O sonho é uma constante da vida: uma história que nasceu na vinha e pode chegar à Lua

Quando falamos em agricultura, a imagem que nos surge é a dos agricultores de enxada na mão, dos tratores a sulcar a terra ou das ceifeiras sob o sol. Mas o futuro desenha-se bem diferente. Robôs, sensores, infraestruturas de conhecimento geospacial não são uma promessa, mas sim uma inevitabilidade.  Do laboratório para o terreno, o INESC TEC quer revolucionar os setores agrícola, incluindo o vitivinícola, e florestal e torná-los mais precisos, inteligentes e sustentáveis. Como se desenha o futuro?

 

De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO – da sigla anglo saxónica Food and Agriculture Organization), entre 2000 e 2022, a produção agrícola global aumentou 56%. Em Portugal, o cenário não é diferente, com um crescimento anual médio na ordem dos 2,6% entre 2012 e 2022, impulsionada pela introdução de novas tecnologias, que vão desde a mecanização, automação e robotização (incluindo robôs autónomos), à introdução de sensores ou de plataformas de análise de dados. As vantagens? Redução do trabalho árduo, uso mais eficiente dos recursos, mitigação da escassez de mão de obra, maior sustentabilidade ambiental (reduzindo o uso excessivo de água, fertilizantes e fitofármacos) e maior resiliência face às mudanças climáticas. [1]

No INESC TEC, uma equipa multidisciplinar de engenheiros, programadores, agrónomos e especialistas em sistemas de informação está a conduzir uma revolução nos setores agrícola e florestal e com impacto real na sustentabilidade, na produtividade e até na saúde pública.

 

Robôs moldados à agricultura

Foi com esta ideia em mente que o investigador do INESC TEC Filipe Santos começou a aplicar robótica ao setor agrícola. Uma década depois, lidera um laboratório – o TRIBE Lab (Laboratório de Robótica e IoT para a Agricultura e Floresta de precisão inteligente) do INESC TEC – que desenvolve soluções para a agricultura e a floresta que podem mudar o setor e até ajudar a resolver problemas globais. “Em 2014, olhámos para a vinha e percebemos, especialmente no Douro, que havia sérias dificuldades de acesso a mão de obra e maquinaria. Pareceu-me natural explorar se as tecnologias que já tínhamos podiam ser adaptadas à realidade do terreno”, recorda.

Robôs que se adaptam, aprendem, resolvem e transformam toda a agricultura.

Qual Frankenstein, Filipe quis dar vida a um novo sistema, criado de raiz, com a ajuda de parceiros como ADVID – Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense, Sogrape, e produtores locais. Se, inicialmente, alguns pensaram tratar-se de algo impensável, rapidamente ficou provado que havia, finalmente, resposta para muitos dos desafios diagnosticados: carência de equipamentos eficientes, dificuldades de mobilidade em terrenos inclinados, máquinas de grandes dimensões com baixo retorno de investimento e falta de soluções pensadas para pequenas propriedades.

“Decidimos que só conseguiríamos fazer a diferença se tivéssemos capacidade de desenvolver tudo, desde a ideia ao protótipo funcional. Não queremos máquinas gigantes a compactar o solo e a fazer sempre o mesmo, tanto em terreno agrícola como na floresta”, conta.

Começaram com um robô desenvolvido para monitorização de vinhas e evoluíram para o WETA, o primeiro robô totalmente desenhado do zero para pulverização de precisão. A partir daí nasceu um novo conceito: robôs modulares capazes de se adaptarem a diferentes tarefas e facilmente transportáveis. Pulverizam, fertilizam, monitorizam, cortam vegetação e respondem a problemas de um setor ainda muito fragmentado. O Modular-E  (na agricultura) e o Modular-X (na floresta) são as peças fundamentais deste conceito de LEGO.

 

Sensores e armadilhas: a revolução discreta

Lembram-se da personagem Q do James Bond? No INESC TEC temos a nossa própria versão de quem trabalha nos bastidores e opera uma transformação “invisível”. Com a ajuda do investigador Lino Oliveira, em vez de canetas explosivas, temos infraestruturas de conhecimento geospacial, sensores e armadilhas.

Foi com o projeto FDControlo que se deu o primeiro passo. A missão? Monitorizar pragas que afetam vinhas, nomeadamente o Scaphoideus titanus, o inseto que transmite a flavescência dourada. Tradicionalmente, isso era feito com armadilhas adesivas (placas cromotrópicas) colocadas nas vinhas, que exigiam visitas regulares dos técnicos ao terreno. “O problema é que tudo era feito por inspeção visual. Era um processo moroso, manual e, muitas vezes, impreciso. Porque não criar uma armadilha robótica que tirasse automaticamente fotografias e as enviasse para análise?”, explica Lino Oliveira.

Esta armadilha inteligente, equipada com painel solar, câmara, ligação GSM e sensores ambientais, envia imagens para um servidor central e, com a ajuda de algoritmos (previamente treinados) é possível detetar automaticamente o vetor da doença.

Com a maturidade adquirida no FDControlo, o projeto InOlive aplicou a mesma lógica ao olival. Desta vez, com foco na mosca da azeitona e na traça da oliveira, provando que se trata de uma tecnologia escalável. “Já sabíamos o caminho: sabíamos como treinar os algoritmos, como montar a armadilha, como recolher os dados. E conseguimos desenvolver uma solução integrada com armadilhas inteligentes, algoritmos treinados e um sistema de informação com alertas automáticos”.

Em estufas, como a GreenTribe que fica nas instalações do edifício sede do INESC TEC, estão a ser testadas tecnologias de baixo custo e de código aberto, para produção alimentar em contexto urbano. “As estufas permitem-nos testar mais depressa, modelar plantas e fazer experiências de forma controlada. São fundamentais para preparar a transição para uma agricultura mais eficiente”, adianta Filipe Santos.

No INESC TEC, há quem opere na sombra: não com gadgets de espionagem, mas com tecnologia.

 

Prever, antecipar e agir

No INESC TEC, não temos uma bola de cristal, mas (quase) conseguimos adivinhar o futuro! Como? O projeto Infravini, na região do Douro, usou uma rede de estações meteorológicas – que recolheu dados em tempo real, cruzando-os com 20 anos de histórico – para criar indicadores hídricos, térmicos e fenológicos[2]. O projeto permitiu democratizar o acesso a este tipo de informação, até então reservado a grandes produtores. Lino Oliveira esclarece: “O objetivo é saber, por exemplo, quando uma videira atinge determinado ponto de desenvolvimento, prever ondas de calor ou identificar zonas de maior risco. Trata-se de uma ferramenta de apoio à decisão com base em dados e previsões robustas”.

“Isto é o Santo Graal da vitivinicultura de precisão. Saber, por exemplo, que videira produz mais, permitindo tratar de forma diferenciada cada uma, aplicar nutrientes só onde é necessário, e tirar as plantas que estão apenas a consumir recursos”, acrescenta Filipe Santos.

Nem só da terra vive a agricultura e a viticultura. O projeto WaterkNow, ainda em fase inicial, pretende criar uma infraestrutura de conhecimento geospacial avançada que permita prever escassez hídrica com 7 a 10 dias de antecedência, e apoiar a gestão estratégica da água com modelos de médio e longo prazo. “Com esta previsão, podemos planear melhor a rega, evitar desperdícios e garantir resiliência”, explica Lino Oliveira.

Em desenvolvimento está também um projeto que prevê a instalação de mais de mil armadilhas inteligentes por todo o país e a utilização de um digital twin para fazer simulações e testes. “Estamos a falar de um mapa onde se consegue perceber o que está no terreno em tempo real. Podemos, depois, injetar dados para ver como reage e perceber, no digital, o que ira acontecer no real, sem comprometer uma cultura, por exemplo, ajudando-nos a tomar as decisões mais acertadas” explica Lino Oliveira.

 

Do laboratório para o mercado

“Hoje em dia, já ninguém estranha ver robôs nas vinhas ou sensores a captar dados do ar”. Para André Sá, responsável pela área de desenvolvimento de negócio do TEC4AGRO-FOOD, iniciativa do INESC TEC para o agroalimentar e floresta, a entrada da tecnologia na agricultura não é só um fenómeno em crescimento – é um processo irreversível.

“A estrutura do INESC TEC, composta por vários domínios de I&D altamente especializados, permite montar respostas à medida de problemas reais. Temos dezenas de protótipos em fase avançada. A fase seguinte é a transferência de tecnologia para empresas tecnológicas que os possam transformar em soluções completas”, refere.

Segundo André Sá, o INESC TEC já é uma referência nacional e está a ganhar notoriedade europeia na área da investigação e desenvolvimento tecnológico em tecnologias digitais e robótica aplicadas ao agroalimentar e floresta. Mas transformar tecnologia em produtos no mercado não é simples: “É mais fácil entregar software. Hardware já exige uma empresa capacitada para montar, testar e escalar. E depois há o ecossistema: o utilizador final, o regulador, o mercado”. Ainda assim, os sinais são promissores. “Há uns anos, em eventos, diziam-me, ‘mas o senhor não é dos computadores? O que está a fazer na agricultura? Hoje já vemos mudanças reais: produtores a mudar comportamentos, a DGAV – Direção-Geral da Alimentação e Veterinária a atualizar metodologias com base em projetos nossos, e grandes grupos vitivinícolas a adaptarem-se às soluções que ajudámos a desenvolver”, refere.

Depois da terra, a água e até a Lua. A ciência avança porque nunca se contenta com o que já é possível.

O INESC TEC não é, obviamente, fabricante. Em vez disso, trabalha com empresas tecnológicas para transferir as tecnologias criadas em laboratório. “Temos mais de 30 tecnologias com potencial de mercado. O nosso sonho é ver robôs ‘powered by INESC TEC’ a trabalhar em vinhas, estufas e florestas por todo o país. Mas mais do que isso, queremos que essas tecnologias cheguem ao terreno e ajudem mesmo as pessoas”, acrescenta Filipe Santos.

“O triângulo da inovação — utilizadores finais, academia e empresas tecnológicas — está alinhado”, defende André Sá. A expectativa é que nos próximos dois a três anos surjam os primeiros dados de mercado com resultados diretos destas soluções: ganhos de produtividade, eficiência, redução de perdas. E o futuro?  “Depois de transferirmos estas tecnologias, vamos continuar a “inventar”. A investigação não pode parar. Há uma visão para projetos sobre produção de alimentos na água, na Lua… tudo aquilo que hoje parece descabido pode ser o que vamos transferir daqui a uma década”.

E, como lembra Filipe Santos, há algo de poético em todo este processo. “Estamos a tentar devolver ao campo o que a industrialização lhe tirou: diversidade, equilíbrio, inteligência. Durante décadas, a agricultura foi forçada a adaptar-se às máquinas, com monoculturas e perda de biodiversidade. Nós queremos fazer o contrário: criar máquinas que se moldam à agricultura, e que permitam manter a biodiversidade”.

 

Os investigadores mencionados têm vínculo ao INESC TEC e à FCUP.

 

[1] Diretrizes fornecidas pela FAO  para maximizar a produtividade das culturas e melhorar a segurança alimentar: https://www.fao.org/plant-production-protection/in-action/global-programmes-and-projects/fao-provides-new-guidelines-to-maximize-crop-yields-and-improve-food-safety/en
[2] A fenologia é o estudo dos fenómenos periódicos na natureza, especialmente os relacionados com o desenvolvimento das plantas e a influência do clima nesses processos.
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