Última chamada! Destino: o céu

“Pois eu faz dois anos que voei, primeiro fiz um balão que ardeu, depois construí outro que subiu até ao tecto duma sala do paço, enfim outro que saiu por uma janela da Casa da Índia e ninguém tornou a ver, Mas voou em pessoa, ou só voaram os balões, Voaram os balões, foi o mesmo que ter voado eu”. No livro “Memorial do Convento”, José Saramago leva-nos até ao século XVIII, aos tempos do rei D. João V, da construção do Convento de Mafra e do chamado “padre voador”, Bartolomeu de Gusmão. Ao longo do romance, Saramago guia-nos pelo desejo de voar deste padre jesuíta que, ambicionando criar uma “máquina voadora”, e com a ajuda de Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, vai dando corpo à sua invenção, a “Passarola”.

Da ficção para a realidade, acredita-se que Bartolomeu de Gusmão fez a primeira experiência aerostática da história da humanidade, quando, na sala dos embaixadores do Palácio da Ribeira e na presença do rei D. João V, fez subir um pequeno balão de papel aproveitando ar quente. Terá subido “mais de vinte palmos”.

Acredita-se que Bartolomeu de Gusmão fez a primeira experiência aerostática da história

Na verdade, as páginas da história enchem-se com linhas sobre a vontade da Humanidade de alcançar o céu. Desde os projetos de Leonardo da Vinci, como o “Aeroplano”, uma máquina capaz de voar levando um ser humano, até ao famoso voo dos irmãos Wright, ou o de Alberto Santos-Dumont, que a bordo do seu 14-bis fez o primeiro voo público na Europa, passaram mais de quatro séculos.

Graças aos avanços da tecnologia, o avião tornou-se no meio de transporte mais seguro e, atualmente, dispomos até de modelos de aeronaves que, para se movimentarem, não precisam de tripulação a bordo. Falamos de veículos aéreos não tripulados (em inglês, UAVs – Unmanned aerial vehicles). Estas aeronaves sem tripulação ou passageiros podem ser drones autónomos ou pilotados remotamente (RPVS – remotely piloted vehicles) e são capazes de realizar diversas missões, como vamos descobrir nesta edição da rubrica Spotlight.

 

Missão Escudo: drones ao serviço do património arqueológico

Segundo um relatório da Interpol que reúne informação de 72 países sobre crimes contra a propriedade cultural, divulgado em 2021, proliferam escavações arqueológicas ilícitas um pouco por todo o mundo, mas com particular incidência em zonas de conflito. Em resultado, há uma quantidade significativa de peças que acaba a ser contrabandeada por redes de crime organizado, colocando em causa o património arqueológico dos territórios.

Os países da Ásia e do Pacífico Sul foram os que reportaram, em 2020, um maior número de escavações ilegais (1563), seguidos pelos europeus (321) e pelos africanos (153). O trabalho da Interpol avança que o número de ataques contra a propriedade intelectual aumentou durante o primeiro ano de Pandemia e, no caso da arqueologia, poderá estar relacionado com o facto de os sítios arqueológicos e paleontológicos serem por natureza menos protegidos e mais expostos a escavações ilícitas.

Aumentar a proteção do património cultural, defendendo-o de atos de pilhagem, é o objetivo do projeto europeu SHIELD – Safeguard Heritage In Endangered Looted Districts, no qual o INESC TEC participa. No âmbito deste projeto de investigação, está a ser desenvolvido um sistema aéreo não tripulado, um drone, para patrulhar locais arqueológicos e apoiar as autoridades no combate às escavações ilegais.

Segundo explica Hugo Silva, investigador do INESC TEC, a maior parte dos incidentes relacionados com pilhagens em sítios arqueológicos acontece durante a noite. “Estamos a falar de locais remotos, nos quais normalmente não existe vigilância noturna”, completa, acrescentando que, apesar de a tecnologia ter sido pensada sobretudo para ser utilizada durante a noite, pode também ser usada num cenário diurno.

“O drone vai ter dois modos de funcionamento. Um dos modos será autónomo, ou seja, com descolagem e aterragem automáticas. Através de missões pré-programadas, o drone fará de hora em hora, por exemplo, um voo de patrulha para providenciar imagens e informação sobre o que está a acontecer no local. O outro modo funcionará por alertas. Caso o sistema detete algo que não é normal envia essa informação para uma central, que recebe o alerta e toma decisões com base nos dados que o drone está a enviar”, esclarece o investigador.

No âmbito do SHIELD está a ser desenvolvido um drone para patrulhar locais arqueológicos

A ideia é que o sistema seja o mais autónomo possível durante o acompanhamento do fenómeno, apoiando a tomada de decisão das autoridades diante da situação que gerou desconfiança. “É importante ter um mapa do terreno em 3D que nos permita, com a passagem do drone, identificar quais os sítios que foram escavados para perceber onde está a ser feita a pilhagem”, afirma Hugo Silva, reforçando que o sistema terá a capacidade de enviar imagens de vídeo em tempo real, que possibilitarão o acesso a dados como as próprias matrículas das viaturas onde quem faz as pilhagens se desloca. Desta forma, será possível identificar os responsáveis pelas escavações ilegais, chegar às redes de crime organizado que fazem o contrabando dos artefactos, localizar as peças e recuperá-las.

A aeronave terá ainda a capacidade de se movimentar num raio de cinco quilómetros a partir da sua estação base e funcionará por wireless (com um sistema de comunicação próprio), garantindo que não se perdem as comunicações entre o equipamento e a central.

Mas, chegados a este ponto, surge com certeza uma pergunta: como é que é que o trabalho de vigia se relaciona com o ruído que normalmente este tipo de equipamentos produz, quando se movimenta? O investigador Hugo Silva responde: “tratam-se de drones de descolagem vertical, pelo que são minimamente silenciosos. A altitude de voo é uma altitude que permite, durante a noite, que o equipamento seja invisível ao olho humano e é isso que se pretende – ser invisível”.

O projeto SHIELD reúne parceiros do Chipre, Itália e Portugal, incluindo um conjunto de utilizadores finais, no caso autoridades, que poderão vir a beneficiar desta solução no futuro. Em julho, será feito o primeiro teste de voo no Chipre. “Vamos criar um cenário, ou seja, vamos simular, em ambiente real, o acontecimento, colocando pessoas a realizar escavações, para adquirir dados que vão servir como motor para o desenvolvimento da inteligência artificial. A inteligência artificial ajudará na identificação dos eventos que queremos seguir. Este voo de teste vai também mostrar como é que tudo aparece em termos visuais, o que será muito importante para desenvolver os algoritmos que vão permitir que o sistema se torne autónomo e entre em funcionamento”, conclui o investigador.

 

Missão Resgate: drones na resposta aos desastres naturais

Para além da ameaça que decorre da ação humana, os sítios arqueológicos podem também ser afetados pelos efeitos das alterações climáticas, mais concretamente por desastres naturais. Na realidade, eventos como incêndios, inundações ou secas são cada vez mais frequentes e têm um impacto significativo na vida das populações, um pouco por todo o mundo. Estima-se que o agravamento das alterações climáticas possa levar a que 200 milhões de pessoas percam as suas casas nas próximas duas décadas, deixando um rastro de destruição, ferindo e – no pior cenário – causando a morte a tantos. Certo é que, seja qual for o desastre natural, a prioridade é responder de forma rápida e eficiente salvando o máximo de vidas possível.

É neste contexto que surge o projeto ResponDrone – Situational Awareness System for First Responders ao propor uma solução de comunicações sem fios suportada por drones, que garanta as comunicações entre as equipas de emergência no terreno e o centro de comando, quando há falha de cobertura móvel ou necessidade de reforço de capacidade no local do desastre. A solução visa facilitar a avaliação de situações de catástrofe, apoiar a tomada de decisões e contribuir para a gestão das operações no terreno.

 

O projeto ResponDrone propõe uma solução de comunicações sem fios suportada por drones

“Num cenário de emergência, existe muita dificuldade em gerir as fontes de informação, em fazer um rápido levantamento do ponto de situação, por exemplo, como está a evoluir um incêndio ou uma cheia, porque não existem sensores no local que possam fornecer esses dados, mas existe também um problema relacionado com as comunicações”, avança Hélder Fontes, investigador do INESC TEC, explicando que, quando se verifica um desastre, a infraestrutura de comunicações é afetada seja porque fica sobrecarregada ou danificada. “As vítimas ficam sem conseguir pedir auxílio e as equipas de emergência ficam impedidas de coordenar corretamente os recursos que têm no terreno”, prossegue Hélder Fontes.

Para dar resposta a este problema, foi criada uma rede de comunicações aérea privada, que não depende de outras redes existentes e que tem a capacidade de se adaptar com o evoluir do cenário. “Conseguimos tirar partido de ligações a antenas (base stations) remotas, que estão demasiado longe ou se encontram bloqueadas por obstáculos que impedem a ligação dos utilizadores ao nível do solo. Como os drones estão a voar e têm linha de vista para essas torres conseguem ligar-se e fazer a retransmissão de dados”. Como explica o investigador, o sistema consegue ainda adaptar-se e reposicionar a ligação para zonas onde esteja a ser mais usada a rede.

Além de facilitarem as comunicações, os drones estão ainda preparados para levar câmaras de vídeo, mantimentos, como comida, água ou medicamentos, e sistemas que conseguem detetar telemóveis de pessoas que se encontrem perdidas, através do sinal que possam estar a emitir. Para que tudo isto funcione, é necessário que, no teatro de operações, esteja instalada uma caixa de controlo, em inglês ground control station, que permita, entre outras coisas e por questões de segurança, passar a navegação dos drones do sistema automático para um sistema manual.

Se, até aqui, para cada aeronave era necessária uma caixa de controlo, o projeto ResponDrone veio tornar possível que uma caixa de controlo possa ser usada por múltiplos drones. “No projeto foi explorado o uso de uma caixa até três drones, mas poderá ir além disso”, adianta Hélder Fontes, acrescentando que houve ainda a preocupação de criar um software com interfaces capazes de suportar qualquer tipo de drone. Desta forma, é possível que, em contexto de missão, uma aeronave faça a transmissão de vídeo, enquanto outro entrega mantimentos, contribuindo para a eficácia e coordenação das operações de proteção civil.

Mas as novidades deste projeto não ficam por aqui: “conseguimos integrar a operação dos drones com o restante tráfego aéreo. Há um controlador aéreo que gere as missões dos drones em conjunto com outros aviões que possam estar também a operar na zona. Houve este objetivo de tornar a rede segura e integrada com o controlo aéreo que já existe, e assim evitar o perigo de embate”. O investigador conta ainda que este sistema, sabendo que existem pessoas na área onde o drone está a operar, reprograma as rotas de forma a que, acontecendo alguma avaria, não haja perigo de queda do equipamento no local onde estão as vítimas ou equipas de salvamento. Tudo isto graças à capacidade de capturar e processar vídeo a bordo dos drones, recorrendo a inteligência artificial, que permite a georreferenciação e deteção de pessoas, veículos, focos de incêndio, ou até inundações, de forma completamente automática e em tempo real.

“O acesso a este sistema é feito através de uma interface web, onde é possível criar missões, acompanhar missões e aceder ao vídeo recolhido, à área coberta pelas comunicações, às localizações de pessoas ou edifícios”. De acordo com o investigador, foi ainda desenvolvida uma aplicação android que dá a possibilidade aos operacionais que estão no terreno de ter uma vista simplificada deste sistema, com funcionalidades como chat, envio de coordenadas ou controlo do ângulo da câmara de vídeo que está no drone. O acesso, em tempo real, ao ponto de situação permitirá uma visão geral abrangente sobre o desastre e, consequentemente, uma resposta mais rápida.

O projeto RESPONDRONE é financiado pela Coreia e União Europeia e reúne 20 parceiros da Alemanha, Israel, Espanha, França, Coreia, Países Baixos, Letónia, Arménia, Grécia, Bulgária, Portugal e Bélgica. Dentro de um ano, é possível que a tecnologia desenvolvida no âmbito deste projeto venha a estar disponível no mercado, servindo equipas responsáveis pelas atividades de proteção civil.

Esta navegação pelos projetos SHIELD e ResponDrone deu-nos alguns exemplos sobre a utilização e o potencial dos veículos aéreos não tripulados. Sabemos que, no passado, foram muitos os que ambicionaram voar e o que é certo é que não sonharam em vão. Graças à evolução da ciência e tecnologia, dispomos hoje de soluções autónomas e que podem até salvar vidas. Para o futuro, que tal continuarmos a descolar?

 

Os investigadores mencionados no artigo têm vínculo ao INESC TEC.

PHP Code Snippets Powered By : XYZScripts.com
EnglishPortugal