frente da investigação nestas áreas.  Susana Silva, Orlando Frazão e Nuno Cruz: no INES TEC contamos com mais do que um Capitão Nemo[4] para nos conduzir em direção ao futuro.

 

[1] Na versão anglo saxónica Remotely Operated Vehicles, ou seja, veículos operados remotamente, com cabo e controlados a partir de uma estação na superfície.
[2] Na versão anglo saxónica, Autonomous Underwater Vehicles, ou seja, veículos submarinos autónomos, que não precisam de um operador humano direto.
[3] Um petabyte corresponde a 1024 terabytes.
[4] Personagem de ficção, dos romances de Jules Verne, que conduzia o submarino Nautilus tendo feito importantes descobertas científicas no fundo do mar.

 

Os investigadores mencionados nesta edição do Spotlight têm vínculo ao INESC TEC e à UP-FEUP.   
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