Quem Planta Ideias, Colhe Soluções

Num futuro não muito distante de Christopher Nolan, as escolas focam-se em educar agricultores ao invés de engenheiros. É um planeta que luta por alimentar milhões de bocas e que não o consegue fazer porque o clima já não coopera com a agricultura praticada desde há séculos. De uma forma ou outra, o filme Interstellar retrata um panorama que se torna, década após década, mais semelhante à realidade.  

Mesmo que futuros acordos climáticos sejam cumpridos à risca, há consequências que são inevitáveis. O nível médio do mar vai subir e esperam-se eventos climatéricos intensos como cheias e secas. Estes acontecimentos vão impactar habitats de milhares de espécies e a forma como se alimentamcomo é o caso do ser humano. Afinal de contas, a FAO prevê que para alimentar a população em 2050, a humanidade tenha que aumentar a produção alimentar em 70%. São números elevados e um tanto ou quanto inatingíveis quando falamos de zonas agrícolas pouco resilientes a alterações climatéricas.  

Duas pessoas a olhar para o espaço numa fazenda.
De uma forma ou outra, o filme Interstellar retrata um panorama que se torna, década após década, mais semelhante à realidade da agricultura mundial.

A situação em Portugal

“No futuro próximo, prevê-se que em Portugal suceda um aquecimento médio no final do século XXI de 2.5 a 4 °C,” explica Mafalda Pereira, engenheira agrónoma e investigadora no INESC TEC. “Estas modificações têm diversos impactos na agricultura e nos ecossistemas agrários.” 

No início do milénio, uma equipa da Universidade de Lisboa conduziu estudos que avaliaram os impactos das alterações climáticas em vários setores, incluindo a agricultura. A equipa concluiu que o cenário climático futuro será mais quente e seco. Concluíram ainda que, à exceção das pastagens e forragens, todas as culturas apresentam uma diminuição de produtividade. Portanto, o mesmo esforço, a mesma prática de agricultura, mas menos alimentos. E o problema é que há cada vez mais portugueses. A população portuguesa está a aumentar, ainda que levemente. Um cenário futuro com mais bocas e menos produtividade agrícola é provável e preocupante em várias regiões do país, incluindo a zona do Douro. 

“Na região demarcada do Douro, onde se registaram aumentos na temperatura máxima e mínima, períodos de seca extrema e precipitações fora de tempo (em junho e julho), criam-se condições para o aparecimento e propagação de pragas e doenças,” explica a investigadora.  

No entanto, os cientistas apontam uma importante conclusão: como a produtividade não depende só de fatores climáticos, agricultores podem e devem adaptar-se para reduzir os impactos negativos da mudança climática. Uma das estratégias de adaptação passa por conhecer as culturas como ninguém — de modo a cultivá-las como ninguém. É neste ponto que começa a história do Metbots. 

O Metbots

“O clima que temos hoje não é o mesmo clima que tínhamos há 20 ou 30 anos. Consequentemente, precisamos de estudar como é que este clima influencia a fisiologia das plantas. A partir do momento que conseguimos perceber o funcionamento da fisiologia da planta no campo, conseguimos contornar e talvez atuar de forma preventiva,” Renan Tosin, engenheiro agrónomo e investigador do INESC TEC.  

Renan Tosin faz parte de uma equipa multifacetada que criou uma plataforma móvel para monitorização metabólica de plantas e frutos. O pequeno dispositivo integra sensores que fazem medições de espetroscopia para extrair informação sobre o metabolismo e a fisiologia da planta. Num dos mais recentes testes na região do Douro, a tecnologia foi colocada num robô que percorria uma vinha autonomamente, recolhendo dados. 

“No fundo, levamos o laboratório para o campo com um método não destrutivo,” acrescenta o investigador do Centro de Robótica Industrial e Sistemas Inteligentes (CRIIS) do INESC TEC. 

Um dos parâmetros essenciais de analisar para inferir a saúde de uma videira é o seu estado hídrico. A metodologia utilizada mundialmente é laboriosa — agricultores têm que, muitas das vezes, fazer a recolha de amostras antes do nascer do sol — dispendiosa e impossibilita que se faça o mapeamento da vinha toda. De acordo com o investigador, este método utiliza uma folha saudável de videira que é colocada numa câmara que pressiona a folha até que esta expulse seiva. A partir desse momento, é medido um valor de pressão que permite que se estime o estado hídrico da videira. O Metbots permite o cálculo do estado hídrico da vinha utilizando uma estratégia não destrutiva. 

“Os pigmentos foliares, como a clorofila e os carotenos, funcionam como um intermediário da informação hídrica da videira. Ou seja, podemos estimar o potencial hídrico de base estimando esses pigmentos. Utilizando informação espetral adquirida pelo Metbots, conseguimos fazer uma estimativa desses pigmentos, e a partir daí estimar o estado hídrico da videira. Podemos também estimar outros indicadores bióticos e abióticos e ainda estabelecer uma relação de causa-efeito,” explica o investigador. 

“O equipamento vem revolucionar esta área. Com estas informações biológicas, vamos estudar e compreender o que é que as práticas agrícolas e as alterações climáticas fazem ao nível celular e metabólico da planta,” acrescenta Rui Martins, também investigador do INESC TEC, mas do Centro de Fotónica Aplicada (CAP), e membro da equipa do Metbots. 

Pessoa a segurar num dispositivo e a apontá-lo para uvas.
O sistema automático de espectroscopia recolhe informação metabólica da fisiologia da planta.

A tecnologia que integra o Metbots foi, com a ajuda do Serviço de Apoio ao Licenciamento do INESC TEC, protegida por vários direitos de propriedade intelectual a nível internacional, incluindo patentes nos principais mercados mundiais. Desta forma, permite-se a divulgação da tecnologia salvaguardando os interesses do instituto, mas potenciando a colaboração e valorização económica dos esforços e dos resultados de investigação e desenvolvimento. No entanto, para que uma ideia se torne em tecnologia comerciável, há um longo percurso a percorrer. Para tornar o percurso mais célere, em 2014 surge o TEC4AGRO-FOOD, uma das Iniciativas TEC4 do INESC TEC, uma nova abordagem organizacional que visa estruturar o processo de inovação market-pull, em oposição ao science-push que ocorre naturalmente nos centros de investigação e desenvolvimento. O Serviço de Apoio ao Licenciamento e o TEC4AGRO-FOOD colaboram juntos para aumentar as probabilidades de sucesso de certas tecnologias, levando-as do instituto à sociedade. Neste caso, é o Agro-Alimentar e Floresta que ressaltam.  

Da semente à comercialização  

As grandes oportunidades de comercialização da tecnologia para o agro-alimentar e floresta no INESC TEC surgem de várias formas: há quem se candidate a financiamento tradicional, há quem faça parcerias com empresas já conhecidas e depois há quem fale de sonhos.

Um dia, André Sá, business developer no TEC4AGRO-FOOD, estava na sede da ADVID (Associação de Desenvolvimento da Viticultura Duriense), uma associação da qual o INESC TEC faz parte. Lá, encontrou-se com um membro do INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária) que estava prestes a reformar-se e dizia que detestaria reformar-se sem ver um dos sonhos dele concretizados.   

“Eu estava ali e perguntei pelo sonho. Ele disse ‘Conseguir identificar as castas das videiras através de uma imagem, porque nós fazemos isso hoje em dia com conhecimento das pessoas. Não está aqui nenhuma tecnologia envolvida.’ Eu disse ‘Bem, isso é interessante.’ Saí daquele grupo e fui falar com a própria ADVID que representa o setor vitivinícola e eles disseram que isto é um sonho de todos.” 

Depois da conversa, André Sá conversou com um investigador INESC TEC da área da robótica e Internet of Things, que estava confiante de que existiria tecnologia no instituto a aproveitar. O sonho poderia ser concretizável, mas faltava ainda um elemento chave – a empresa tomadora de tecnologia. “O INESC TEC faz protótipos, não faz produtos nem serviços. Nós, com o utilizador final, recolhemos as necessidades e desejos, podendo desenvolver consultoria avançada, mas é com as empresas tomadoras de tecnologia, com o qual completamos o triângulo da inovação, que desenvolvemos as tecnologias” explica o business developer. 

Triângulo azul com legendas nas três pontas. Na de cima, diz "utilizadores finais", na do lado esquerdo diz "empresas tomadoras de tecnologias" e na do lado direito diz "INESC TEC"
Triângulo da inovação no INESC TEC.

O triângulo da inovação inclui o utilizador final, neste caso o viticultor ou a empresa de vinhos, a academia (em sentido lato) e empresas tomadoras de tecnologia com as quais o INESC TEC desenvolve a tecnologia e que depois entregam o produto/serviço ao utilizador final. Eu tinha reunido umas semanas com uma empresa de visão artificial e telefonei ao gerente. Disse-lhe que tinha aqui algo que parecia interessantíssimo, já que andava interessado a entrar no setor agro-alimentar e floresta. Com ele, talvez tivéssemos o triângulo completo.” 

A concretização do sonho – o INCAFO

Após recorrerem a um programa de financiamento, captação de mais parceiros e submissão de candidatura, arrancou o projeto INCAFO – Identificação de Castas através da Folha, um projeto orçamentado em mais de meio milhão de euros. Tal como idealizado na sua conceção, investigadores aquando do INCAFO vão investigar e desenvolver uma ferramenta expedita, económica e acessível a qualquer vitivinicultor para a identificação de uma ampla gama de variedades de videira.   

“Isto serviria para muita gente. Tenho um amigo que herdou uma quinta e que gostaria muito de ter uma forma de perceber o que é que ele tinha na sua vinha. Conseguires chegar lá com um smartphone e estar a ‘pistolar’ as plantas para identificação seria muito rápido,” acrescenta André Sá.  

“Para além das aplicações móveis, iremos recorrer a técnicas avançadas de processamento de imagem e de ‘machine learning’ como tecnologias principais do sistema INCAFO. Estas tecnologias irão permitir a automatização do processo de classificação da variedade a partir das imagens recolhidas pela aplicação móvel,” acrescenta Tatiana Pinho, investigadora no CRIIS. 

Folhas de videira
Investigadores vão desenvolver uma ferramenta que permite a identificação rápida de castas de videira.

No fim do projeto, o business developer intervém para estudar a valorização dos resultados. O grande objetivo da estratégia de transferência de tecnologia no INESC TEC é evitar que protótipos fiquem pelas prateleiras dos investigadores e se mantenham inutilizados. Por isso, há mais iniciativas que se esforçam por resolver problemas da vida real. 

Cultivar com precisão milimétrica — o Smart Fertilizers

Em 2018, a Herculano, empresa que faz equipamentos agrícolas como cisternas e alfaias queria desenvolver uma cisterna inteligente — uma cisterna que aplicasse chorume como fertilizante na quantidade absolutamente necessária, no momento certo e no local certo. Para tal, precisava de ajuda tecnológica. De acordo com André Sá, os sensores que estavam em causa tinham um valor comercial incomportável face ao valor da cisterna. O INESC TEC conseguia desenvolvê-los a um valor competitivo. A colaboração tornou-se óbvia, mas nem sempre o foi. “Fomos reunindo e a Herculano foi percebendo que seria uma parceria frutífera,” explica. 

Da necessidade de criar a cisterna inteligente, surgiu o projeto Smart Fertilizers.  Investigadores aplicaram tecnologia sensorial e de automação numa cisterna, que retira uma assinatura espectral do chorume, para obterem uma estimativa da quantidade de cada nutriente relevante, como nitratos, fósforo e potássio.  “Depois, basta compreender quanto é que um certo local realmente necessita para que a cultura cresça de forma saudável e com máxima produtividade,” explica Filipe Neves dos Santos, investigador do Centro de Robótica Industrial e Sistemas Inteligentes do INESC TEC e líder do projeto. “Em detrimento de um trator que a aplica de forma uniforme, teremos uma máquina que vai ajustar a aplicação de acordo com a real necessidade daquele local.” 

Esta é uma estratégia de agricultura de precisão inteligente e a tecnologia já está no mercado. “Criámos um produto que já está em catálogo. Já foi vendido? Ainda não, mas está encomendado por agricultores. Para mim, tudo isto estará fechado quando vir um agricultor a utilizar esta cisterna no terreno,” remata André Sá. “Isto não é a curto prazo. Um potencial de desmotivação é que os projetos não cheguem a um produto que depois chegue ao consumidor final.” 

A longa luta de colher soluções

Há outros fatores de desmotivação que podem afastar investigadores da transferência de tecnologia. O facto de que, para patentear uma certa inovação, há que mantê-la secreta por uns tempos, o tempo que estes processos podem demorar e ainda a ausência de incentivos quando se fala de processos de avaliação de investigadores que dão do seu tempo à causa. Há ainda uma clara diferença nos mindsets. “Empresas e academia têm formas de pensar diferentes. Uns pensam primordialmente em publicações e projetos, os outros pensam em euros. É muito diferente,” diz André Sá.   

Tudo isto contribui para que nem todos os investigadores se foquem em levar as suas descobertas ao mercado, e para Bruno Santos do Serviço de Apoio ao Licenciamento do INESC TEC, sem este passo, ficam todos a perder. “A transferência de conhecimento e tecnologia deve ser uma das principais missões de um instituto como o INESC TEC. A propriedade intelectual funciona como uma ferramenta essencial que permite formalizar ativos intangíveis e facilitar a sua transferência e adoção por parte da indústria, sem a qual o conhecimento gerado não atingiria o seu impacto máximo.” 

Robô desenvolvido no INESC TEC. Tem quatro rodas e um braço robótico para apoio em vinhas e outros terrenos agrícolas.
Vários robôs e tecnologias constituem o portefólio de trabalhos INESC TEC que fundem agricultura e inovação.

“Sou uma defensora da fusão da tecnologia com a agricultura. Acredito que esta abordagem fornece (e fornecerá) muitas potencialidades que permitirão alavancar as atuais práticas agrícolas,” acrescenta Mafalda Pereira. “Com técnicas apropriadas (combinando softwares, sistemas e equipamentos), é possível gerar e analisar grandes volumes de dados, tornando a rotina do produtor agrícola mais ágil, autónoma e integrada.” 

Num futuro distante ou próximo, o ideal é que tanto engenheiros como agricultores continuem a ter valor e que esse valor seja fortificado com colaboração e inovação. Se alimentar todas as pessoas na Terra em 2050 exige um aumento estrondoso na produção alimentar, então a humanidade não se pode dar ao luxo de deixar inovação na prateleira.  

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