Transição energética: é agora ou nunca 

Incêndios, cheias e furacões, secas e nevões são cada vez menos impressionantes, mesmo apesar da destruição que causam em todo o mundo. São episódios que estão muito frequentemente na ordem do dia e o denominador comum são as alterações climáticas. 

Já na década de 1950 surgiam alertas para a possibilidade da existência das alterações climáticas, mas foi apenas com o passar das décadas que o cenário apocalíptico se foi tornando cada vez mais real. Embora o debate se tenha prolongado demasiado no tempo, hoje é certo e sabido que a atividade humana é a principal responsável por tais fenómenos. Estamos a queimar demasiados combustíveis fósseis, a abater demasiadas árvores e a emitir demasiados gases de efeito de estufa, o que aumenta a temperatura do planeta. A década de 2011-2020 foi a mais quente de que há registo, com um aumento de 1.1ºC acima dos níveis pré-industriais registados em 2019. A urgência é máxima e a União Europeia quer evitar mudanças ambientais mais catastróficas. Para isso, desenhou um conjunto de medidas com o objetivo de combater as alterações climáticas em várias frentes. Uma delas passa pela redução da emissão de gases poluentes através da limitação da utilização de combustíveis fósseis, preferindo em seu lugar energias limpas, ou renováveis. 

 

 

Portugal na linha da frente da transição energética  

A energia renovável é aquela que provém de recursos naturais reabastecidos no tempo de vida do ser humano, como o sol e o vento. As energias solar fotovoltaica, hídrica, geotérmica, eólica e das ondas e marés são exemplos de energia renovável, em contraste com as energias obtidas a partir de combustíveis fósseis, como o carvão, o gás natural e o petróleo, que são utilizados a uma taxa superior à do seu reabastecimento. Fomentar a produção e a preferência de energia renovável é um dos vetores em que assenta o plano europeu Green Deal, que visa promover uma transição verde e sustentável das sociedades e indústrias. 

“Em Portugal, cerca de 60% da energia elétrica que consumimos tem atualmente origem em fontes renováveis. Portugal teve uma evolução excelente e, desde cedo, apostou nas energias renováveis”, diz João Peças Lopes, investigador no INESC TEC e Professor Catedrático na Faculdade de Engenharia da UP. No entanto, este cenário apenas reflete o consumo de energia elétrica. Relativamente ao consumo total de energia, segundo dados de 2020, apenas 34% da energia consumida em Portugal tem origem renovável, estando ainda assim quase 12 pontos percentuais acima da média europeia (22.1%).  

Apesar de a grande maioria dos países europeus estar a superar as metas para a utilização de energia renovável, ainda há um longo caminho pela frente, e a investigação e inovação científicas vão ajudar-nos a lá chegar. “Nós somos claramente um dos países que lidera a transição energética na Europa, mas a dependência europeia de combustíveis fósseis para a produção de eletricidade é ainda muito grande, sobretudo do carvão e gás natural”, finaliza João Peças Lopes. 

Entre 2005 e 2019, Portugal reduziu em 22% a emissão de gases de efeito de estufa, tendência que seguirá até 2030, com o objetivo de que a energia elétrica de origem renovável venha a representar 80% do consumo total. Esta é a meta do Plano Nacional de Energia e Clima 2030, mas mais ambiciosa ainda é a meta de 2050, ano em que se pretende atingir a neutralidade carbónica, ou seja, alcançar um balanço neutro entre as emissões de gases com efeito de estufa e o seu sequestro da atmosfera.  

Das montanhas para o mar à boleia do vento 

Em Portugal, o recurso que produz mais energia elétrica renovável é o vento, segundo dados de 2019. Mas a energia eólica não é apenas produzida no alto das montanhas. “Os melhores locais em terra com recurso para produção de energia eólica já estão ocupados. O mar, por outro lado, é vasto e tem muito espaço livre. Temos no mar um recurso tipicamente favorável, não só no que se refere à potência, mas também à disponibilidade”, refere Bernardo Silva, investigador do INESC TEC e Professor na Faculdade de Engenharia da UP, responsável pela participação do Instituto no projeto europeu EU-SCORES. Falamos de energia eólica offshore, que o projeto pretende hibridizar com outras fontes de energia, fazendo uso da mesma infraestrutura de ligação à costa. “Neste projeto estamos a estudar a hibridização dos parques offshore, nomeadamente com dispositivos de conversão da energia das ondas, por forma a que, utilizando a mesma infraestrutura de interligação, que traz custos de implementação muito elevados, para que possamos assim aumentar o nosso output de energia”, explica o investigador. 

Tendo iniciado em setembro de 2021, o projeto está ainda numa fase de estudos preliminares, embora já esteja definida a localização do demonstrador português. Será instalado na Aguçadoura, Póvoa de Varzim, onde já esteve instalado o aerogerador WindFloat. “Neste local existe uma subestação em terra, existe capacidade de monitorização e uma licença para a instalação de um parque de energia renovável marítima. Pelas condições previamente existentes, foi este o local escolhido”, explica Bernardo Silva. 

No entanto, o vento, tal como os outros elementos usados na produção de energia renovável, variam ao longo do dia e do ano. Dentro de menos de uma década haverá períodos em que a capacidade de produção de eletricidade excede a procura, e este é o grande desafio da produção de energia renovável: armazenar a energia elétrica para que possa ser consumida mais tarde, quando o recurso renovável não for tão abundante.  

Armazenar energia em cavernas 

É precisamente neste campo que o hidrogénio verde poderá ser muito útil. O hidrogénio é uma fonte limpa que quando é consumida numa célula de combustível produz apenas água, não havendo lugar à emissão de gases poluentes. O hidrogénio verde é produzido através da eletrólise da água (divisão dos átomos de oxigénio e hidrogénio) com recurso a energia proveniente de fontes renováveis, preferencialmente aquela que não encontra procura na rede. 

“Haverá num futuro próximo um excedente de energia elétrica proveniente de recursos eólicos e solar fotovoltaicos na primavera e verão, por existir menos procura relativamente aos meses mais frios. Nesta altura do ano, este volume excedente de energia elétrica poderá ser convertido em hidrogénio, armazenado durante alguns meses em cavernas, sendo depois utilizado nos períodos críticos (outono e inverno)”, explica João Peças Lopes. 

Portugal tem cavernas subterrâneas que inclusivamente já utiliza para armazenar reservas de gás natural. Seria possível utilizar a mesma estratégia para armazenar reservas de hidrogénio verde. “Depois de armazenado, podemos usar o hidrogénio e reconvertê-lo em eletricidade, num ciclo chamado Power to Power”, continua o investigador. Esta seria uma potência rapidamente disponível, garantindo a segurança do abastecimento sempre que a produção de eletricidade a partir de fontes renováveis não fosse suficiente para satisfazer a procura. 

O projeto europeu GREENH2ATLANTIC teve início em dezembro de 2021 e visa colocar um eletrolisador de 100MW para produção de hidrogénio em Sines. Com uma duração de seis anos, este será um projeto piloto de investigação. “A produção do hidrogénio resultante do eletrolisador terá, no entanto, uma aplicação industrial, nomeadamente sendo injetado nos gasodutos da REN, dopando assim o gás natural com uma percentagem de hidrogénio, bem como injetando hidrogénio nos gasodutos que serão construídos no futuro”, revela João Peças Lopes, coordenador do projeto. Além do hidrogénio, o eletrolisador produz também oxigénio, que terá igualmente aplicações comerciais, o que contribui para a valorização da infraestrutura. 

O processo de produção de hidrogénio tem, no entanto, custos energéticos muito significativos. Desde o baixo rendimento da eletrólise, até à necessidade de comprimir o gás para o seu armazenamento, bem como o baixo rendimento da conversão do hidrogénio novamente em energia elétrica. “Poderíamos, ainda assim, entregar à rede eletricidade entre 50-80€/MWh, o que é muito positivo, tendo em conta que em março de 2022 os valores da eletricidade atingiram os 700€/MWh”, esclarece o investigador. 

Contudo, nem só de produção de mais energia (e mais verde) se faz a transição energética. A eletrificação fará com que não seja necessário recorrer a combustíveis fósseis, que neste momento estão a contribuir para o aumento dos preços da eletricidade. “Estamos numa crise energética, com preços altos, e onde a energia renovável tem demonstrado ter custos mais baixos, funcionando como um travão aos avanços dos preços da energia”, explica Bernardo Silva. 

Produzir local, consumir local 

Além de turbinas mais potentes, equipamentos mais eficientes e melhor capacidade de armazenamento, há uma componente de cidadania que não pode ser descurada para alcançar os objetivos de neutralidade carbónica. E esse é precisamente uma das componentes do  DECARBONIZE, um projeto financiado pelo programa Norte2020, que pretende apoiar, promover e demonstrar transformações sistémicas para a neutralidade carbónica na região Norte de Portugal. “Um dos pilares do projeto está relacionado com o papel dos cidadãos, nomeadamente o de tentar perceber qual é o impacto que as políticas e ações de eficiência energética em vigor em Portugal têm efetivamente na sociedade”, diz Tiago Soares, investigador no INESC TEC. 

A transição energética tem custos e, fomentar a preferência de equipamentos mais eficientes, ou de estruturas e materiais que permitam um melhor isolamento das habitações, é feita através de programas como o Vale Eficiência, este especialmente destinado aos consumidores mais desfavorecidos, que têm uma maior dificuldade em aumentar a eficiência energéticas das suas habitações. “Verificámos que esta política tem tido pouca adesão, e nós achamos que isso se deve à pouca literacia energética das pessoas a quem se destina, bem como à obrigatoriedade de se ser proprietário da habitação, o que reduz significativamente o número de pessoas em situação económica ou social vulnerável abrangidas pela medida. Esta é uma iniciativa muito pertinente, mas que na prática não está a funcionar tão bem quanto deveria, por falta de envolvimento das pessoas”, explica o investigador. Está também em vigor o Programa de Apoio Edifícios +Sustentáveis (PAE+S) cuja segunda fase “tem tido uma boa adesão por parte da população, uma vez que se aplica a qualquer pessoa com edifícios de habitação existentes e ocupados”, acrescenta. No entanto, a burocracia associada à submissão das candidaturas pode ser um obstáculo em alguns casos, uma vez que os cidadãos necessitam de pagar do seu bolso, submeter uma candidatura e esperar que o reembolso do investimento seja aceite. O projeto pretende ainda promover a criação de comunidades energéticas que se baseiam numa lógica de produzir local, consumir local. “Já existem modelos de negócio com comunidades energéticas, mas o nosso objetivo não é apenas baseado na troca de serviços energéticos, mas também de serviços não-energéticos, tais como dados que podem ser importantes para a previsão da produção solar fotovoltaica”, continua o investigador. Segundo Tiago Soares, as comunidades energéticas “serão parte do futuro e serão cruciais para a transição energética”. A proliferação de comunidades energéticas renováveis permitirá uma maior independência energética da população, reduzindo assim a necessidade de importação de energia e, quiçá, a autossuficiência dessas mesmas comunidades. 

 

Uma corrida contra o tempo 

Face à invasão da Ucrânia por parte de forças russas, a transição energética na União Europeia poderá ter de sofrer algumas alterações para garantir a segurança energética dos 27 estados-membros, nomeadamente no que se refere à dependência do gás natural proveniente da Rússia. O preço dos combustíveis disparou em março, o que tem pressionado a União Europeia a procurar, com urgência, uma solução para a crise energética., que vem agravar a tendência inflacionista que já vinha sendo sentida mesmo antes da invasão russa. 

Os investigadores que participaram nesta edição da rubrica Spotlight são unânimes relativamente ao futuro do setor enérgico e à necessidade de tornar o sistema energético europeu resiliente. “Atendendo à emergência climática e à necessidade de reduzirmos a dependência dos combustíveis fósseis – mesmo que se diversifiquem os fornecedores desses combustíveis – temos de acelerar a transição energética. Se assim for, daqui a 20 anos vamos depender muito menos dos combustíveis fósseis, vamos utilizar muito mais eletricidade, vamos utilizar muito mais hidrogénio e vamos conseguir uma transição energética e uma descarbonização da economia e da sociedade de uma forma muito mais rápida”, finaliza João Peças Lopes. 

O caminho está traçado e a meta já é conhecida. Resta saber se lá chegaremos a tempo. 

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