No gabinete de José Nuno Oliveira há muita memória. Professor e investigador, há mais de 40 anos que se move entre laboratório e sala de aula. Em Braga, integrou um grupo de gente inquieta e a transbordar de ideias que encontrou na sua aproximação ao INESC uma “razão de ser”.
José Nuno Oliveira é muita coisa, mas na “próxima encarnação” já ficaria satisfeito se desse só em arquivista. Como não aconteceu nesta, guarda muita da pegada e memória histórica de uma instituição no seu gabinete: há caixas de cartão empilhadas, pastas catalogadas e resmas de papel a ocupar boa parte de um escritório amplo, dado ao sol. Uma das pastas tem uma convocatória que diz assim, em forma de título: “Centro de Ciências e Engenharia de Sistemas, reunião do Grupo de Ciências da Computação”, a acontecer pelas 10h30 na “cozinha da D. Pedro V”, num dos prédios que a Universidade do Minho ainda habitava em 1984, antes de se agrupar em Gualtar.
José estava lá. Regressado nesse ano da Universidade de Manchester com mestrado e doutoramento, junta-se a um grupo em ebulição. Naquela cozinha, havia gente a “tentar encontrar uma razão de ser”, em busca do melhor terreno para passadas firmes. Está tudo documentado nas atas dessas reuniões desse grupo liderado pelo colega e amigo José Manuel Valença, tidas num espaço que, apesar do nome, servia “funções mais orientadas ao intelecto que ao palato”. Havia entusiasmo, procurava-se “massa crítica”, mas o país visto a partir da “aldeia gaulesa” parecia demasiado distante. Seria o INESC a direcionar a motivação desta mão cheia de investigadores e professores – esta é a história de uma ligação que nasceu duas vezes: teve “duas encarnações”, resume José Nuno Oliveira.
Mas não haveria cozinha sem matemática. Antes do INESC nascer, nos anos 70, apaixona-se por essa disciplina, mas é na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), no curso de Engenharia Eletrotécnica, que acaba por ingressar. Em 1978, começa um percurso cheio de somas: uma semana depois de acabar a licenciatura é aceite no Minho e usa as férias de verão para preparar as aulas para o próximo semestre. Em 1980 segue para Inglaterra para se dedicar à teoria da computação ao abrigo de um programa acelerado de formação de quadros. É neste triângulo Porto, Braga e Manchester que esquadra uma carreira de investigação e docência que já leva mais de quatro décadas.
“Quando comecei, aprendi muita coisa, mas sobretudo aprendi, naqueles anos no Porto, o sentido do rigor. Ou seja, a entender a matemática como prestadora de um serviço que é essencial, pois é com ela que prevemos o comportamento daquilo que vamos fazer como engenheiros – a sua qualidade e fiabilidade vêm exatamente dessa matemática”, explica. E isso não podia casar melhor com alguém que “gosta de fazer coisas” – mas não gosta de as fazer “de qualquer maneira”.
Quando tudo era mais “ligeiro”
Iniciado em Inglaterra no estudo de métodos formais, usados para conceber software com muita qualidade, ou seja, com garantia de correção, considera-se “investigador e professor”, e encontra a razão do seu ser no laboratório e na sala de aula. Com pouco interesse pela burocracia académica, teve a sorte de encontrar bravos “timoneiros” como José Manuel Valença, que liderava um grupo que fazia muito mais do que se sentar à mesa (de cozinha ou não) para discutir o que fazer. Naqueles tempos, em Braga, lutava-se pela afirmação pedagógica, criavam-se cursos e novas disciplinas para romper com o “acanhado” meio académico nacional da altura. Não havia medo – “hoje há mais”, pontua –, mas sim uma inocência diligente.
“Estávamos na ciência de uma forma muito diferente. Não publicávamos nada, mas aprendíamos a uma velocidade incrível. Hoje há muita burocracia na ciência, naquele tempo era tudo muito mais ligeiro”. A título de exemplo: “se agora é preciso ter um plano de contingência na candidatura a um projeto, para o caso de algo correr mal, nós não queríamos saber disso. Estávamos só à espera de uma oportunidade para pôr em prática o que ensinávamos aos alunos na sala de aula, que no meu caso era o uso de métodos formais”, recorda José.
É aqui que o INESC entra na história. José Nuno Oliveira raramente falha numa data neste relato e é lesto a encontrar a ata ou o documento que atesta a verdade do que vai dizendo – “por sorte, como tenho ideias de constituir um arquivo, tenho tudo aqui mais ou menos organizado”. Percorre com o indicador uma nota acerca de uma reunião em Lisboa, em 1987: “este aqui é o início da nossa ligação ao INESC”, um período “muito interessante”, que se estende até meio da década de 90.
Uma missiva urgente e uma paragem no Luso
A assinatura formal chegaria em 1989, precedida por uma paragem estratégica no Luso, num encontro de INESC’s; mas é naquele encontro no INESC Lisboa entre Lourenço Fernandes, José Manuel Valença e Amílcar Sernadas – que liderava na capital um grupo empenhado em introduzir técnicas semelhantes de raciocínio na programação – que a futura “malta de Braga” reserva o bilhete de entrada no universo INESC. Faltava só a rubrica, mas, como José Nuno Oliveira já escreveu, “a realidade tinha-se já antecipado à formalidade” – desta feita, via fax.

Segura-o na mão. Do Largo do Mompilher, o professor Vladimiro Miranda faz chegar ao grupo de Ciências da Computação da Universidade do Minho uma mensagem “urgente!” – está mesmo assim, em letras garrafais, na cópia onde pousam os olhos de José. Começa: “Zé Nuno, telefona-me com urgência ou faxa-me”. O motivo? Perceber se havia interesse em participar, “através do INESC”, num projeto Eureka com a italiana Olivetti. “Era o que estávamos à espera durante todo este tempo, a oportunidade certa para testar aquilo em que acreditávamos”. As viagens ao Porto tornam-se mais frequentes e ainda tem bem presente a “simpatia máxima” com que Regina Freitas, a cara que com mais saudade guarda do INESC Porto, os recebia.
Nesta primeira “encarnação” da ligação Braga-INESC, esse projeto Eureka escancara a porta para um grupo, que acreditava numa engenharia informática fundamentada na matemática, crescer. “Demo-nos logo bem neste ecossistema, as grandes oportunidades são criadas através de institutos como o INESC. No meu caso, esta ligação à indústria ajudou-me a ser melhor professor e ensinar com mais confiança”. E mais: a ligação serviu ainda para alimentar a convicção de que as ideias que corriam naquele grupo a norte do Porto estavam certas. “Porque uma coisa é ensinar nas aulas, outra é aplicar; é chegar ao terreno e conseguir marcar pontos exatamente porque se pensou assim. E, felizmente, tenho muitos exemplos desses”.
Um laboratório e gentes confiáveis
Junto dos exemplos guardados cuidadosamente estão também pistas acerca da “segunda encarnação” da ligação da malta de Braga ao INESC – desta vez, ao INESC TEC. Entre 1989 e 2012, quando é assinado um novo protocolo de colaboração, a ligação formal foi esmorecendo. A reaproximação acontece com a criação do Laboratório de Software Confiável (HASLAB), hoje uma das unidades de investigação descentralizadas do Instituto. Recentemente, foi assinado um novo compromisso para formalizar o polo do INESC TEC na Universidade do Minho.
Sempre leal ao cálculo e aos métodos formais, reconhece que o trabalho de lápis e papel não é o mais atrativo na informática. Mas a “projeção” das áreas em que os mais de 150 investigadores com ligação ao HASLAB trabalham é, no entanto, “grande”. José Nuno atira, amparado por um sorriso, que os informáticos gostam mais de estar “ao piano”. “As pessoas às vezes pensam que só quando os dedos tocam nas teclas é que estão a programar. Não. Um programa pensa-se. E há técnicas para pensar programas, sendo preciso ensinar a saber pensá-los”.
É também isso que reforça nas aulas, um palco onde se sente confortável. Ainda vai juntar mais algumas às milhares que ficaram para trás. A aposentação pode estar perto, mas está “completamente disponível para continuar a ensinar” – pois “não há melhor forma de perceber se realmente entendemos o que achamos que sabemos”, defende. Talvez seja por isso que recentemente entrou num projeto com a associação ENSICO que quer levar o mundo binário da informática aos mais novos. “Isto começa logo no primeiro ano, adotamos o princípio de que a computação se aprende sem computadores”. O verdadeiro ensaio faz-se com papel e caneta.
“A malta de Braga está bem” – e recomenda-se
Não foi na academia de Braga, em 1978, a primeira vez que fez uso do “palco”. É que a correr em paralelo à licenciatura em engenharia eletrotécnica estavam as cordas de um instrumento que gosta de atenção e que estudava na Escola de Música do Porto. É aí que dá as suas primeiras aulas (noturnas) de teoria musical para ajudar a pagar esse estudo, que deram traquejo para um percurso a acumular inquietações e respostas.
A música continuou sempre por perto. E se deixou de convergir na sala de aula, houve sempre espaço para ela fora dela. Por agora, já só se fica pela “afinação” do violino, mas o interesse pela música é contínuo. Depois do laboratório e da universidade, é na natureza que gosta de estar.
O plano passa por continuar bem apoiado nesse tripé: natureza, universidade e música. Enquanto se move neste triângulo, documenta, qual “arquivista frustrado”, uma grande parte da história de como uma universidade e um instituto de interface fizeram frente às “impedâncias” naturais de um caminho conjunto. No futuro, gostava de organizar o arquivo que mostra, neste caso, o que um instituto, uma universidade e toda a gente que se move em volta deles, fizeram pela modernização do país. Talvez até uma exposição que venha a mostrar que “a malta de Braga” está “bem e recomenda-se”, e “muito satisfeita com a ligação” ao INESC TEC.
“Os documentos mostram que este percurso é feito por muitas pessoas, e neste caso muitas delas contribuíram efetivamente para esta ligação. Eu tive a sorte de lidar com elas e de essas pessoas me pouparem e me deixarem investir na sala de aula e no laboratório. Chegámos aqui, a um grande instituto e a uma grande universidade, por causa delas. Uma organização que não tenha consciência da sua história não sabe bem quem é nem se apercebe do seu real valor. Mesmo que essa história tropece em erros”, sublinha.